A transposição do São Francisco pelo prisma fiscal

Foto: Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco.


Por Joaquim Levy
Foi Ministro da Fazenda e Diretor Gerente do Banco Mundial e é Diretor de Estratégia Econômica e Relações com Mercado do Banco Safra.
Publicado pelo Valor Econômico, em 26/02

O jornal Valor Econômico publicou, em 26/02, artigo de Joaquim Levy sobre o projeto de operação previsto para a transposição do Rio São Francisco levantando relevantes questões, entre outras,a possibilidade de a operação se tornar um problema fiscal no caso de se concretizar a privatização da Eletrobras. A expectativa de aporte de água no rio não tem se verificado, e com a rede de distribuição atual corre-se o risco de a água excedente não ir para as regiões mais secas.

Os custos para a operação se aproximam, em previsão, de mais de R$ 100 milhões por ano, além de gastos com manutenção, perdas e outros. Na ponta do problema, a conta de água pode aumentar. A constatação é de que um projeto tão vultoso como este precisa ser analisado por uma instituição de governança que garanta os benefícios para a população e não o transforme num problema fiscal.

 

Leia a seguir o artigo na íntegra:

 

Uma das facetas da discussão fiscal recente tem sido o tratamento orçamentário de projetos de desenvolvimento regional, como a chamada transposição do Rio São Francisco. Por que a prioridade nesse gasto, e o que esperar depois dele feito? Vale a pena conhecer um pouco dessa obra iniciada no governo Lula, que terá custado R$ 11 bilhões. Ela, como tantas outras, enfrentará desafios para ser operada depois de entregue. Além disso, poderá ter repercussões na modelagem de uma eventual privatização da Eletrobras.

O projeto é mais do que os canais e túneis que aparecem na televisão, ainda que seus dois eixos atravessando o Nordeste sejam o que mais marca a percepção popular. O primeiro eixo, de 400 km de comprimento e 3 estações de bombeamento, liga o São Francisco a várias bacias hidrográficas no Ceará e Rio Grande do Norte. O segundo, com 220 km de comprimento e 6 estações, liga o rio a bacias na Paraíba e Pernambuco.

O projeto não deveria ser conhecido como de transposição, mas sim de integração do rio São Francisco às bacias no Nordeste e à suas redes de açudes, porque seu objetivo principal é permitir maior flexibilidade na operação desses açudes, ou seja, aproveitar melhor uma infraestrutura que vem sendo construída há várias décadas, o que tem interesse fiscal.

Como as secas no Nordeste podem durar vários anos, os açudes que recebem água de rios temporários devem ser mantidos bastante cheios em tempos normais, o que aumenta a evaporação e o risco deles “transbordarem” nos períodos de chuva. Acaba-se, assim, usando de forma regular apenas uma pequena fração da água represada. Com uma fonte externa contínua de água (e.g., o São Francisco), pode-se usar a água acumulada, com mais liberdade, baixando o nível médio do reservatório e aproveitando melhor as chuvas. Segundo os relatórios originais do projeto, cada litro de água vinda de longe pode aumentar em até três litros a vazão regulada do reservatório, o que é eficiente e positivo do ângulo da sustentabilidade.

O ganho da melhor regularização das bacias do Nordeste não deveria ter um custo extraordinário para a vitalidade do rio São Francisco, já que a intenção é tirar na base o equivalente a apenas 1,4% da sua vazão média. O volume retirado pode excepcionalmente ser aumentado em 450%, quando a barragem de Sobradinho estiver quase cheia. Nessa hora, a água não teria outro uso e poderia ser bombeada praticamente de graça, porque a hidrelétrica estaria podendo ceder energia para as estações de bombeamento. É uma hipótese ambiciosa, mas atraente.

Evidentemente, o perigo está nos detalhes. Primeiramente, deve ser lembrado que o uso prioritário dessa água deverá ser para consumo humano (e animal). Em princípio ela se destinaria para irrigação apenas na condição excepcional descrita acima, e seu eventual uso pelo setor industrial deve se dar com cuidado.

Segundo, como indicado no Texto de Discussão nº 1577 do Ipea, com a rede de distribuição atual, o aumento de água provavelmente irá para áreas onde ela não é tão escassa, talvez não chegando às regiões mais secas. Apesar dos muitos progressos, esse ainda pode ser o caso do Seridó e outras regiões longe das principais bacias.

Terceiro, ainda não está claro quem pagará pela água transportada por centenas de quilômetros. Finalmente, a expectativa de fartura de água no Rio São Francisco não tem se verificado, tornando a expectativa de irrigação mais problemática do que desejado para a operação atual da usina de Sobradinho.

Sobradinho não verteu desde 2009, apesar de outrora verter em dois de cada sete anos. Esse desafio ambiental imprevisto pode, no entanto, vir a ser reduzido na medida em que a operação do sistema elétrico brasileiro for se adaptando à maior participação das energias renováveis intermitentes.

No futuro, as hidrelétricas poderão atuar muito como baterias para as fontes renováveis, provavelmente precisando de uma vazão de água menor, e com mudanças na forma com que a sua produção será quantificada e precificada. Incorporar essas mudanças no arcabouço do setor elétrico quando se propõe transformar o sistema Eletrobras pode ajudar o Brasil no caminho para emissões líquidas de carbono zero, e mostrar ao mundo como os mercados podem se reorganizar para esse objetivo.

Com a entrega do projeto do São Francisco se aproximando, o próximo desafio será operá-lo de maneira financeiramente sustentável. Como observado pelo ex-presidente da Agência Nacional de Águas, Jerson Kelman, bombear os 26,4 m3 /s outorgados à demanda essencialmente urbana exigirá 750 GWh/ano (0,1% da eletricidade do Brasil). Considerando a energia a R$ 150/MWh, isso representa mais de R$ 100 milhões de energia além de gastos de manutenção, perdas, etc. que se traduziriam em quase R$ 1/m3 de água. Supondo o consumo médio de 35m3 /pessoa por ano e os custos de distribuição, a conta de água para uma família de três pessoas pode ser alta.

Se houver água para irrigação, a precificação ajudará a evitar o desperdício, podendo se dar, por exemplo, a partir do custo da água de poços artesianos. É importante, portanto, considerar como as distribuidoras de água da região vão tratar essas questões e se, além de um gesto como o proposto pelo governo na recente MP da Eletrobras, é necessária uma instituição que proporcione a governança requerida para que o investimento traga os benefícios desejados e não se deteriore nem vire um problema fiscal.

O enfrentamento dos problemas fiscais envolve grandes temas, como a remuneração do funcionalismo e o tamanho dos seus quadros, além do cumprimento atento das regras orçamentárias. Mas como ilustrado aqui, ele também envolve a avaliação dos investimentos públicos e o planejamento e implementação de mecanismos que promovam a sua plena fruição e sustentabilidade.

 

 

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