Elcio de Sá Freitas Vice-Almirante (EN) Ref. 

Resumo
Transferência de tecnologia é locução que há muito transpôs o campo técnico-científico e chegou ao vocabulário comum. Nessa evolução, seu real significado ficou amplo e impreciso, e sua aplicação muito mais geral. Em particular, tornou-se importante elemento de marketing em negociações de países de vanguarda com os de desenvolvimento tardio. Neste artigo, abordam-se vários aspectos implícitos em transferência de tecnologia e princípios básicos para sua negociação visando desenvolvimento e defesa.

Technology transfer is an expression that has passed from the technical-scientific vocabulary to the common language. In this evolution, its meaning became broader and not clearly defined, and its application much more general. In particular, technology transfer became an important marketing element in negotiations between developed and undeveloped countries. In this article, several aspects implied in technology transfer are examined, as well as basic principles for technology transfer negotiations in development and defense projects.

Tecnologia   
Significado.   
Vulgarização do Termo   
Geração de Tecnologia: A Cadeia Tecnológica.

Transferência de Tecnologia   
Origem, Expansão e Caráter.   
Transferência Versus Absorção.   
Profundidade de Absorção.     
Obsolescência. Tecnologias Novas. Ascensão Tecnológica.   
Domínio de Tecnologias.      
Modalidades de Transferência de Tecnologia.

Independência Tecnológica   
Finalidade, Significado e Implicações.    
Independência Versus Redução de Dependências.  
Nascedouros e Desenvolvimento de Tecnologias.   
Questão Capital.      

Tecnologia

Significado

A capacidade de criar e desenvolver conhecimentos e de aplicá-los para produzir bens materiais sempre foi parte da vida humana. Ainda assim, durante muitos séculos certamente não houve uma palavra ou expressão para designar essa capacidade. No mundo ocidental, ela deve ter sido cunhada pelos gregos, combinando os termos technikós (arte, ofício) e logos (tratado, estudo). 

As palavras têm vida. Vivem no tempo e no espaço, varando séculos e percorrendo países. Em sua vida, frequentemente transformam-se ou incorporam novos significados. Convém examinar algumas definições atuais da palavra tecnologia:

1. ramo do conhecimento que trata da criação e uso de meios técnicos, e de sua interrelação com a vida, a sociedade e o meio ambiente, e que abrange as artes industriais, a engenharia, a ciência aplicada e a ciência pura.

2. um processo, invenção ou método, científico ou industrial.

3. a soma dos meios com os quais grupos sociais conseguem os objetos materiais de suas civilizações.

4. produção, modificação, uso e conhecimento de ferramentas, técnicas, engenhos,  sistemas e métodos de organização para solucionar um problema, melhorar a solução pré-existente de um problema, atingir um objetivo, manipular uma relação de entrada/saída aplicada ou de realizar uma função específica.

5. a aplicação prática de conhecimento, especialmente numa dada área.

6. a capacidade dada pela aplicação prática de conhecimento.

7. um modo de realizar uma tarefa, especialmente usando-se processos, métodos  ou conhecimentos técnicos.

8. A aplicação de ciência, especialmente para propósitos industriais ou comerciais.

Das definições acima, algumas são mais abrangentes, como a primeira e a terceira. As outras são mais estritas ou específicas. O conjunto acima, ou um outro equivalente,  é que exprime suficientemente bem o significado da palavra tecnologia.,  Deve ser usado em qualquer exame não superficial do presente tema.

Vulgarização do Termo

Ainda que muito importante em qualquer sociedade, a palavra tecnologia nasceu no vocabulário especializado. Porém, nos últimos 50 anos penetrou no vocabulário popular, até mesmo fora dos países de vanguarda. Aí aparece mais e mais. Esse processo de vulgarização decorreu basicamente de três fatores interagentes: o ritmo exponencial da criação e uso da tecnologia; o rápido progresso em telecomunicações; e o comércio internacional. Este último sempre foi o elemento essencial no intercâmbio de valores culturais e econômicos dos povos.
 
Nesse processo de vulgarização da palavra tecnologia, é inevitável que seus significados mais abrangentes se obscureçam. Predominam outros, mais imediatos e perceptíveis, e também convenientes a propósitos comerciais. Tal fato não é irrelevante, pois tem consequências importantes sobre decisões nacionais de países de desenvolvimento tardio, mas que buscam recuperar o tempo perdido. 

Geração de Tecnologia: A Cadeia Tecnológica

Para melhor compreender a natureza das questões tecnológicas, não basta examinar um competente conjunto de definições de tecnologia, como o que se alinhou acima. É indispensável considerar como a tecnologia ela é gerada.

Exceto em casos triviais, tecnologia é uma longa cadeia de conhecimentos e recursos. Vai desde especulações de ciência pura e técnicas de ciência aplicada até procedimentos, métodos e aparelhagens finais. Entre esses extremos situa-se uma longa sequência de intuições, ideias, estudos, tentativas, dados teóricos e experimentais, métodos lógicos e semi-empíricos, projetos, laboratórios, materiais, instrumentos, ensaios, testes, maquinaria, fabricações, instalações de prova, resultados, avaliações, alterações, correções etc., necessários para criar, desenvolver, produzir, aprovar, operar e manter um sistema, processo ou produto. Para ser construída, essa cadeia tecnológica requer capital, organização, materiais, esforços e talentos em vários níveis. Não raramente, inclui insucessos.

 
Transferência de Tecnologia

Origem, Expansão e Caráter

Há 50 anos o termo tecnologia extravasou-se do vocabulário especializado para o popular, mesmo nos países de desenvolvimento tardio, impelido pela explosão tecnológica, pelas telecomunicações e pelo comércio internacional. Uma ou duas décadas depois, o mesmo aconteceu com a expressão transferência de tecnologia. Nessa nova invasão, os principais impelidores certamente foram o comércio internacional e os países de desenvolvimento tardio, ansiosos por reduzir seu atraso. Tal ânsia gera procura de soluções rápidas.

Não sabemos quando e como se criou a expressão transferência de tecnologia (“technology transfer”).  Gerada no mundo anglo-saxônico, talvez tenha quase um século. Quando usada nas relações entre grupos técnico-científicos em estágios não muito díspares de desenvolvimento, estes sabem muito bem o que ela significa em cada negociação. Mas o mesmo não tende a acontecer quando há grande defasagem tecnológica entre as partes negociadoras. 

Como quase todas as palavras, transferência tem várias acepções nas línguas inglesa e portuguesa. Porém, todas denotam processos relativamente simples, completos e quase imediatos. Este caráter da palavra transferência — aliado à imprecisão do significado vulgar de tecnologia, ao desconhecimento sobre geração de tecnologia e ao anseio por progresso tecnológico — torna a expressão transferência de tecnologia extremamente sedutora e eficaz em negociações de países de vanguarda com os de desenvolvimento tardio, e pode diminuir os benefícios que esses últimos esperam com a pretendida transferência.

Transferência de tecnologia pode parecer um atalho rápido para obter-se algo que de outra forma se obteria lentamente e a duras penas. Tem forte atração comercial. Mas é apenas uma possibilidade de absorvermos tecnologia, dependendo das circunstâncias e do empenho, organização e capacidade de absorvê-la.

Transferência Versus Absorção de Tecnologia

Nas transações envolvendo tecnologia há uma direção e dois sentidos: para a parte detentora da tecnologia trata-se de transferência; mas para a receptora trata-se de absorção.

O que é absorver tecnologia? É obter alguns dos elos da cadeia tecnológica que a gerou, e em particular os elos finais: produção, operação, manutenção. Essa absorção frequentemente é útil e indispensável. Mas não significa geração nem domínio de tecnologia. E pode não ser grande impulso para ascensão tecnológica. 

Profundidade de Absorção

Para utilizar repetitivamente um sistema ou processo, ou fabricar um produto, basta possuir os elos finais de sua cadeia tecnológica. Nesse caso, a absorção de tecnologia será superficial, embora útil e até indispensável. Atenderá a necessidades imediatas.
 
Importante é a profundidade da pretendida absorção de tecnologia. Se for superficial, não dará ao receptor a possibilidade de evoluir por si mesmo. Essa é a situação que melhor atende aos interesses da parte que transfere a tecnologia. Frequentemente é aceitável para o receptor, pois sempre constitui um avanço. Porém é avanço para nova estagnação.
 
Absorver tecnologia sem penetrar em sua base técnico-científica e daí gerar tecnologia própria é dar um passo e novamente estagnar. É continuar dependente.

Absorções profundas de tecnologia reduzem dependências, mas normalmente só ao receptor interessam. Portanto, raramente ocorrem. Dificilmente interessarão ao contratado, exceto se oferecerem raras oportunidades políticas e estratégicas, e se não envolverem tecnologias novas. Por outro lado, o receptor precisará ter empenho, capacidade técnica, organização, capital e estabilidade para absorver profundamente uma tecnologia importante. Ela terá que ser básica para a estratégia do receptor a médio e longo prazo, e para a correspondente política tecnológica nacional.

O empenho em absorver tecnologia começa por estabelecerem-se cláusulas e especificações contratuais apropriadas, embora de eficácia sempre limitada por conveniências comerciais e políticas que existam, mas que podem desaparecer durante um longo contrato.

A capacidade de absorver tecnologia é o capital técnico-gerencial acumulado, não desfeito por desagregação de equipes ou perda de memória técnica. Esses fatores tendem a ocorrer quando o progresso tecnológico é descontínuo.

Consórcios de firmas nacionais com estrangeiras e participação estrangeira em firmas nacionais podem ser meios importantes de absorver tecnologias. Podem despertar a iniciativa empresarial e elevar o nível e a diversidade de produtos de uso civil. Mas também podem resultar em pouco mais que montagem de componentes importados. Além disso, há o risco de alienarem-se realizações nascentes e inventividade da firma nacional, gradativamente eliminadas da linha de produção. É indispensável grande interesse comercial da firma estrangeira em permitir a absorção de tecnologia, bem como capacidade, conveniência e vontade da firma nacional para realizá-la.

Obsolescência. Tecnologias Novas. Ascensão Tecnológica. 

Outra questão importante é a obsolescência de tecnologias. Ela tende a ocorrer cada vez mais rapidamente.

Como tecnologia é poder, dificilmente o detentor de uma tecnologia nova permitirá sua absorção, mesmo que ela não propicie poder avassalador. Aos que aspiram a ascender, só resta tentar absorver tecnologias maduras, mas ainda não obsoletas e, com esforço próprio, partir dessa base para um novo e mais elevado patamar. Para isso é necessário articular, estimular, utilizar e desenvolver o setor técnico-científico-industrial do País. E o melhor modo de fazê-lo é incluir esse setor em empreendimentos de alta densidade tecnológica. Aí se destaca a obtenção de produtos e sistemas de defesa com projeto e construção nacionais. Projetos estrangeiros excluem inevitavelmente nosso sistema técnico-científico-industrial.

Domínio de Tecnologias

Num mundo materialista, tecnologias são tidas como valores supremos. São intensamente cultivadas pelos países de vanguarda. Os de desenvolvimento tardio anseiam por conquistar seu domínio. Mas dominar uma tecnologia é realmente conhecer e possuir todos os elos de sua cadeia tecnológica. Esta, como já vimos, é longa, complexa e dispendiosa, empregando organizações e recursos humanos e materiais forjados em décadas de progresso técnico-científ
ico-industrial.
 
Dominar tecnologias importantes dá o poder de aperfeiçoá-las e possivelmente gerar outras mais novas. É de fato o caminho para independência em determinados setores de atividades, e para inteligente dependência mútua com países de vanguarda. No entanto, para países de desenvolvimento tardio, apresenta formidáveis desafios. Portanto, esses desafios deverão ser judiciosamente selecionados e sequenciados. Caso contrário, todo o esforço de gerar tecnologias importantes poderá fracassar.

Modalidades de Transferência de Tecnologia

Várias modalidades de transferências de tecnologia já existiam bem antes de cunhar-se e vulgarizar-se a expressão transferência de tecnologia. Elas ainda existem e são designadas por termos específicos que exprimem claramente seu significado em cada caso. Em certos empreendimentos, essas modalidades podem combinar-se vantajosamente. Porém nenhuma delas, nem o seu conjunto, é suficiente para contínua ascensão tecnológica. Esta só pode ser obtida por esforço próprio, vontade firme, decisões inteligentes, tempo e continuidade. Porém, continuidade é o que mais nos falta.

As designações específicas das modalidades de transferência de tecnologia continuam a ser usadas, mas em divulgações públicas tendem a ser substituídas pela expressão transferência de tecnologia, mais abrangente e imprecisa, porém eficaz como instrumento de marketing.

Licenciamento

A negociação para conhecer e usar um processo, invenção ou método industrial denomina-se obtenção de licença do proprietário. As prováveis vantagens no seu uso, podem ser objetivamente comparadas com as taxas a pagar, royalties, e as correspondentes condições contratuais. Neste caso, o significado de tecnologia é o do item 2 acima. A obtenção de licenças para fabricação tem sido um dos modos mais frequentes de transferência de tecnologia. Entre nós, essa modalidade de transferência de tecnologia tornou-se frequente e seu uso foi importante item no total de pagamentos nacionais ao exterior. 

Instrução e Treinamento 

A capacitação num modo de realizar uma tarefa, especialmente usando-se processos, métodos ou conhecimentos técnicos, pode ser obtida de seu possuidor mediante um contrato de instrução e treinamento, sendo parte integrante, ou não, de um outro contrato para obterem-se equipamentos  ou construir uma fábrica, navios, etc.. Como no parágrafo logo acima, o que se negocia é objetivamente perceptível e bem avaliável. Este caso corresponde ao significado 7 da palavra tecnologia. Na Marinha, utilizamos esta modalidade de transferência de tecnologia na década de 1970, para obter quatro modernas fragatas da classe Niterói, projetadas e construídas no Reino Unido, e para construir duas outras da mesma classe no Brasil. Aí se incluiu a instrução e treinamento para a construção no País, e também o fornecimento de ampla e excelente documentação técnica, base para o projeto nacional das corvetas classe Inhaúma nos anos 1980 e da corveta Barroso pouco depois. Esses foram os primeiros e únicos navios de guerra projetados no Brasil em todo o período republicano.  Também usamos essa modalidade de transferência de tecnologia para construir no Brasil quatro submarinos IKL-209 da classe Tupi, entre 1985 e 2003. Porém, tanto no contrato para obtenção das fragatas Niterói como no que assinamos para obter os submarinos classe Tupi, a expressão transferência de tecnologia raramente foi mencionada. 

Investimento Direto

Outra modalidade muito usada de transferir tecnologia é o investimento direto. Neste caso, uma empresa tecnologicamente mais avançada adquire parcial ou totalmente as ações de uma outra, e nela passa a empregar seus conhecimentos, ferramentas, técnicas, engenhos,  sistemas e métodos de organização. Esta modalidade abrange as definições 4 e 7 de tecnologia e também inclui treinamento de pessoal. No projeto e construção das corvetas classe Inhaúma e Barroso, o caso mais importante desse tipo de modalidade foi a fabricação parcial no Brasil de engrenagens redutoras principais pelo consórcio teuto-brasileiro Renk-Zanini, depois transformado na empresa Renk-Zanini S.A. Equipamentos Industriais. Outra ocorrência importante foi a fabricação nacional de baterias propulsoras para submarinos, entre 1985 e 1995. Neste caso, porém, a firma estrangeira fornecedora de tecnologia acabou retirando-se do Brasil, provavelmente por insuficiência de mercado.

Assistência Técnica

Assistência técnica pode ser uma das modalidades mais eficazes de transferência de tecnologia  quando o propósito for contínua ascensão tecnológica. Ela também se aplica frequentemente a realizações menos ambiciosas. 

Ocorre assistência técnica quando uma unidade do setor técnico-científico-industrial de um país recorre a uma entidade do exterior para superar dificuldades específicas ou garantir a qualidade em um ou mais elos de uma cadeia tecnológica em que já esteja atuando ou progredindo por esforço próprio. 

Neste caso, a parte receptora tem conhecimento e experiência resultante do seu esforço, e portanto pode bem avaliar, selecionar e absorver a capacidade que a assistência técnica promete.  Graças ao que já realizou, a equipe receptora de tecnologia pode ser essencialmente ativa e bem preparada, tendendo a extrair o máximo proveito no contato com uma fonte tecnologicamente mais avançada. Além disso, o objeto da transferência de tecnologia mediante assistência técnica, por ser restrito, pode ser melhor delineado. Permite avaliar previamente as vantagens a obter diante do preço a pagar e, durante a pretendida transferência, a ajuda que realmente estiver sendo obtida.

Na Marinha, utilizamos assistência técnica para ascender tecnologicamente em projeto de navios de superfície e de submarinos entre 1980 e 2000. Começando com um pequeno grupo de engenheiros que haviam projetado o Navio-Escola Brasil, jovens em maioria, conseguimos assistência técnica estrangeira para os primeiros ciclos do projeto das corvetas Inhaúma. Daí  em diante prosseguimos sozinhos até o final do empreendimento e passamos a um patamar mais complexo: o primeiro projeto nacional de submarino, denominado SNAC-1. 

Iniciamos o projeto SNAC-1 com um núcleo de engenheiros extraído do projeto das corvetas Inhaúma. Ele estudou a documentação técnica de nossos submarinos em operação e interagiu com o Estado Maior da Armada na formulação de requisitos de operação iniciais para o SNAC-1.

Daí passamos a rece
ber assistência técnica para treinamento em projeto de submarinos, inicialmente no Brasil e depois na Alemanha, conseguida como parte do contrato para a obtenção dos submarinos IKL de projeto alemão, dos quais um foi construído na Alemanha e quatro no Brasil. Terminado o treinamento, iniciou-se formalmente o projeto do submarino SNAC-1, mas agora com um novo contrato em que a assistência técnica passou a ser seletiva, constando de solicitações específicas de aconselhamento técnico, à medida em que necessidades importantes fossem aparecendo. Assim progredimos até a fase em que precisávamos contratar sistemas e equipamentos principais, e consequentemente obter as verbas necessárias. Infelizmente aí se iniciou longo período de crise econômico-financeira nacional e retração obrigatória da Marinha. O projeto teve que ser cancelado. A equipe se desfez e pouco restou da tecnologia obtida, não utilizada durante longo tempo. Felizmente o mesmo não aconteceu com a tecnologia em navios de superfície, graças ao projeto da corveta Barroso, derivado da Inhaúma. 

Assistência Mútua

A rigor, não existe uma denominação consagrada para este tipo de modalidade. Ela ocorre quando duas ou mais instituições, empenhadas num mesmo tipo de tecnologia e em níveis não muito díspares, identificam vantagens em trabalhar conjuntamente e transferir entre si os resultados obtidos. Esta é provavelmente a modalidade que melhor se coaduna com a denominação transferência de tecnologia e pretensões a contínua ascensão tecnológica. Ainda assim, não se pode esperar que a confluência de interesses que a gerou seja suficientemente duradoura. 

Independência Tecnológica

Finalidade, Significado e Implicações

A finalidade de qualquer independência tecnológica é desenvolvimento e defesa.

O que significa ter independência tecnológica? Significa dominar uma ou várias tecnologias modernas e, para cada uma, utilizar livremente todos os elos da sua cadeia, com todos os seus insumos intelectuais e materiais. 

Em tecnologias complexas, conhecer e combinar todos os elos e insumos já é um grande feito. Possuí-los depende de conhecê-los, mas também de tê-los como recursos naturais. Utilizá-los livremente depende de capital para industrializar a tecnologia e mercados abertos para seus produtos. Se estes forem essencialmente estratégicos, a utilização estará sujeita a pressões internacionais e será relevante questão diplomática. Caso não se supere esse impasse, não se atingirá o propósito final de qualquer grande esforço tecnológico, que é sua utilização prática e obtenção de constantes proveitos. 

Quando a tecnologia é complexa, mas seus produtos não são estratégicos, a possibilidade de real independência tecnológica é maior. E talvez não seja então indispensável total independência, pois há elos e insumos fornecidos internacionalmente. Ainda assim alguns deles são produzidos por pouquíssimas fontes e poderão ser negados diante de questões político-econômicas que venham a surgir. 

Dominar uma tecnologia e não conseguir utilizá-la livremente será perda de capital, tempo e esforço investido. E se a utilização for mínima, as equipes tenderão a envelhecer e desfazer-se, os recursos materiais escassearão e a própria tecnologia, sem inovações, poderá tornar-se obsoleta. Este fenômeno ocorre até mesmo quando não se chega a dominar uma tecnologia.

Independência tecnológica é propósito a perseguir somente em casos críticos. Se perseguido imoderadamente, poderá resultar em colapso financeiro e malogro do desenvolvimento como um todo. Em geral, o possível e indispensável é uma bem planejada redução de dependências.

Redução bem planejada e contínua de dependências requer escolhas de rumos e sequências tecnológico-industriais compatíveis com os recursos necessários e os previsivelmente disponíveis. Deve ser a prioridade principal de um país como o nosso. É impossível realizá-la sem formar e utilizar retaguardas técnicas em níveis crescentes, até os mais altos escalões governamentais.

Com todas essas implicações, independência tecnológica tem que ser um propósito constante, mas realista. É um fim que só poderá ser atingido por uma gradual redução de dependências, contínua geração de desenvolvimento e consequente fortalecimento no cenário internacional.  

Nascedouros e Desenvolvimento de Tecnologias

Onde costuma iniciar-se uma cadeia tecnológica? Como vimos neste artigo, ela é longa e complexa, exigindo recursos intelectuais e materiais diversos e de lenta maturação. No nascedouro da cadeia tecnológica predominam os recursos intelectuais. Mas à medida que ela avança, são indispensáveis grandes investimentos, mesmo diante da possibilidade de insucesso. Assim, o nascedouro é normalmente uma instituição de ensino ou pesquisa, ou uma pequena empresa, mas o desenvolvimento ocorre em grandes firmas, laboratórios e instalações de testes e avaliações. Há casos em que a pequena empresa geradora consegue crescer e permanecer na cadeia tecnológica que gerou. Porém o mais provável é que seu controle acionário passe para outra firma com o capital e o porte necessários para chegar aos produtos finais e comercializá-los. Se esta última for estrangeira, ou mesmo uma empresa nacional sem vocação tecnológica, haverá natural tendência de a tecnologia autóctone gradualmente ser substituída por outra importada. Para minimizar este risco, é indispensável uma política tecnológico-industrial inteligente e atuante. 

Questão Capital

Em termos nacionais, transferência de tecnologia tem dois aspectos distintos: o primeiro é sua ocorrência frequente como instrumento de marketing e de atualizações de empresas; outro é sua utilização como elemento auxiliar para contínua ascensão tecnológica, particularmente em grandes programas de desenvolvimento e defesa. O segundo aspecto é capital. 

A questão mais essencial, urgente e complexa em programas de desenvolvimento e defesa é não desnacionalizar nossa indústria de defesa e decidir bem sobre associações tecnológicas com o exterior. Envolve a indústria e o Governo. Requer análises sucessivas de casos, cada uma servindo de base às seguintes, em contínua acumulação de conhecimento e experiência. 

Uma empresa tende a falir ou desnacionalizar-se quando a demanda de seus produtos e as condi&cc
edil;ões atuais são insuficientes para cobrir custos de operação, fazer investimentos e gerar lucros. Se a indústria for exclusivamente de defesa, cabe ao Governo — seu único cliente e responsável pela defesa do País — detectar tempestivamente essa situação, analisá-la e tomar providências. Essa ação óbvia ocorre em países de vanguarda.

Para agilidade e eficiência, a indústria de defesa deve ser prioritariamente privada. Portanto, pode falir ou ser vendida a estrangeiros. Se falir, se abrirá um flanco em nossa defesa, a não ser que outra nacional a substitua. Vendida a estrangeiros, haveria investimento direto do exterior e produtos tecnológicos inicialmente mais avançados. Mas esse progresso aparente seria um retrocesso real. Voltaríamos a ter o exterior como nossa Base Industrial de Defesa. Tecnologias recentes ficariam no exterior. Em geral, pouco ou nenhum interesse haveria em projetar ou fabricar aqui componentes críticos. Embora com produtos inicialmente mais avançados, mas com participação nacional sem alta densidade tecnológica, cessaria nosso esforço para crescente autonomia. Decisões estratégicas sobre nosso desenvolvimento e defesa seriam feitas no exterior. Por conveniências políticas ou econômicas, seriamos cerceados — contingência sempre existente —, mas sem ter cultivado a capacidade de superar cerceamentos. Haveria, enfim, uma aparência moderna para uma dependência antiga. Todas estas considerações também se aplicam, embora abrandadas, a indústrias de defesa com produtos não exclusivamente bélicos.

A desnacionalização da indústria de defesa frustra aspirações de desenvolvimento e garantia de  soberania e patrimônio. Porém, isolada, nossa indústria de defesa não atingirá altos níveis. São necessárias associações tecnológicas com o exterior. Que tipos de associações? Quando são necessárias? Como realizá-las?  Respostas a essas perguntas demandam análises em centros civis e militares de estudos de defesa, mas com participação direta da indústria de defesa. Cabe ao Ministério da Defesa solicitá-las. Alguns princípios são claros:

Finalidade. A finalidade de absorver tecnologia é progredir tecnologicamente por esforço próprio, mesmo após cessada a associação com o exterior. Para isso é indispensável participação intensa do setor técnico-científico nacional.

Cautela. Não existem soluções garantidas. Entre nações ou empresas, espere-se apenas cordialidade e interesses convergentes durante algum tempo. Resista-se a slogans sedutores de marketing (“transferências de tecnologia”, “saltos tecnológicos”, “plataformas de exportação”, etc.)

Esforço. Não existem boas soluções sem esforço próprio, inteligente e contínuo.

Potencial. Para absorver tecnologia, incluam-se pessoas já com o máximo possível de conhecimento, experiência e estabilidade, tanto no setor empresarial como no segmento técnico-científico. Mais aprende quem mais sabe.

Flexibilidade. É difícil prever as possíveis contingências, favoráveis ou não, de uma associação tecnológica com o exterior. Convém haver cláusulas contratuais que permitam flexibilidade para superá-las ou explorá-las. Quanto maior o porte, valor e duração prevista para a associação tecnológica, mais necessária será a flexibilidade.

Poder Decisório. O real poder decisório não é diretamente proporcional ao capital financeiro. Depende muito do capital intelectual, sempre maior no país mais avançado.

Modalidade. A modalidade escolhida deve ser a que melhor atenda ao conjunto de princípios acima. Há várias modalidades de associação tecnológica: instrução e treinamento, assistência técnica ocasional, assistência técnica intermitente, assistência técnica constante, fabricação sob licença, “joint venture”, assistência mútua e participação acionária. Nesta última, há que atentar-se muito à questão do real poder decisório.

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