Nova legislação de Autovistoria: polêmica, educativa e punitiva

Aspectos técnicos e jurídicos da nova legislação em vigor sobre a autovistoria em edificações na cidade do Rio de Janeiro mobilizaram poder público, sociedade civil e técnicos em dois dias de debates no Clube de Engenharia

Cerca de 400 pessoas passaram pelo grande auditório do 25º andar do Clube de Engenharia, dias 22 e 23 de outubro, durante seminário promovido pelas divisões técnicas especializadas de Engenharia Econômica (DEC), Estruturas (DES), Construção (DCO) e Urbanismo e Planejamento Regional (DUR), sob a coordenação da conselheira Iara Nagle, chefe da DEC. Dúvidas, imprecisões, incertezas e temores continuam a envolver as leis Estadual 6.400/13 e Municipal 126/13, nova legislação regulamentada pelo Decreto Municipal 37.426/13, que obriga cerca de 300 mil edificações a serem vistoriadas a cada cinco anos por um engenheiro civil ou arquiteto que devem atestar, em laudos, se estão, ou não, em boas condições.

“A legislação já em vigor é polêmica e a ideia dos debates é informar e estabelecer o entendimento entre os diversos atores relacionados com a lei”. A afirmação é do diretor Marcio Patusco, à frente da Diretoria de Atividades Técnicas (DAT), que tem exatamente o objetivo de buscar relevantes temas em pauta na sociedade que mereçam abordagens mais claras e objetivas.

Para falar dos aspectos legislativos, a mesa do primeiro dia do evento foi aberta pelo vereador Eliomar Coelho (PSOL-RJ) e pelo deputado Luiz Paulo Corrêa da Rocha (PSDB-RJ), ambos engenheiros. A responsabilidade do poder público diante de tragédias envolvendo a falta de manutenção foi um dos pontos destacados por Eliomar. Reconhecendo que se trata de uma legislação necessária na cidade do Rio de Janeiro, Eliomar questiona, no entanto, se o texto a faz viável. “Como legisladores, podemos retrabalhar a lei existente através de um substitutivo ou emendas. O que não se pode é manter a regulamentação sem  ter certeza que existem condições para fazer valer os objetos da lei: a atuação prática e a eficácia”, destacou o vereador.

A criação de uma nova cultura de manutenção foi, segundo o autor da lei estadual, deputado Luiz Paulo, um dos principais objetivos da proposta. “Cabe ao poder público dar as diretrizes para que a cultura se modifique no país. O debate começou já na formulação da lei, quando as entidades foram chamadas a opinar. Agora o debate tem que continuar para que essa cultura se consolide. Tem que ficar muito bem delineada a responsabilidade de cada um nesse processo que é de transformação. As deficiências existem, mas era preciso dar o primeiro passo, o pontapé inicial”, afirmou o deputado.

Embora não exista na regulamentação da lei municipal definição do que deve ser vistoriado, uma espécie de checklist, José Schipper, assessor-chefe da Assessoria de Perícias, Cálculos e Avaliações do Governo do Estado do Rio de Janeiro e Coordenador da Câmara de Engenharia Civil do CREA-RJ dá ênfase à necessidade do profissional ter um olhar de perito, bastante minucioso. “A vistoria precisa ser ampla, incluindo também a sinalização, rota de fuga e plano de combate a incêndio, coberturas e suas impermeabilizações, junta de dilatação, equipamento hidráulico, ralos, tampas de caixa de inspeção, interferência das vagas de estacionamento no funcionamento do prédio etc.”, defendeu.

Prevenção de colapsos
O coordenador geral da Gerência de Vistoria Estrutural da Prefeitura, João Batista Veronesi Junior, deu foco à capacidade de prevenção de colapsos trazida pela lei de autovistoria. Para ele, o decreto da prefeitura que regulamenta a lei é moderno e inovador na área de fiscalização de edificações. “Autovistoria nos reporta a autofiscalização e ao exame das estruturas. A maioria das pessoas não tem a dimensão do colapso. Se a tragédia que aconteceu no centro do Rio com os prédios que desabaram tivesse ocorrido no horário da tarde, o número de mortes estaria em torno de 300 a 500 pessoas, a tragédia teria sido muito maior”, explicou. Veronesi abordou também a importância de definir os papeis no processo de autovistoria: “Quem fiscaliza os profissionais é o CREA. Quem elabora o laudo estabelece os co-responsáveis pelos exames específicos, se serão necessários engenheiros mecânicos, hidráulicos etc. No ato da construção engenheiros de várias áreas, além da civil, são envolvidos e na vistoria isso também pode acontecer”.

Foi consenso entre os palestrantes que o objetivo da lei de autovistoria não é punitivo, mas sim o de movimentar a sociedade para construir alternativas para prevenção de acidentes. Para o coordenador geral de Fiscalização de Manutenção Predial da Secretaria Municipal de Urbanismo, Silvio Henrique Coelho de Oliveira, não é objetivo da lei, por exemplo, definir a forma como a vistoria será planejada e executada pelos profissionais. “A prefeitura entende que a partir do que ela precisa atestar, o que será verificado para isso é decisão particular, não existe um modelo e não somos nós os responsáveis por elaborá-lo”, explicou. Silvio destacou também que não é papel da prefeitura estabelecer o custo do profissional. “Modelo, preço e prazo são sempre questionados e a única responsabilidade na prefeitura entre esses três quesitos é o prazo”, frisou.

O elo mais fraco

“Uma corrente é tão forte quanto seu elo mais fraco”, afirmou o conselheiro do Clube de Engenharia, do Instituto de Engenharia Legal (IEL) e do CREA-RJ, Antero Jorge Parahyba. Segundo Antero, não há como conhecer a estabilidade e examinar todos os riscos sem olhar todos os espaços, cômodos e áreas comuns detalhadamente. Antero destacou que, numa edificação, se algum ambiente deixa de ser examinado corretamente, o elo mais fraco pode estar ali. “É preciso anotar o que não se conseguiu vistoriar, incluindo quem impediu essa vistoria, já que para examinar as casas das pessoas é necessária a autorização”, afirmou, destacando que a sociedade busca edificações estáveis, com condições de prevenir incêndios, boa estrutura física e bom acabamento. “A autovistoria é uma grande oportunidade para a engenharia se mostrar para a sociedade e aprimorar seu trabalho”, frisou.

Responsabilidades nebulosas
No dia 23 de outubro, o debate técnico teve início com um panorama jurídico e implicações legais que a nova legislação traz para os profissionais. Segundo Iara Nagle, procuradores da prefeitura assumem que há dúvidas e elementos ainda pouco definidos. Por ser uma lei nova, com aplicação ainda incerta, ainda não foram criadas ferramentas que permitam a emissão de laudos por parte dos técnicos sem que fiquem expostos no âmbito jurídico. O advogado Marcio Luis Marques, especialista em responsabilidade civil, destacou que os profissionais de engenharia e arquitetura podem ser responsabilizados em três níveis: civil, criminal e administrativo. “Os profissionais que assinam os laudos podem ser responsabilizados civilmente, através de ações indenizatórias. As ações criminais podem levar à privação de liberdade e direitos políticos aqueles que malversarem uma análise técnica da vistoria. A punição administrativa resulta no impedimento de exercício da profissão”, detalhou o advogado.

A lei exige que a certificação seja anexada a ART ou RRT no próprio laudo, o que, segundo Marcio, vincula o profissional que certifica. “Não é uma mera vistoria visual. Quando os profissionais assinam o laudo técnico, vão certificar que tudo está ou não em conformidade. A ausência de informações ou uma certificação equivocada pode ter desdobramentos criminais e financeiros que a própria lei prevê”, alertou, aconselhando que os profissionais se resguardem, explicando toda a metodologia utilizada, uma vez que a lei prevê que é ônus do profissional provar que foram seguidas todas as normas. “Não acreditem no que a prefeitura quer passar. Não é verdade que seja apenas uma mera vistoria. É uma certificação, e os reflexos jurídicos são sérios e graves”, advertiu.

Silvio Henrique voltou para os debates do segundo dia e buscou desmistificar o senso geral – corroborado pelo parecer dos advogados – de que a lei é educativa, mas que o decreto da prefeitura tem caráter punitivo. “O trabalho que engenheiros exercem já exige a responsabilidade pelo resultado do próprio trabalho. O risco de fazerem um trabalho bom ou ruim numa autovistoria é o mesmo de fazer um trabalho bom ou ruim na construção de um edifício, por exemplo”, defendeu o técnico.

Entre os outros consensos está que um dos pontos mais importantes das vistorias são as fotografias. Para o advogado Ronaldo Foster, é de suma importância que os vistoriadores tirem fotos em alta resolução e que as guardem por muito tempo.
José Schipper concordou com Foster. Para ele, a inspeção visual precisa ter um raciocínio pericial que deve ser gravado em fotos. “Aconselho que não façam apenas uma foto local apenas. É importante que uma foto geral sempre acompanhe a local para deixar claro onde o problema está acontecendo”, destacou. Marcio Luis Marques lembrou a importância das fotos, inclusive para que os profissionais se resguardem através delas.

Protagonismo do Clube

Considerada um avanço, apesar da necessidade de acertos de rumo, a nova legislação contou com ações decisivas do Clube de Engenharia, com destaque para  a comissão que, sob a liderança do conselheiro Manoel Lapa, então vice-presidente da entidade, redigiu a proposta discutida e aprovada na Câmara Municipal. Neste processo, todos trabalharam pela nova legislação.

À frente da DTE de Construção (DCO) Ricardo Khichfy registra que o Clube está na luta pela promoção de novos debates e encontros porque essas duas leis e o decreto estão revolucionando perspectivas e demandas de serviços. “É importante destacar a falta de cultura na manutenção. Recentemente o presidente Francis Bogossian fez uma palestra sobre manutenção e fiscalização, onde aventou a ideia de se criar uma nova empresa pública para fiscalização e manutenção das nossas obras. Temos muita dificuldade de criar culturas e precisamos avançar nessa proposta”.

Milton Lima, chefe da DTE de Urbanismo e Planejamento Regional (DUR), lembra a importância do Instituto de Engenharia Legal (IEL), órgão que congrega os profissionais que militam na área de perícias e avaliações. Está no dia a dia deles a realização de vistorias e laudos. “A lei é uma situação nova. Estamos em fase experimental, quando não se conhece ainda todos os problemas que vão aparecer no decorrer dos trabalhos. Mas não tenho dúvida de que somos nós, os profissionais que vão realizar essas vistorias, que seremos os responsáveis pela melhoria da lei”.

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