Painéis fotovoltaicos na UHE Sobradinho. Fonte: Eletrobras

Por Roberto Pereira D'Araújo, engenheiro eletricista e diretor do Instituto de Desenvolvimento Estratégico do Setor Energético (Ilumina).
Publicado em Valor Econômico (08/07/2020)

Há que rejeitar essa maldição de não poder ter empresas públicas eficientes, pois, no setor elétrico, outros países têm

Sem demonizar ou endeusar a eficiência ou ineficiência estatal ou privada, existem argumentos sobre a privatização da Eletrobras que são raros nos artigos de analistas econômicos.

O Brasil, provavelmente, terá que passar por outra fase de privatizações como as que ocorreram na década de 90. Evidentemente, muitas desestatizações eram e ainda são necessárias, mas, segundo dados do BNDES, o total arrecadado com as vendas de mais de 80 empresas, incluídas Vale, Embraer, CSN, e grande parte do setor elétrico, não ultrapassou US$ 106 bilhões.

É preciso lembrar que a Eletrobras foi usada por
diversos governos para tentar minorar defeitos
do modelo vigente

Certamente esse valor coloca em dúvida a eficácia dessa estratégia para reduzir o déficit público, pois apenas as renúncias fiscais entre 2010 e 2019 ultrapassam o triplo desse valor. Aliás, quem tiver curiosidade de checar os dados, poderá constatar que, apesar de toda essa transferência de propriedade a dívida pública se elevou nesse período.

Mas, no caso Eletrobras, sugiro examinar o que fazem outras nações, observando principalmente o mundo físico da produção de eletricidade.

O clube de países líderes na produção de hidreletricidade é muito seleto [1]. Os 10 líderes são: China, Brasil, Canadá, Estados Unidos, Suécia, Noruega, Rússia, Índia, Venezuela e Japão. Desses, apenas o Japão tem seu setor elétrico privado, mas essa forma de energia representa apenas 7% do consumo japonês.

O Brasil, segundo colocado, atrás apenas da China, produz mais de 6 vezes o que o Japão produz. Ao contrário do Japão, esse montante representa 70% da nossa energia elétrica. Isso mostra como essa vantagem é concentrada em poucos e “felizardos” países que podem se aproveitar da maior fonte de energia renovável existente atualmente.

Portanto, com essa singularidade, caso o Brasil privatize a Eletrobras, será o único a fazê-lo, pois nenhuma das outras nações desse seleto clube privatizou totalmente seu setor elétrico e, muito menos, suas usinas hídricas.

Além disso, ao contrário do que as pessoas pensam, o sistema brasileiro já é majoritariamente privado em todas as etapas do sistema: geração, transmissão e distribuição. Portanto, dados os sintomas de encarecimento e judicialização que têm ocorrido no setor, não discutir o atual modelo que inclui mercantilização e privatização, parece ser uma atitude, no mínimo, descuidada.

De 1995, ano inicial do modelo vigente, até 2019, a tarifa média residencial subiu 69% acima da inflação. A industrial, 158% acima da inflação [2].

O caso brasileiro é tão bizarro que a Agência Internacional de Energia, utilizando o método de Paridade do Poder de Compra (https://www.iea.org/data-and-statistics/charts/residential-electricity-prices-in-selected-economies-2017) mostra que a tarifa brasileira já é a 3ª mais cara do planeta. Pagamos quase o triplo do que paga um canadense, que tem o sistema mais parecido com o brasileiro.

Geralmente, tentam culpar os impostos, que são realmente altos, mas estão longe de serem os maiores. A Dinamarca, por exemplo, cobra 53% sobre o consumo de eletricidade!

Sobre o repetido argumento de ineficiência estatal, é preciso lembrar que a Eletrobras foi usada pelos diversos governos para tentar minorar os defeitos do modelo vigente.

1. Teve que assumir distribuidoras do Norte e Nordeste do país, rejeitadas no processo de privatização do governo FHC.

2. Foi obrigada a praticamente “doar” energia ao mercado livre no período pós racionamento no governo Lula, pois teve contratos cancelados apesar de mais baratos, sendo obrigada a manter a geração de energia por conta da sua hidreletricidade.

3. Foi obrigada a fazer parcerias minoritárias com o setor privado (178 sociedades) no governo Dilma, pois, considerados os critérios de confiabilidade vigentes, a expansão puramente mercantil era insuficiente. Dada as “missões” extras que a estatal assumia, foi obrigada a aumentar seu endividamento.

4. Finalmente, ainda no governo Dilma, foi atingida pela tentativa de intervenção para redução de tarifas que praticamente não incomodou o setor privado, pois atingiu principalmente usinas da estatal. Ressalte-se que nunca fizemos um diagnóstico sobre a impressionante “explosão” tarifária brasileira.

Se for privatizada, o efeito sobre a dívida pública será desprezível. São apenas R$ 16 bilhões numa dívida pública que se aproxima de R$ 7 trilhões, apesar do Brasil não ser o maior devedor do planeta. Mas a tarifa pode aumentar até 20%, simplesmente porque sob os preços irrisórios impostos pela medida provisória 579, a Eletrobras vale muito pouco para o setor privado.

Aquisição de controle acionário ou de ativos prontos e em pleno funcionamento não deveriam ser considerados investimentos, pois são apenas transferência de propriedade. Além disso, recursos privados não são infinitos e essa privatização compete com recursos para a expansão da oferta. No racionamento de 2001, uma das suas causas foi exatamente a escolha fácil de comprar empresas existentes.

Portanto, é preciso decidir se vamos aceitar que o Brasil seja aquele país esquisito, com tanto recurso natural e preços tão caros. Temos que rejeitar essa maldição de não poder ter empresas públicas eficientes, pois, no setor elétrico, outros países têm (Canadá, Estados Unidos, Coreia do Sul, França, Noruega, Suécia, Nova Zelândia e muitos outros). Além disso, é bom lembrar que o Brasil já teve, pois, devemos muito do que existe atualmente à Eletrobras.

[1] www.weforum.org/agenda/2015/10/which-countries-produce-the-most-hydroelectric-power/
[2] Dados históricos da Aneel

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