ATHIS: a arquitetura como uma construção coletiva pela moradia plena

A Assistência Técnica para Habitação de Interesse Social (ATHIS) é o espaço onde a arquitetura identifica seu papel dentro da democracia. Ela é o encontro, por meio do trabalho totalmente integrado, de profissionais com aqueles que hoje, nas periferias das cidades e nas favelas, fazem arquitetura sem arquitetos. A ATHIS é para muitos arquitetos o único caminho possível para resolver de fato a questão da moradia nos grandes centros urbanos. Por isso, do dia 25 a 27 de novembro, é debatida e pensada em seminário nacional realizado pelo Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU), no Clube de Engenharia.

O debate é, sobretudo, sobre uma lei que não é efetivamente cumprida. Isso porque no Natal de 2008 a ATHIS foi oficializada como direito com a sanção da Lei 11.888. O texto regulamenta o artigo 6º da Constituição Federal, que estabelece a moradia como um direito social. Dentro desse contexto, o seminário elabora um documento apontando obstáculos, avanços e estratégias de ação com dois olhares especiais: o ano eleitoral de 2020, onde os arquitetos acreditam que um municipalismo atualizado pode construir as bases de uma sociedade mais justa, e o UIA 2020, o 27º Congresso Mundial de Arquitetos que acontecerá no Rio de Janeiro.

No discurso de abertura, Ricardo Gouvêa, gerente geral do CAU/RJ, apontou o norte principal do evento. “O diálogo mais importante é com a população a quem uma ação de ATHIS é direcionada. ATHIS pode significar a ampliação do campo de trabalho de arquitetos e outros profissionais, mas não pode ser restrita a uma lógica corporativa autorreferenciada. Ela deve estar a serviço da construção de políticas públicas, programas e de um marco legal que confiram direitos, justiça e dignidade à população excluída”, destacou, finalizando o discurso de abertura do evento citando o samba enredo da Unidos da Tijuca desse ano, apoiado pelo CAU: “Dignidade não é luxo, nem favor”.

Uma história de desigualdade ligada à terra
A palestra magna da professora, arquiteta, urbanista, pesquisadora e ativista Erminia Maricato, do BrCidades – uma articulação nacional para construir um projeto para as cidades brasileiras – fez uma viagem histórica por fatores que estruturaram o caos da habitação nas grandes cidades pontuando bons e maus exemplos de aplicação da ATHIS ao longo da história recente do país. Segundo Erminia, sempre lhe causou estranhamento notar que a questão urbana é invisível para os economistas e muitos intelectuais brasileiros. “Afinal – pergunta ela – por que o o Brasil urbano é tão desconhecido”?

Para responder a pergunta, Erminia aponta o quão recente é a questão das cidades no país. De meados do século XX até os anos 2010, o mapa urbano do Brasil mudou radicalmente. Um país predominantemente rural transformou-se em um país com enormes concentrações urbanas. Em 1900, apenas 9,40% da população brasileira era urbana. Em 2017, pouquíssimo tempo para a história de uma nação, já chegamos a 84,40% dos brasileiros morando em cidades.

Atrelado a essa escalada vertiginosa de ocupação, as próprias raízes do país revelam a perpetuação das desigualdades. Foram 388 anos de escravidão, quase 4/5 da nossa história, 322 anos como colônia, 400 anos de economia e população rural e menos de 60 anos como país predominantemente urbano. Na libertação dos escravos, a questão da terra se estabelece: havia um cuidado para que essa mão de obra liberta não tivesse acesso à terra. “Há um processo de libertação da mão de obra e escravização da terra porque o poder tinha que vir de algum lugar”, explica a professora, apontando ainda que, nesse mesmo país, houve colonização branca com distribuição de terras, como o caso de Erechim, no noroeste do Rio Grande do Sul. “Em um mesmo país há uma regra para não deixar a população negra chegar na propriedade da terra e seguir sendo mão de obra livre e brancos que vieram para o Sul e tiveram acesso à terra, distribuída em alguns locais”, aponta Erminia.

Quando toda essa população marcada por séculos de desigualdade pensada e aplicada por força das elites chega à cidade, não há caminho possível que não a autoconstrução. “Com a industrialização entre os anos 1940 e 1980, ocorre uma urbanização acelerada. Cerca de 71 milhões de pessoas migraram para a cidade em 40 anos, ou melhor, a cidade que os recebeu não existia. Eles produziram o próprio assentamento e assim as cidades foram se formando, com uma produção desconhecida, invisível, informal, ilegal e sem conhecimento técnico”, destaca a palestrante.

Processo estrutural e disputa de narrativas
A população se instala com sua própria força e recursos em um processo de industrialização de baixos salários. Nascem as favelas e as periferias com a autoconstrução e sem a presença efetiva do Estado. “A ocupação ilegal é compulsória. As pessoas não evaporam: elas precisam morar. Mais de 50% dos domicílios do Rio de Janeiro estão ilegais e a aplicação da lei é um ardil: se a população está ilegal, é possível expulsá-la quando necessário, como aconteceu nas obras da Copa do Mundo”, aponta Erminia. “O processo é estrutural. E o que pode um Plano Diretor dentro de um processo estrutural? A lei não vai mudar essa realidade. Não há saída fora da ATHIS”, destaca.

O processo de ocupação sem Estado, sem acesso à água potável, sem a possibilidade da coleta de lixo, cria favelas ao lado de arranha céus e há uma relação aí: “a favela é como é porque os bairros nobres são como são”. Ela aponta para um sistema que produz alienação e desinformação, sem as quais seria impossível manter as coisas como estão: “O conhecimento da realidade é transformador. Não vamos implementar a ATHIS se não fizermos a luta das narrativas sobre a cidade. Precisamos firmar esse compromisso e sair da bolha: escrever, filmar, debater em todos os lugares e construir nesse debate o que é a cidade real e quais são as condições de moradia da maior parte da população”, afirma Ermínia, apontando a esperança: “Há uma mudança clara dentro das universidades. Os novos arquitetos estão cada vez mais atentos à realidade. Espero que esse seja um movimento histórico que marque esse século: um compromisso com a realidade das cidades e não os fetiches que nos cercam”, comemora.

Os fetiches citados e que envolvem a arquitetura moderna são fortes obstáculos destacados por Erminia. Para ela, uma arquitetura de autoria coletiva não se presta ao fetiche, não é “a obra assinada por alguém”, e isso cria entraves. “Nós precisamos destacar que a virtude dela está justamente nisso: na coletividade. A arquitetura que é resultado de ação coletiva tem alguma chance de de tornar paradigma em livros, concursos e exposições?”, indaga a professora.

Experiências, avanços e retrocessos
No campo da prática, a ATHIS é uma realidade, e Erminia trouxe as experiências das prefeituras democráticas, principalmente em São Paulo, que tem 30 anos de ativismo e ATHIS. “Olhamos para a cidade que era invisível e ela nos disse que deveríamos fazer urbanização de áreas precárias, melhorias habitacionais, regularização fundiária e novas moradias”. Citando o governo Saturnino Braga e o projeto Favela Bairro no Rio, ela aponta que a urbanização de favelas é um projeto complexo que envolve remoções e reassentamentos, mas é algo que aprendemos a fazer. “Nós temos competência em fazer urbanização de favelas, que não é nada fácil. No início, na gestão Erundina, quando fui secretária, as empreiteiras não queriam essas obras. Elas queriam terreno limpo, ninguém amolando. Mas favelas são canteiros conflagrados. Nós colocávamos os recursos à disposição. Se não quisessem pegar a obra, tudo bem, procuraríamos quem quisesse. E foi assim que várias empresas adquiriram know how nessa área”, relembra.

Entre as experiências menos bem sucedidas, ela critica a mais recente delas: o Minha Casa Minha Vida que, segundo Erminia, foi um retrocesso que não poderia ter acontecido. “Como com 30 anos de tradição, construímos o que o Minha Casa Minha Vida construiu? Como vivemos essa regressão na política urbana?”, indaga.

Entre os vários fatores envolvidos destaca o deslocamento das forças vivas que atuavam nas prefeituras democráticas para o poder central e conselhos institucionais, saindo das ruas, das praças e das periferias, se distanciando do povo. “A participação democrática aconteceu quando faltavam recursos. Quando eles finalmente apareceram, os lobbys tomaram conta do espaço e o resultado foi a construção de moradias sem cidade: grandes conjuntos habitacionais afastados das cidades, isolados, sem integração”, explica. No caminho, entre as cidades e os grandes conjuntos, muita terra vazia – mas com dono – valorizadas com as redes de esgoto, luz e água que agora passam por elas para abastecer as novas moradias. “São cidades fadadas a serem caras, que vão correr atrás do prejuízo por 30 anos. As pessoas ali não terão condição de vida urbana e o crime organizado está presente nesses conjuntos ermos no Brasil inteiro. O pior, porém, é a especulação, a transição de riqueza produzida por toda a sociedade para os terrenos atravessados pelas redes, pelo caminhão de coleta de lixo. Em uma pernada você muda o valor das terras por causa de conjuntos que são exílios, não cidade. Precisamos fazer uma promessa para nós mesmos: nunca mais moradias sem cidade. Aconteceu nos anos 70 e voltou a acontecer agora. A culpa é nossa que assistimos isso acontecer”, finaliza.

O evento contou na segunda-feira, ainda, com uma mesa de abertura que reuniu os presidentes do CAU/BR, Luciano Guimarães (representado pela conselheira federal Josemée de Lima); CAU/RJ, Jeferson Salazar; CAU/MG, Danilo Batista; e o presidente da FNA, Cícero Alvarez. O evento foi transmitido ao vivo e está disponível no Canal do CAU-RJ no Youtube: https://www.youtube.com/user/CAURJOficial.

 

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