Por que a resposta ao massacre do Jacarezinho é essencial?

Em artigo, ex-secretário nacional de segurança pública afirma que está em jogo um dos principais desafios à democracia. Foto: Reprodução/Voz das Comunidades

Por Luiz Eduardo Soares, ex-secretário nacional de segurança pública
Publicado em Jornal GGN

Por que a resposta ao massacre do Jacarezinho é essencial? Primeiro, claro, porque as famílias dos mortos merecem o respeito que às vítimas não se concedeu. É necessário responsabilizar quem perpetrou homicídio, direta ou indiretamente, da ponta à cadeia de comando. Segundo, porque a resposta determinará, em parte, o futuro. Terceiro, porque está em jogo um dos principais desafios à democracia brasileira, ao que dela nos resta. Como as duas primeiras afirmações prescindem de explicação, passo a tratar da última, convocando a história para iluminar a conjuntura.

Durante a transição política e mesmo no período constituinte, que culminou na promulgação da Constituição, em 1988, os representantes da ditadura em declínio ainda detinham poder suficiente para, se não equilibrar a correlação de forças, ao menos impedir que o polo democrático exercesse plena hegemonia. A demonstração talvez mais ostensiva do peso do antigo regime naquelas tensas negociações foi o atendimento à exigência dos militares e das lideranças corporativistas das categorias profissionais envolvidas de que o campo institucional da segurança pública não fosse submetido ao processo de mudança. Impôs-se, então, uma reserva estratégica, preservando-o. O modelo policial forjado pela ditadura, sobretudo a partir de 1969, e único no mundo, foi mantido no artigo 144.

E assim a ditadura legou ao futuro uma herança de obscurantismo e sangue. A preservação do status quo institucional não significa apenas a manutenção de arranjos funcionais e formalidades. Os organogramas estão carregados de seres humanos que trazem consigo valores, crenças, hábitos, tradições, modos de formação de identidade e de produção de lealdades, rivalidades e preconceitos, regimes próprios de regulação de afetos e de organização das economias subjetivas, linguagens compartilhadas, repertórios de memória coletiva, o ódio e o desprezo aos supostos inimigos, a confusão entre justiça e vingança, assim como a visão da própria missão como exorcismo do mal que ameaça os “homens de bem” (não faz muito tempo, um coronel PMRJ definiu a polícia como inseticida social). Os formatos institucionais e as dinâmicas de trabalho não são alheios a essa matéria densa que a história gestou.

Pelo contrário, estão profundamente impregnados dessa profusão de elementos incandescentes, sobretudo quando expostos ao fogo do racismo estrutural e da hiper-exploração de classe, em nosso capitalismo autoritário. Todos esses fatores plasmam a atuação cotidiana e são metabolizados nas culturas corporativas das polícias civis e militares. Pois esse amálgama foi consagrado pela Constituição. Engana-se quem acredita possível separar, na experiência concreta das instituições, o osso das regras da carne que lhes empresta vida, a vertebração formal do espírito que a move. Em suma, criou-se um enclave institucional avesso à democracia, refratário ao Estado de direito, resistente à autoridade política, civil, republicana – embora haja milhares de trabalhadores policiais adeptos dos valores democráticos e ainda que tenha havido esforços verdadeiramente heroicos de reversão da lógica perversa. Prevaleceu a história, que porta a marca de sua origem: a mais recente, a ditadura, e a mais remota, a escravidão – que a ditadura ecoou e que as práticas ainda correntes, hoje, fazem ressoar.

Havia um contra-argumento, por ocasião do endosso à Carta Magna: se, de um lado, o modelo policial seria mantido, por outro, transformava-se o Ministério Público em uma super-instituição e se lhe atribuía a autoridade e o dever de exercer o controle externo da atividade policial. Estaria ali, portanto, instaurado um análogo do sistema de checks and balances. O que escapou à inteligência dos constituintes foi a hipótese de que, inexistindo controle externo sobre o controlador externo, o MP acabasse descumprindo sua obrigação constitucional e as polícias navegassem ao léu, em mar revolto, sem bússola, seguindo apenas sua tradição de brutalidade enviesada, fazendo seu ardor belicista, contrário aos direitos humanos, desaguar no genocídio de jovens negros e pobres, e em banhos de sangue, nas favelas e periferias.

Depois de três décadas, o enclave se cristalizou e fortaleceu, escapando ao escrutínio do MP e ao comando dos governadores. O Rio de Janeiro tem sido o exemplo mais nítido de uma realidade, entretanto, nacional. Enclave que perdura porque não é confrontado pelos poderes republicanos. O MP se omite ou é ativamente cúmplice da brutalidade policial letal e de tantas outras violações que a antecedem, sucedem ou acompanham. O Judiciário, “que só age provocado”, acaba abençoando a inércia do MP e contribuindo para a naturalização da barbárie. Os governadores bem intencionados, que ensaiam se rebelar contra a própria impotência, hesitam e recuam, temendo o poder policial de provocar danos políticos (spoiling power). A maioria, entretanto, prefere, em aliança com segmentos da mídia e da opinião pública, extrair benefícios demagógicos da liberdade com que agem, contra as leis e os tratados internacionais, os policiais “operacionais”, militares e civis, agrupados em esquadrões da morte, scuderies ou milícias, que são variações da mesma autonomização ilegal, marcas registradas do enclave. Hierarquia e disciplina não há dentro do enclave, essa bolha institucional parada no tempo, que conviveu desde 1988 com a vitalidade democratizante da sociedade brasileira – contrarrestada pelos seguintes movimentos: o golpe parlamentar de 2016; a ruptura do pacto constitucional e sua substituição pela agenda neoliberal; a politização do judiciário, visando a exclusão de Lula da disputa eleitoral; e a emergência do fascismo sem disfarces, capaz de propor, despudoradamente, a flexibilização do acesso às armas e o “excludente de ilicitude”, no país que já é campeão da violência policial.

Como se deduz da descrição que propus, o enclave era, predominantemente, bolsonarista avant la léttre. O presidente apenas deu corpo político-ideológico à cultura do enclave, inscreveu-a (paradoxalmente) na institucionalidade e a instalou no poder. Ao homenagear um torturador, exaltou práticas e valores oriundos dos porões (da história e da ditadura).

O Estado de direito no Brasil tem amargado, desde sua inauguração formal, em 1988, essa contradição (as leis e o enclave, os poderes civis republicanos e o enclave) que o desqualifica e, tantas vezes, o nega -sem mencionar que a própria estrutura de classes, o racismo estrutural e o patriarcalismo já o confrontavam e o condenavam a ambiguidades e limites estreitos.

Como não há partidos e elites liberais no Brasil (elas o são apenas na economia e, mesmo assim, desde que a “livre concorrência” não lhes seja desfavorável -ante riscos não hesitam em trocar a mão invisível pela intervenção protecionista), algumas bandeiras típicas da revolução burguesa oitocentista, como os direitos humanos, passaram a ser erguidas exclusivamente pelas esquerdas, reduzindo seu impacto sobre o conjunto da sociedade e sua efetividade. Assim, têm sido empurradas para o gueto político as pautas mais triviais do que há de respeitável, democrático e progressista na tradição liberal, como a legalização das drogas e do aborto, o controle da violência policial e do encarceramento em massa, por viés racista, os direitos das minorias, etc.

Nesse ambiente, o enclave logrou manter-se, abandonando crescentemente o pudor no exercício de sua autonomia ilegal, a ponto de reivindicar a legalização de sua independência. Em lugar de intervenção forte e abrangente, por parte dos poderes da República, que rompa o enclave, submeta as polícias à autoridade republicana e as subordine às determinações legais e constitucionais, o que testemunhamos, depois de milhares de execuções extra-judiciais absolutamente impunes, são promessas retóricas de apurações rigorosas e punições, “caso constatadas irregularidades”. As violações que não podem ser negadas ou justificadas são definidas como excessos eventuais, ações de indivíduos maltreinados, desvios de conduta condenáveis mas isolados, que não devem colocar em xeque as instituições.

Em junho de 2020, o Supremo Tribunal Federal (por meio de decisão liminar do Ministro Edson Fachin, depois respaldada pelo Pleno) proibiu operações policiais em favelas durante a pandemia, a menos que houvesse situação extrema que colocasse em risco a vida dos moradores. Mesmo em tal eventualidade, diversas condições teriam de ser observadas. O Tribunal respondia ao pleito formulado na ADPF 635 (Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental), elaborada pelo Dr. Daniel Sarmento, em nome do PSB, em conjunto com a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro e várias entidades de defesa dos direitos humanos. Os números de mortes provocadas por ações policiais que explodiam até aquele momento despencaram, com uma rapidez e numa escala nunca vistas. E, ao contrário do que profetizavam os porta-vozes do governo estadual e das polícias, os crimes não aumentaram. Estava demonstrada, na prática, o que já se sabia: a violência policial não é política de segurança: gera crime, é crime, não reduz criminalidade.

Contudo, a partir de outubro de 2020, os números voltaram a subir, as operações voltaram a acontecer, sem que as condições requeridas pelo Supremo fossem respeitadas. Estava em marcha a mais ostensiva tentativa de desmoralização do STF de que se tem notícia, no país, se deixarmos de lado as manifestações das hordas fascistas na internet e nas ruas.

Os movimentos sociais, as entidades de direitos civis e os envolvidos na formulação da ADPF 635 dirigiram-se ao Supremo, denunciando o que ocorria e solicitando sua intervenção para interromper o processo brutal em curso e restaurar sua autoridade. O MP manteve-se inerte. 5 Finalmente, nos dias 16 e 19 de abril de 2021, o Ministro Fachin conduziu audiência pública, ouvindo as partes envolvidas.

Menos de um mês depois, a polícia civil promoveu o massacre no Jacarezinho com os requintes de crueldade conhecidos, alcançando quantidade recorde de vítimas, numa operação que também provocou a morte de um policial. Na entrevista coletiva posterior, os responsáveis exibiram arrogância inaudita, que só os tempos atuais tornariam possível. Afirmaram que as condições estabelecidas pelo Supremo haviam sido atendidas: quanto à necessidade (adolescentes estariam sendo aliciados) e ao controle -por exemplo, a perícia teria se realizado. O morticínio teria sido o resultado “exitoso” de dez meses de “trabalho de inteligência”. A seguir, vieram outras declarações lamentáveis: “Eram todos bandidos”. Depois, saberíamos que não eram (mesmo que fossem, antes do julgamento seriam suspeitos -além disso, mesmo criminosos têm direitos). Vários sequer suspeitos eram. Não houve perícia em todos os casos, longe disso. O “trabalho de inteligência” teria sido a identificação de algumas fotos nas redes sociais, divulgadas pelos próprios suspeitos. Quanto à necessidade, por sua extrema gravidade e urgência, o que dizer? A afirmação das autoridades soou a escárnio. Aliciamento de jovens há onde há tráfico. Derivam-se daí algumas perguntas: Por que no Jacarezinho? Por que naquele momento? E quanto às demais comunidades, onde o tráfico atua? Por que daquela forma? O objetivo foi alcançado? Não há mais tráfico e aliciamento no Jacarezinho? Que sentido faz esse tipo de incursão? Em que política de segurança se insere a invasão bélica do Jacarezinho? Que sentido faz a guerra às drogas, depois de décadas de morte, sofrimento, tragédias, barbárie, sem que tenha havido qualquer avanço quanto ao controle de práticas ilegais, sem que se tenha produzido qualquer benefício? A ilegalidade do comércio varejista de substâncias ilícitas é mais perniciosa do que o crime contra vida, é mais grave do que as execuções de inocentes e suspeitos?

O que estava por trás dessa estratégia mórbida seria o favorecimento de milícias ou de outras facções do tráfico? Não creio. O que estava e está em jogo é o enclave, afrontado pelo STF, em decisão histórica. Está certo Luiz Nassif quando afirma que o massacre no Jacarezinho representa uma resposta acintosa e desafiadora ao Supremo, afronta que se articula, intencionalmente ou não, de modo planejado ou não, a movimentações de grupos fascistas contra a Corte Suprema, no poder e nas ruas. Acrescento, entretanto, outra dimensão político-institucional: em 2016, o pacto celebrado em 1988 foi rasgado; agora, o que as forças regressivas desejam e tentam promover é a legitimação (e futuramente a institucionalização) da fratura que tem marcado o Estado democrático de direito no Brasil, atravessado e precarizado pela existência, e persistência, do enclave institucional que as polícias representam. Se antes a fratura, o enclave, assim como a barbárie que enseja, estavam naturalizados, com o Jacarezinho, a depender da reação do STF, se legitimará, preparando o próximo passo, o lance final contra a democracia: a institucionalização definitiva da autonomia policial, de que o excludente de ilicitude será um (funesto) detalhe.

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