O Brasil na contramão do mundo na desverticalização absoluta no transporte de gás natural

Foto: Flavio Emanuel/Petrobras

Por Paulo César Ribeiro Lima, PhD, ex-Engenheiro da Petrobras, ex-Consultor Legislativo do Senado Federal e Consultor Legislativo Aposentado da Câmara do Deputados (16/12/2020)

No dia 10 de dezembro de 2020, o Plenário do Senado aprovou o Projeto de Lei – PL no 4.476, de 2020, que estabelece um novo marco legal para o setor de gás no Brasil. Como foi modificado, o projeto retorna à Câmara dos Deputados apenas para análise das emendas aprovadas no Senado.

O novo marco legal vai substituir a legislação atual sobre o tema, nos termos da Lei no 11.909, de 2009. O projeto substitui o modelo jurídico atual para exploração do serviço de transporte de gás natural e para a construção de gasodutos, alterando de concessão para autorização, em que a empresa apresenta um projeto após chamada pública e aguarda a aprovação da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP).

Foram apresentadas 20 emendas no Plenário, das quais o Relator acatou quatro, de forma total ou parcial. Com base em uma sugestão do Senador Oriovisto Guimarães (Podemos-PR), o texto passou a permitir o acesso do biometano à rede de gasodutos, de modo a favorecer a produção e o consumo de gás produzido a partir de resíduos orgânicos.

O relator também acatou uma emenda da senadora Rose de Freitas (Podemos-ES), que determina que as unidades de processamento de gás natural sejam instaladas preferencialmente nos municípios produtores.

Outra sugestão acatada, do senador Rogério Carvalho (PT-SE), reserva aos estados o serviço local de gás. O senador Weverton (PDT-MA) também teve uma emenda acatada e o texto passou a prever a possibilidade de a atividade de transporte de gás ser exercida por meio de parceria público privada (PPP).

A Senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA) apresentou destaque para retirar um artigo que, segundo ela, poderia prejudicar a produção de energia limpa na região Nordeste, por indicar prioridade, em determinados leilões de energia, aos Estados da região Amazônica, com as chamadas termelétricas inflexíveis. Levado a votação, o destaque foi aprovado por 38 votos a 33 e o art. 41 foi retirado do texto aprovado.

O Senador Jean Paul Prates (PT-RN) elogiou o relatório, mas disse ter reservas com algumas emendas do Relator e reclamou do pouco tempo para análise das mudanças no projeto.

Para o Senador Acir Gurgacz (PDT-RO), o projeto é de grande importância para o País e, de maneira especial, para Rondônia. O Senador Oriovisto classificou o relatório como “magnífico”, enquanto o Senador Ciro Nogueira (PP-PI) definiu o Relator como “profundo conhecedor do tema”. Na mesma linha, o Senador Jayme Campos (DEM-MT) elogiou o relatório e defendeu o projeto.

Tanto no Senado Federal quanto na Câmara dos Deputados foram apresentadas emendas com o objetivo de suprimir o § 1o do art. 5o. No entanto, nenhuma emenda com tal objetivo foi aprovada. Transcreve-se, a seguir, esse parágrafo:

Art. 5o ..............................................
§ 1o É vedada relação societária direta ou indireta de controle ou de coligação, nos termos da Lei no 6.404, de 15 de dezembro de 1976, entre transportadores e empresas ou consórcio de empresas que atuem ou exerçam funções nas atividades de exploração, desenvolvimento, produção, importação, carregamento e comercialização de gás natural.

Como esse parágrafo foi mantido pelo Senado Federal, em breve, deve- se ter no Brasil uma lei que veda a participação relevante da Petrobrás, da Shell, da ExxonMobil, da Petrogal, da Total, entre outras, enquanto empresas produtoras, em qualquer empresa ou consórcio de empresas que atuem no transporte de gás.

Em seus últimos Planos de Negócios e Gestão, a Petrobrás tem manifestado a intenção de sair do segmento de transporte de gás natural. Nessa linha, a Nova Transportadora do Sudeste (NTS), antiga subsidiária integral da Petrobrás, já foi privatizada em razão de a estatal ter vendido 90% do capital da empresa para a Brookfield Brasil (82,35%) e a Itaúsa (7,65%). Os 10% restantes da Petrobrás estão em fase vinculante de venda. A NTS é a empresa proprietária dos gasodutos da Região Sudeste.

A Transportadora Associada de Gás (TAG), antiga subsidiária integral de Petrobrás, também já foi privatizada, pois a estatal vendeu 100% do capital da empresa para o grupo Engie/CDPQ. A TAG é a empresa proprietária dos gasodutos das Regiões Nordeste e Norte.

Dessa forma, restou como importante estatal do segmento apenas a Transportadora Brasileira Gasoduto Bolívia-Brasil S.A. (TBG), cuja composição acionária é a seguinte: Petrobrás (51%), BBPP Holdings Ltda. (29%), YPFB Transporte do Brasil Holding Ltda. (12%) e GTB-TBG Holdings S.À.R.L. (8%).

Entende-se que, assim que a nova lei do gás for promulgada, ficará a Petrobrás legalmente obrigada a privatizar e a deixar de ter participação relevante na TBG e em qualquer outra empresa do segmento de transporte de gás. Se no caso da NTS e da TAG as privatizações decorreram de decisões gerenciais, no caso da TBG, a privatização poderá ser uma obrigação legal.

Além disso, como já mencionado, a Petrobrás e outras empresas produtoras e importadoras ficaram impedidas de terem qualquer participação relevante em consórcio que atue no transporte de gás natural.

Com a descoberta da província petrolífera do Pré-Sal o Brasil poderá vir a estar entre os cinco países maiores produtores de petróleo e gás natural. A Figura 1 mostra os cinco países que mais produziram gás natural em 2019.

Figura 1: Maiores países produtores de gás natural

Nos Estados Unidos, país de grande desverticalização e com muitas empresas especializada no transporte de gás natural, não há impedimento legal de empresas produtoras terem participação relevante em transportadoras.

Nesse país, em abril de 2020, a ExxonMobil recebeu parecer favorável da Federal Energy Regulatory Commission para dobrar a capacidade de um gasoduto de 135,2 milhas de propriedade da empresa e da Summit Midstream Partners [1].

Na Rússia, a estatal Gazprom é proprietária da maior rede mundial de transporte de gás natural, que, em sua maioria, é parte do Sistema Unificado de Fornecimento de Gás da Rússia (Unified Gas Supply System – UGSS) [2]. O UGSS engloba a produção, o processamento, o transporte, a estocagem e a distribuição na porção europeia da Rússia e na porção leste da Sibéria. O sistema garante o contínuo suprimento de gás para o consumidor final.

Nos outros três maiores produtores mundiais de gás natural: Irã, Qatar e China, o transporte de gás natural é feito basicamente por empresas estatais.

Também merece destaque a Noruega, oitavo maior produtor de gás natural em 2019, cujo modelo do setor petrolífero tem sido referência no cenário internacional. Nesse país, o transporte é centralizado principalmente na empresa estatal Gassco AS.

Diante do cenário mundial, considera-se coerente e tecnicamente correta a visão da Senadora Zenaide Maia (Pros-RN), ocorrida na votação no Senado Federal em 10 de dezembro de 2020, que disse temer que as regras prejudiquem a atuação da Petrobrás no transporte e na comercialização do gás.

Em resposta, o Relator do PL no 4.476, de 2020, Senador Eduardo Braga, informou que a Petrobrás tem um plano de desinvestimento em algumas áreas, como o setor de transporte de gás, para se concentrar em áreas onde a empresa tem mais “expertise”.

A “expertise” da Petrobrás no segmento de transporte de gás natural é tão grande que a estatal, por meio de sua subsidiária integral Transpetro, continua sendo a operadora dos gasodutos da NTS e da TAG, pois aparentemente falta “expertise” aos compradores.

Não se consideram coerentes, contudo, as falas de Senadores do Partido dos Trabalhadores e do Partido Democrático Trabalhista, supostamente defensores da Petrobrás no segmento e contrários às privatizações da NTS e da TAG, pois pouca importância deram ao tema no debate no Senado Federal ocorrido em 10 de dezembro de 2020.

No encaminhamento da votação, o Líder do Partido dos Trabalhadores, Senador Rogério Carvalho, passou a palavra para o Senador Jean Paul Prates que sequer mencionou a importância da Petrobrás no segmento de transporte de gás e a retirada do destaque da emenda que suprimia a radical desverticalização proposta.

Um monopólio natural como o transporte de gás natural precisa, de fato, ser regulado. Pode até ser exigida a criação de uma empresa subsidiária com uma contabilidade separada, como ocorre, por exemplo, no setor elétrico nacional. Contudo, não é essa a desverticalização estabelecida no § 1 do art. 5o do Projeto de Lei no 4.476, de 2020, aprovado no Senado Federal e na Câmara dos Deputados.

A desverticalização aprovada pelo Congresso Nacional é sim uma inconsistência técnica que prejudica o Paísl, pois inibe investimentos e restringe a própria competição tão defendida por muitos senhores Parlamentares. Essa inconsistência torna-se mais grave ainda no caso do Brasil, onde a produção de gás natural está associada à produção do petróleo, especialmente na província do Pré-Sal.

Em suma, a TBG poderá ter que ser privatizada e a Petrobrás e outras importantes empresas petrolíferas, ao contrário do que ocorre nos países maiores produtores de gás, não poderão ter participação relevante no segmento de transporte de gás, enquanto produtoras ou importadoras. Nem nos Estados Unidos, maior produtor mundial, isso ocorre. Nos outros quatro países maiores produtores de gás natural, também não existe tal restrição. Na realidade, o Brasil está caminhando na contramão do mundo.

Referências
[1] Disponível em https://finance.yahoo.com/news/exxonmobil-gets-regulatory-nod-double-140202295.html. Acesso em 16 de dezembro de 2020.
[2] Disponível em https://www.gazprom.com/about/production/transportation/. Acesso em 16 de dezembro de 2020.

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