Gás natural: equívocos da privatização de um monopólio natural

Nos períodos em que os reservatórios das usinas hidrelétricas brasileiras estão com pouca água acumulada, as várias termelétricas existentes no país precisam operar, utilizando volumes gigantescos de gás natural para gerar a energia elétrica necessária e evitar riscos de apagões. Para Antonio Gerson Ferreira de Carvalho, autor do livro “Gás natural no Brasil: uma história de muitos erros e poucos acertos”, os oito milhões de metros cúbicos diários que marcaram a diferença entre os consumos de gás natural nas usinas termelétricas, verificados nos  meses de dezembro de 2015 e de 2016, respectivamente, seriam suficientes, por exemplo, para dobrar a soma dos consumos residencial, automotivo e industrial do estado do Rio de Janeiro. É uma pequena demonstração do quanto vem sendo mal planejada a política energética do país, obrigando a queima de um combustível, em grande parte importado, para suprir prioridades de curto prazo de segmentos com forte sazonalidade.

A história do gás natural no Brasil, com os muitos ataques ao controle estatal, foi brevemente contada pelo engenheiro mecânico especializado em Gás Natural, no lançamento do livro produzido pelo Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge-RJ). O palestrante é secretário da Divisão Técnica de Energia (DEN) e o evento aconteceu no Clube de Engenharia, em 26 de abril, promovido pela Diretoria de Atividades Técnicas (DAT), e pelas divisões técnicas de Energia (DEN) e de Petróleo e Gás (DPG).

Erros: termelétricas e consumos veicular e residencial
O início da priorização das usinas térmicas vem dos anos 2000, resultado do desmonte do planejamento energético nacional, efetivado um pouco antes da interrupção dos investimentos em novos projetos de hidrelétricas e das privatizações feitas no setor. Isso provocou o racionamento ocorrido em maio de 2001 e, segundo o Tribunal de Contas da União (TCU), o custo direto foi de R$45,2 bilhões para os consumidores.

Duplamente prejudicada ficou a população que passou a pagar uma tarifa bem mais cara pela energia elétrica gerada nas termelétricas. A ativação das usinas térmicas, abastecidas pelo gás natural, resultou em 2007 a interrupção do fornecimento para indústrias e automóveis, e Rio de Janeiro e São Paulo passaram por um "apagão do gás".

Outro fator que demarca a imprevisibilidade do consumo do gás natural é a destinação a veículos: apesar dos indicativos para que o GNV fosse destinado prioritariamente a veículos pesados em substituição ao óleo diesel, ele passou a substituir gasolina e álcool em veículos leves. Assim, continuamos a importar petróleo para produzir óleo diesel e a variação do preço da gasolina e do álcool também criou instabilidade no consumo do gás natural veicular.

A irracionalidade do setor, sem planejamento, afeta mais individualmente os consumidores e realimenta o ciclo de erros: com má qualidade do serviço de gás para residências, o país importa GLP (gás de botijão) para o consumo residencial. E, com o alto preço dos aquecedores a gás, é mais vantajoso para o brasileiro ter um chuveiro elétrico, o que em larga escala ajuda a demandar mais eletricidade.

Na história, o ataque ao controle estatal
A displicência com o setor não é recente, mas também não é completa. Como diz o livro em seu título, a história conta com muitos erros, e alguns acertos. Desde o início, ainda no século XIX, o domínio foi de empresas privadas, em diversas cidades do país. Com o tempo, muitas se desinteressaram em investir, expandir e modernizar, e fecharam na década de 60. As exceções ficaram por conta de São Paulo e Rio de Janeiro, onde a Companhia de Gás de São Paulo (Comgás) e a Companhia Distribuidora de Gás (CEG), no Rio, foram estatizadas e mantidas. No Rio de Janeiro, aconteceu em 1969. Para Gerson, esse foi o primeiro grande acerto da história do gás no Brasil, porque a manutenção destes dois sistemas foi fundamental para o início da distribuição de gás natural no país.

Na década de 80, junto às grandes oportunidades do estado de utilizar o gás natural na Bacia de Campos, também chegaram a abertura política e eleições as diretas. No governo estadual foi eleito Leonel Brizola, oposição ao governo federal. O que fez com que o Conselho Nacional do Petróleo cancelasse a anterior decisão que havia de fornecimento de gás da CEG à Bayer e outras indústrias do estado e aprovasse  a construção de gasodutos pela Petrobras para fornecer o gás às empresas. "Esse foi um dos maiores erros cometidos nessa fase", afirmou Gerson, uma vez que a concorrência com a Petrobras inviabilizou os projetos de expansão da companhia. Mesmo com 566 mil consumidores à época, o volume de gás fornecido pela CEG era menor do que o fornecido a 20 indústrias pela Petrobras.

Em 1986, o Ministério de Minas e Energia (MME) tomou a primeira iniciativa para regular a questão, criando o Plano Nacional de Gás Natural (Plangás), para aumentar o uso do gás no país e reduzir a dependência de importações de petróleo. O Plangás tinha metas de expansão do consumo de gás natural até 1991 e 1995, que não foram cumpridas. No mesmo ano de 1986, entrou em vigor a Portaria 1061, do MME, definindo que a distribuição de gás canalizado era um direito das distribuidoras regionais, e ainda estabelecia como prioridade o uso na indústria, residências e veículos pesados. Alguns anos depois, a nova Constituição Federal definiu no seu artigo 25 que caberia aos estados explorar os serviços locais de gás canalizado diretamente ou mediante concessão à empresa estatal. Ambas as decisões do MME e da Constituição foram grandes acertos, mas foram ignorados: continuou o fornecimento da Petrobras às grandes indústrias.

Em relação aos demais estados do país, muitos criaram novas empresas num modelo tripartite: gestão do estado, com 51% do controle; Petrobras; e empresa privada, no caso a OAS. Em 1995, o artigo da Constituição que determinava o controle estatal foi alterado, dando abertura à concessão para empresa privada. À época, em 1993, o Jornal do Clube de Engenharia publicou matéria sobre a tentativa de "Destruição da CEG", e sobre o equívoco da revisão constitucional em 1995.

Além disso, apesar de as constituições estaduais de ambos os estados determinarem a gestão de empresa estatal, os governos do Rio de Janeiro e de São Paulo incluíram nos seus Programas Estaduais de Desestatização as companhias, CEG e Comgás, que tinham sistemas desenvolvidos concentrando 73% dos gasodutos, 92% dos clientes e 60% do volume total de gás canalizado  distribuído no país. "Foi um grave erro a alteração da constituição federal que acabou permitindo a privatização dos dois sistemas já prontos e que funcionavam de modo satisfatório. Os que precisavam ser ainda desenvolvidos nos outros estados, com grandes investimentos, não tiveram o interesse dos grupos privados”, esclareceu Gerson.

A privatização da CEG aconteceu em julho de 1997, mesmo em desacordo com a constituição estadual. O estado foi dividido em duas áreas de concessão, ambas entregues para a mesma empresa vencedora do leilão. À época, havia 558.600 consumidores. "Sendo o gás natural um monopólio natural, passou-se de monopólio estadual para monopólio privado", avaliou o palestrante. As promessas com a privatização incluíam, de 8 a 10 anos: os gasodutos renovados e ampliados; dobrar o número de consumidores; reduzir tarifas e melhorar serviços. Hoje, 20 anos depois, o dobro do tempo prometido, são 950 mil consumidores. Gerson de Carvalho atribui o fracasso na ampliação do número de consumidores a três principais fatores: alto valor da tarifa, pouca expansão das canalizações e má qualidade dos serviços. "O fraco desempenho das duas empresas do RJ, no segmento residencial, é a comprovação de que não há do poder concedente nenhum trabalho para cobrar das concessionárias que desenvolvam mais o setor. Elas não investem, se desinteressam: sabem que o consumidor residencial, além de ser o que menos rende para ela, é o que dá o maior número de reclamações", argumentou.

O desmonte da Petrobras e as perspectivas
A Lei do Gás (Lei 11.909/2009), que veio a regulamentar o transporte de gás natural - segundo opinião dos seus defensores, proposta para "aumentar competição e estimular entrada de novos agentes" - criou o Plano de Expansão da Malha de Gasodutos (Pemat), que acabou sendo lançado somente em março de 2014. O fato é que, passados mais de sete anos desde a regulamentação, o governo ainda não consegue emplacar a primeira concessão de dutos e os estados ainda não atendidos terão que esperar mais algum tempo.

A Lei do Gás acabou contribuindo para o “engessamento do setor”, reduzindo o interesse da Petrobras por conta das limitações que lhe foram impostas e sem conseguir atrair o setor privado.

Em debate realizado no mês de março de 2006, no Conselho Diretor do Clube de Engenharia, sobre a proposta encaminhada ao Congresso Nacional do projeto da Lei do Gás, Gerson chegou a declarar: “Esta lei será um erro por trazer ainda maiores dificuldades para o setor. Era ruim sem a lei, vai ficar pior com ela”. As medidas de restrição criadas para conter a atuação da Petrobras comprometem a necessária expansão da infraestrutura de dutos no país, que só se viabilizará com uma forte participação da estatal, acrescentou.

Para piorar, em 2016, com o Programa de Parcerias e Desinvestimentos da Petrobras, esta começou a abrir mão de várias das suas linhas de atuação com gás: terminais de Gás Natural Liquefeito (GNL) e termelétricas, participação em campos de petróleo e gás, além de passar a ter que pagar para transportar gás nos gasodutos que construiu e está vendendo.

A esperança por novos rumos
As saídas para o setor seriam reconstruir o planejamento energético e conduzir os rumos de um plano B para ter um sistema elétrico forte complementado com gás e com maior participação de energias renováveis.

No debate que se seguiu à palestra, o conselheiro do Clube de Engenharia Paulo Metri, chefe da Divisão Técnica de Petróleo e Gás (DPG), afirmou que toda a história do gás natural no país é um grande exemplo do sistema econômico neoliberal que se instalou: "Transformaram um monopólio estatal em um monopólio privado, que é mil vezes pior. Se o gás é um monopólio natural, que seja estatal. O que os grupos econômicos querem é formar cartéis para participarem de licitações marcadas. (...) Todas as ações que nós vemos no gás são a hiperexploração neoliberal num setor".

O conselheiro e chefe da Divisão Técnica de Energia (DEN), Mariano de Oliveira, apresentou suas posições a respeito da política energética do país e lamentou a situação do setor: "A engenharia é para levar o conhecimento para o bem-estar da sociedade, e nós vemos possibilidades concretas de melhorar a vida das pessoas, mas elas são barradas por interesses outros que não os da sociedade", concluiu.

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