No âmbito da política habitacional do país, o programa Minha Casa Minha Vida (MCMV), lançado em 2009, já construiu cerca de 11 milhões de moradias, em sua grande maioria sob a responsabilidade de empreiteiras. No entanto, o programa tem algumas modalidades específicas. Entre elas, um segmento com poucos recursos – o MCMV Entidades – foi a principal ferramenta para a produção de moradia social por coletivos auto-organizados, em contraste com as habitações de produção empresarial voltadas para famílias individualizadas. A solução passa por graves problemas de burocracia e, de um modo geral, com a falta de compreensão, por parte do poder público, das necessidades dos coletivos.

Para abordar o tema, o Clube de Engenharia sediou a mesa redonda “Produção de Moradia Social no Brasil: panorama recente, avaliação e ensinamentos”. Participaram, como expositores Sandra Kokudai e Adauto Cardoso e como debatedores Paulo Oscar Saad e Sydnei Menezes, todos arquitetos e urbanistas.O evento foi promovido pela Diretoria de Atividades Técnicas (DAT) e Divisão Técnica de Engenharia Econômica (DEC), com apoio da Divisão Técnica de Urbanismo e Planejamento Regional (DUR) e Associação Brasileira de Engenheiras e Arquitetas do Rio de Janeiro (ABEA-RJ).

Foi com grande satisfação que o Clube de Engenharia recebeu profissionais de arquitetura e urbanismo para discutir um problema  que se agrava, há décadas, por falta de uma política coerente de habitação no país. “Nós tivemos um embrião de política habitacional na década de 50, com Getúlio Vargas, focada no Rio de Janeiro. Depois tivemos a experiência do BNH (Banco Nacional de Habitação). E do BNH para cá mais nada. O Programa Minha Casa, Minha Vida não pode ser considerado como solução do problema da habitação do Brasil. Quem tem que pensar isso são profissionais da área. E é importante que nós nos debrucemos sobre esse assunto, especialmente na nossa cidade, na qual mais de 30% das pessoas moram em condições precárias, sem coleta de lixo, sem saneamento.”, afirmou o presidente Pedro Celestino.

A expectativa é que, a partir dos debates realizados e da mobilização dos profissionais, as propostas formuladas sejam levadas ao conhecimento de outras entidades da engenharia, da arquitetura e da sociedade civil. O objetivo é exigir dos governantes que tenham compromisso com a melhoria da qualidade de vida da população e a resolução do  problema de moradia no Brasil. 

Autogestão e participação
O arquiteto e urbanista Adauto Cardoso apresentou o significado da autogestão na produção de moradia social no Brasil, o histórico das políticas públicas do gênero e os entraves burocráticos dos projetos. Segundo ele, nos programas de autogestão de moradia o controle da gestão dos recursos públicos e da obra em si é dos movimentos populares, associações e cooperativas. Existe um tripé: a entidade organizadora, que promove a concepção do projeto e é a responsável institucional; a assessoria técnica de engenheiros, arquitetos e urbanistas; e os moradores. Estes participam de todas as etapas, desde o primeiro projeto da habitação, passando pela execução da obra em alguns momentos, até o planejamento posterior da vida em comunidade. “O mais importante é que o grupo que será o dos moradores finais tenha controle sobre o projeto, sobre a definição do terreno, sobre todas as decisões cruciais em relação ao empreendimento”, afirmou. Ainda segundo Cardoso, a área é uma grande oportunidade para engenheiros e arquitetos desenvolverem trabalhos técnicos com mais qualidade, comparados aos projetos padronizados das empreiteiras.

Origem uruguaia e a experiência do Entidades
Segundo Adauto Cardoso, os movimentos nesse sentido no Brasil datam dos anos 1980, influenciados pelo cooperativismo uruguaio que teve grandes conquistas no início da mesma década, entre elas o conceito de propriedade coletiva para os imóveis. Aconteceu  de 1984 o primeiro Encontro dos Movimentos de Moradia, em São Paulo, definindo como  principal bandeira a autogestão. Entre 1989 e 1992, na mesma cidade, o programa Funaps Comunitário, com recursos ligados ao mercado imobiliário, favoreceu a produção de 12 mil unidades de qualidade. Em relação aos programas federais, que só começaram a aparecer em 2003, o Programa Crédito Solidário viabilizou 341 empreendimentos com mais de 20 mil habitações, em 21 estados. Em 2005, a reivindicação dos movimentos de moradia levou à criação do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS), ligado ao Ministério das Cidades, e dentro dele um programa específico para as cooperativas. Mas o FNHIS foi logo substituído pelo Minha Casa Minha Vida, cuja modalidade Entidades tem o objetivo de tornar a moradia acessível às famílias organizadas em cooperativas habitacionais, associações e demais entidades privadas sem fins lucrativos. A proposta viabilizou empreendimentos de maior escala e mais complexidade. Segundo Cardoso, a experiência acumulada passou a estabelecer um padrão de qualidade, apesar de todos os limites do programa, principalmente financeiro e burocrático.

Um dos obstáculos foi a constante valorização da terra: a terra para construção nas cidades ficou cada vez mais escassa e cara, tornando difícil encontrar locais adequados com terrenos de qualidade. Outro grande obstáculo foi a Caixa Econômica Federal, responsável por liberar a verba, que não adaptou procedimentos, rotinas e formulários às práticas de produção de moradia das cooperativas, diferentes da lógica empresarial. O programa exigiu das cooperativas muito mais do que exige das empreiteiras do MCMV empresarial, o que Adauto Cardoso identificou como uma “desconfiança básica” da Caixa em relação aos coletivos. “Para as empresas tudo é mais fácil, para os movimentos tudo é mais difícil”, resumiu.

Uma das vantagens da modalidade Entidades dentro do MCMV é que a falta do fator lucro na verba disponível possibilita o investimento na qualidade das moradias, que costumam ser melhores do que as das empreiteiras. O Entidades teve que ser aprimorado de acordo com o conhecimento de experiências anteriores, para fugir do padrão empresarial.

Para Adauto Cardoso, a perspectiva para a política habitacional no país é muito incerta, diante de medidas aprovadas no Congresso como a PEC do Teto dos Gastos e a dificuldade de liberação de recursos do FGTS.

O caso do Projeto Esperança
A arquiteta Sandra Kokudai, da Fundação Bento Rubião, destacou que a produção social de moradia tem, necessariamente, uma lógica diferente e apresentou o caso do Projeto Esperança, realizado na Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá, pela Fundação Bento Rubião e outras instituições em parceria com a União de Moradia Popular.

O início do Projeto Esperança se deu com a organização das famílias no ano 2000. Ao longo dos anos formou-se uma grande rede de cooperação e o recurso da Caixa só saiu em 2011, através do MCMV Entidades. Foram formadas comissões para organização do trabalho, e em 2011 foi criada uma casa modelo, com placa solar de baixo custo e reaproveitamento de água de chuva, cuja implementação serviu como formação para as famílias. Foram 70 casas construídas em lotes urbanizados pela prefeitura, com três diferentes modelos de acabamento interno, e a escolha das casas pelas famílias seguiu critérios previamente acordados.  O loteamento é um espaço público e não um condomínio, como destacou Sandra Kokudai.

O financeiro, o burocrático, o político e o cultural
A arquiteta apontou como os principais limites e desafios para a realização do projeto a falta de recursos públicos para as etapas iniciais, anteriores à aprovação do projeto pela Caixa; o acesso à terra pública, que se mostrou um processo muito lento; e a falta de um olhar mais atento à assessoria técnica, que deve ser considerada um direito - integral e constante. Uma das dificuldades é pagar a assessoria técnica, para ações como o estudo de viabilidade, sem a liberação de verba. Para Sandra Kokudai, é preciso avançar na produção de moradia social de propriedade coletiva, que deve ser regulamentada enquanto a sociedade repensa as formas de propriedade; melhorar as políticas públicas e programas locais para articular com iniciativas da economia popular solidária; além de realizar uma mudança cultural na sociedade para se trabalhar a questão da coletividade. “A casa é o meio para trabalhar uma outra sociedade”, afirmou.

O futuro da política habitacional: perspectivas contrastantes
O arquiteto e urbanista Paulo Saad abriu o debate comentando que, na sua opinião, uma das vantagens da modalidade de autogestão do MCMV é fazer a organização da demanda, uma vez que é um problema no programa a administração após a ocupação, não somente por questões de convivência mas também como um risco à vida útil do empreendimento. Ele e Adauto Cardoso concordam que a política habitacional no país acabou: "Não é possível ter política habitacional em um Estado desmontado". 

Já Sydnei Menezes vê o momento como uma pausa e uma oportunidade para a sociedade civil repensar moradia e política habitacional: "Na falta de recursos e de vontade política, só resta uma solução: discutir, planejar e propor. Talvez a falta da aplicação equivocada dos recursos públicos possa nos dar um curto fôlego para responder a essas questões com estudos, com propostas como as que aqui foram apresentadas", afirmou Menezes.

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