Rio de Janeiro e Baixada: mesma fonte de água, diferentes acessos

Água e esgoto, elementos básicos da vida urbana, são problemas para muitas pessoas no mundo, no Brasil e, mais perto ainda, na região metropolitana do Rio de Janeiro. As cidades da Baixada Fluminense são as mais afetadas pela falta de água ou má qualidade e falta de acesso a saneamento. Além de a água distribuída ser insuficiente, chega em boa quantidade para alguns e em quantidade mínima para outros. É poluída por indústrias e contaminada pelo contato com esgoto, e a estrutura de distribuição não tem manutenção. A Companhia Estadual de Água e Esgotos - Cedae não investe na melhoria do sistema. Municípios e cidadãos sofrem com a precariedade de bens fundamentais.

Na região metropolitana, que compreende  18 municípios, a situação é crítica.  Destes, 17 necessitam de investimentos no sistema de produção de água, na ordem de 837 milhões de reais, informa estudo da Agência Nacional de Águas (ANA). Ainda há no mundo 2,4 bilhões de pessoas sem acesso a esgotamento sanitário. No Brasil, 51,4% da população, ou seja, mais de 100 milhões de brasileiros não acessam saneamento, assim como mais da metade das escolas.

No estado do Rio de Janeiro, a Cedae é responsável pelo abastecimento de 61 municípios. Os demais possuem sistemas de abastecimento operados por serviços municipais (autônomos ou prefeituras) ou por empresas privadas. 51% dos municípios do estado não necessitam de investimentos para a garantia da oferta de água, informa o Atlas de Abastecimento Urbano de Água.

Em estudo do Ranking do Saneamento, do Instituto Trata Brasil, alguns números absolutos podem parecer animadores: a cidade do Rio de Janeiro tem 91,62% da população atendida com água, e 83,11% com esgoto. Mas para a universalização do acesso, faltam 100.230 ligações de água - um dos maiores números dentre todas as 100 maiores cidades do país. Para esgoto, faltam 210.996 novas ligações. A cidade também figura no topo no indicador de perdas na distribuição, atingindo 28,59%. É o segundo pior número do ranking de perdas na distribuição, atrás de Carapicuíba (RJ). A nota total da cidade, nesse ranking, ficou em 6,18. E a tarifa média também é das mais altas: 3,76 reais/m³. 

A dramática situação da Baixada Fluminense

O engenheiro Luiz Edmundo Costa Leite, conselheiro do Clube de Engenharia e Secretário de Planejamento, Urbanismo e Habitação de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, avalia que o município é um dos piores do estado no quesito acesso a água e saneamento. Em Caxias, pelo menos um terço da população, por volta de 300 mil pessoas, carece de água.

O problema tem diversas causas. Uma das captações sai de Xerém, e é muito antiga. Quando o inverno chega, a fonte de abastecimento só atinge um terço de sua capacidade, diminuindo muito a vazão. A outra captação vem do rio Guandu, e nesse caso Caxias é o "fim da linha", nas palavras do engenheiro. Antes, o sistema abastece Nilópolis, Nova Iguaçu e outras cidades. A solução seria ter uma captação própria para a Baixada Fluminense, que pelo menos duplique a quantidade que chega na cidade.

Há lugares em Caxias que recebem água algumas vezes por semana, e não há garantia de que seja de qualidade. O problema também atinge escolas e hospitais: há mais de 30 escolas sem qualquer abastecimento de água, nem mesmo encanamento. Algumas são abastecidas por água de poço, que pode estar contaminada. Já os hospitais, chegam a ser abastecidos por caminhão pipa. A rede de esgoto, como sempre, é pior ainda: praticamente não tem. Quando tem é a rede pluvial, que leva o esgoto de um valão para um rio, e depois para a Baía de Guanabara. "Por isso eu nunca acreditei na despoluição da Baía para as Olimpíadas", afirma Luiz Edmundo Costa, analisando a falta de olhar para a Baixada. Segundo ele, para ter esgoto na Baixada inteira, seriam necessários 10 milhões de reais.

A Cedae promete, há anos, uma grande obra de estação de tratamento nova, somente para a Baixada, que levaria muito mais água, ampliaria a rede e faria um abastecimento mais regular. “Planeja-se melhorar o abastecimento na região há 30 anos”, ele lembra.

Mesmo o trabalho de Edmundo como Secretário de Planejamento, Urbanismo e Habitação é afetado. Propostas de conjuntos habitacionais do programa Minha Casa Minha Vida não são aprovadas por falta abastecimento de água nos locais. O mesmo acontece com outros empreendimentos, como as indústrias, por exemplo, que solucionam o problema com a construção de poços, o que não é uma opção para a população de baixa renda.

Consumo desigual e demanda crescente

Coordenador da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional no Rio de Janeiro (FASE-RJ), Aercio de Oliveira entende que não é possível tratar do assunto sem lembrar da crise hídrica iniciada em 2014 e associar às mudanças climáticas e aquecimento global. Existe um estresse hídrico: a falta de água tende a ser um problema crescente, enquanto não se melhora o sistema, já que cada vez mais pessoas demandam água potável. Os números de abastecimento, aparentemente positivos, mascaram a fragilidade do sistema de fornecimento, que são basicamente os sistemas Guandu e Acari. Os dados não deixam explícito que a distribuição acontece muito irregularmente em inúmeros pontos da região metropolitana. "É necessário e urgente que o sistema melhore na oferta de água e na captação", afirma. O caso da Baixada Fluminense, com acesso muito precário, contrasta com o consumo da capital. Embora utilizem a mesma fonte de água, na capital se consome 329 litros de água por habitante, todo dia. É mais do que o estado do Rio de Janeiro (236 litros), o sudeste em geral (187,9 litros) e muito mais do que o recomendado pela ONU (110 litros).  

Prioridades contestáveis

A desigualdade começa na distribuição e é ligada ao padrão de produção. Segundo Aercio de Oliveira, nas últimas décadas houve muito investimento do governo federal na indústria imobiliária. Quando se instala um novo grande prédio residencial, não se pensa nas consequências desse abastecimento. Começa a faltar água no entorno, e então quem tem menor poder aquisitivo é quem sofre. O mesmo acontece com indústrias: quando se instalam grandes indústrias, como aconteceu com o Complexo Petroquímico do Estado do Rio de Janeiro (Comperj), em Itaboraí, começa a faltar água para a população. Isso acontece porque os mananciais de água superficial passam a ser usados, mesmo com captação irregular, para interesses industriais. "É o padrão de uma urbanização que não é planejada, porque deveria ser adequada ao ritmo de crescimento. Sempre vai faltar para alguém", conclui.

O estado do Rio de Janeiro, ainda segundo Aercio de Oliveira, é muito vulnerável a médio e longo prazo, por ser extremamente dependente da bacia do Paraíba do Sul. Quase 70% de toda a água potável consumida tem essa captação, abastecendo os sistemas Guandu e Acari. "O estado do Rio de Janeiro precisaria ter uma política de investimento para mudar. Aproveitar melhor outros mananciais e, principalmente, implantar uma política de saneamento".

Solução: vontade política

Tudo está ligado. Seria preciso reduzir ao máximo a poluição provocada pela indústria e pela pecuária em águas superficiais e profundas, e priorizar o tratamento de esgoto. Quando não se tem acesso a esgoto adequado, poluem-se os rios, que vão acabar chegando à Baía de Guanabara. É preciso tratá-los e investir em plantio nas encostas, para garantir os mananciais. Além das indústrias, muitas vezes os próprios moradores acabam por contaminar um cano de água, sem saber. Desprovidos do acesso regular, fazem ligações irregulares nos canos, para receber a água em casa. O resultado é que essa mistura leva esgoto para a água potável e a  contamina. Assim, acontece um outro problema: doenças de veiculação hídrica, como a cólera.

O problema da perda de água no processo de abastecimento, que atinge quase um terço do total distribuído, está associado a vários fatos: o sistema está saturado, há ligações clandestinas e, principalmente, falta manutenção, constata Aercio de Oliveira.

O saneamento é algo que "não traz voto" e exige muito investimento público. Precisa-se de bons projetos, maquinário para colocar o equipamento, suporte técnico com bons profissionais e dinheiro. Mas a relação de custo/benefício é alta: investe-se em saneamento e economiza-se em saúde. O acesso adequado a esgotamento sanitário é uma ação de saúde preventiva.

Os municípios com acesso inadequado teriam outras alternativas sem depender da Cedae. Na opinião de Aercio, uma delas é fazer um processo consorciado, criando uma nova empresa. Segundo a Constituição, os municípios têm autonomia para tratar dos serviços de saneamento. Mas, na prática, faltam recursos para investir e a maior parte dos municípios continua dependente da CEDAE.

Na opinião do coordenador da FASE, a falta de investimento combina a incapacidade de se pensar nas consequências positivas desse tipo de política e uma lógica de buscar lucro a todo custo. A solução? Ele conclui: "tem que ter dinheiro, vontade política e pensar numa lógica universal, sem seletividade".

 

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