Depois de 26 anos, Embraer deve voltar a ter aporte estatal

Pedro Celestino, presidente do Clube de Engenharia: "Se o Brasil decidir vender agora, não vai encontrar comprador". Foto: Fernando Alvim.

Vencida a resistência no governo, analistas esperam participação de US$ 1 bilhão do BNDES no capital da companhia

Por Maria Cristina Fernandes
Publicado no Valor Econômico - 04/05/2020

Vinte e seis anos depois da privatização, o futuro da Embraer deve passar, novamente, por participação estatal. O aporte do BNDES deve se dar pela emissão de, pelo menos, US$ 1 bilhão em ações e diluição dos atuais sócios. A ação, na baixa histórica, sinaliza que o mercado já espera o desfecho.

A resistência do Ministério da Economia à operação foi vencida, em grande parte, pela proximidade entre o titular da pasta, Paulo Guedes, e o vice-presidente do Conselho de Administração, Sergio Eraldo Pinto, antigos sócios na Bozano Investimentos, hoje Crescera. A relação, que azeitou a decisão do governo Jair Bolsonaro de não usar a ação preferencial (“golden share”) para vetar a venda para a Boeing, facilitará o desenlace no sentido inverso.

 "Operação seria parecida com aquela que salvou a indústria automobilística nos EUA na crise de 2008"

Uma emissão para o mercado de capitais foi descartada pela crise. Novas parcerias apenas serão buscadas quando a pandemia estiver superada. A ideia não é que a União, que hoje tem, por meio da BNDESPar, cerca de 5% da companhia, volte a controlá-la. Isso a engessaria na disputa de mercado. A busca é por liquidez para atravessar o fundo do poço da pandemia.

O passo seguinte ainda está em aberto. O discurso oficial será o de que a Embraer foi vítima de uma traição da Boeing e precisa se recuperar para ser novamente vendida. É uma maneira de tentar contornar o discurso de campanha do presidente Bolsonaro que criticava a “caixa preta” do BNDES.

Quando o presidente diz que a União busca um novo comprador já está levando em consideração a posição futura da BNDESPar, mas não é pra já. O vice-presidente, Hamilton Mourão, mais comedido, comentou que a rescisão abre novas perspectivas para a empresa e acenou para a busca de parcerias depois da pandemia.

Analistas acreditam que o vice esteja mais próximo da realidade, ainda que a China, opção aventada por Mourão, seja uma parceria de viabilidade duvidosa. Primeiro porque não se acredita que os chineses repitam, face ao stress com o atual governo, decisões como a do leilão do pré-sal, em que foram os únicos estrangeiros presentes.

Depois, porque uma aquisição majoritária da China prejudicaria o mercado da Embraer para uma de suas maiores apostas, o KC-390, rebatizado de C-390 Milllenium, o cargueiro desenvolvido para substituir o lendário C-130 Hércules, da americana Lockheed. O Pentágono, por exemplo, veta aquisições de empresas com capital majoritário chinês. E, finalmente, pesa contra a associação com os chineses o fracasso da operação iniciada pela Embraer naquele país no início do século.

A empresa foi para a China na expectativa de que poderia por em pé sua linha de produção do avião regional num país que só fabricava turbo-hélice. A produção local ficou limitada aos jatos. No ano passado, já com a parceria desfeita, a China não comprou um único avião da Embraer, que passou a competir diretamente com a Comac, indústria local desenvolvida a partir do know-how adquirido com a joint-venture com a brasileira.

“A volta do BNDES à Embraer seria parecida com a ação do governo americano para a indústria automobilística, especialmente a General Motors, na crise de 2008. Entra pra segurar e depois estrutura uma saída com a revenda das ações”, afirma o presidente do Clube de Engenharia, Pedro Celestino. “Não há comprador hoje para a Embraer num mercado que teve sua atividade reduzida em cerca de 90%”, destaca.

O dirigente da entidade centenária, que congrega uma fatia importante da comunidade técnica de fornecedores e consultores do polo industrial do Vale do Paraíba onde está instalada a Embraer, não vê saída de longo prazo para a Embraer sem uma parceria que facilite a logística mundial de manutenção das aeronaves, em função da aquisição, pela Airbus, da maior concorrente da Embraer na aviação regional, a Bombardier.

A grande dúvida, entre analistas, é se o fatiamento da Embraer em três empresas será mantido. Quando a operação, agora desfeita, foi firmada, a Boeing ficaria com 80% da operação comercial (sem conceder direito de voto no conselho de administração aos 20% da Embraer), e 49% de uma joint venture criada com a empresa brasileira para a comercialização do C-390 Millenium. Uma terceira empresa abrigaria as linhas de defesa e dos jatos executivos com capital 100% Embraer.

Só com essa cisão, a Embraer gastou R$ 458 milhões, o que colaborou para o prejuízo de R$, 1,3 bilhão em 2019. A operação já havia sido aprovada pelos órgãos de concentração no Brasil e nos Estados Unidos mas carecia de aprovação na Comunidade Europeia, sede da Airbus. Ainda que não tenham sido divulgados os resultados do primeiro trimestre, espera-se que a conta do fatiamento já tenha chegado a R$ 600 milhões.

Avalia-se que, para reagrupá-la, os gastos da Embraer (que não foram divididos com a Boeing) cheguem a R$ 1 bilhão. A alternativa, porém, é mais custosa. A manutenção do fatiamento traria um ônus tributário para a operação, uma vez que a empresas teriam que pagar ICMS e outras obrigações nas transações internas.

A Boeing desfez a operação com a Embraer, firmada em janeiro de 2019, pela soma de duas crises: o fim da operação do carro-chefe da empresa, o 737 Max, depois de dois graves acidentes aéreos, e a pandemia da covid-19. A empresa americana, que fechou o primeiro trimestre do ano com uma dívida de U$ 23 bilhões, busca uma solução de mercado, com a oferta de US$ 25 bilhões em títulos. Analistas se mostram céticos sobre a capacidade de a empresa lidar com um endividamento que pode beirar os U$ 50 bilhões num mercado de retomada ainda incerta.

A europeia Airbus, maior empresa de aviação do mundo, teve, no primeiro trimestre de 2020 prejuízo de US$ 522 milhões, e, para analistas, não terá como sair da crise sem aportes estatais.

As razões para o distrato só serão apresentadas pela Boeing durante a arbitragem. A dupla crise 737 Max/pandemia não está abrigada pelos termos do contrato. A Embraer esperava ter uma posição de caixa bem superior ao endividamento de maneira que seus acionistas, com a conclusão da operação, fossem contemplados com dividendos da ordem de US$ 1,6 bilhão. É, sobretudo, a distribuição desses dividendos que move a empresa na briga judicial nos Estados Unidos, mas, por ora, a única certeza é de que a Embraer saia com os US$ 100 milhões da multa contratual, o que não daria para cobrir nem os gastos com o fatiamento da empresa.

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