Território democrático e políticas públicas

Remontar as crescentes cidades brasileiras e pensar racionalmente as habitações populares é um dos maiores desafios do nosso tempo. Sem uma diretriz clara do Poder Público é o povo que dá a solução que encontra. Assim nascem e crescem as favelas. Paralelamente a isso, projetos são implementados, mas não resolvem a questão. Por incrível que pareça, na esfera pública, o desconhecimento é grande em relação às políticas disponíveis como ferramenta de ordenamento da cidade, mesmo em grandes prefeituras. É preciso uma nova agenda para as cidades, sob pena de estagnarmos como sociedade, afirmou Washington Fajardo, arquiteto e urbanista, ex-presidente do Instituto Rio Patrimônio da Humanidade, em palestra no dia 11 de abril, no Clube de Engenharia, quando confessou que foi no momento em que assumiu a responsabilidade pelo patrimônio cultural e pela tutela do centro histórico do Rio de Janeiro, que tomou, de fato, consciência da necessidade de se discutir mais a cidade.

Mesmo em uma prefeitura de grande capacidade técnica, com vasto espectro e diversidade de servidores, alguns assuntos de política habitacional ainda soam distantes. “Ficou claro que existe uma grande ignorância em relação às habitações populares, algo que acredito ser conectado com um período da nossa história e com a ideia estética, ainda muito forte no Brasil. No debate de classe, corporativo, de atuação cidadã e político costumamos colocar esses pontos de forma quase que maniqueísta. Moradia acessível, aluguel social, IPTU progressivo, mesmo depois de tanto tempo pensando as cidades e de uma série de legislações sobre o assunto, ainda são assuntos pouco conhecidos”, constata o palestrante no encontro promovido pela Diretoria de Atividades Técnicas (DAT) e pela Divisão Técnica Especializada de Urbanismo e Planejamento Regional (DUR).

A melhor cidade é aqui
A ideia de cidade, de uma existência mais digna no território ainda não foi alcançada. Enquanto não conquistarmos isso, não seremos capazes de constituir uma cidadania plena, continuaremos reincidindo na polarização que vivemos hoje. “A polarização, inclusive, tem forte caráter territorial: organizadas em guetos ricos e guetos pobres, as cidades fomentam assimetrias e apontam a organização do pensamento em guetos, aumentando cada vez mais os espaços de luta”, afirma.  

“A melhor cidade é a cidade que existe”. A frase é quase que uma marca registrada de Fajardo, que a leva para onde vai e a repete sem economia. Para ele, há uma ideia latente na sociedade segundo a qual a boa cidade é aquela que ainda está para ser construída em outro lugar. Já o território onde já se vive, onde está o cotidinao, não é bom. “Estamos sempre olhando para um outro lugar, e isso foi construído historicamente”, destaca.

Com 27 regiões metropolitanas e uma das maiores taxas de urbanização do mundo o Brasil tem cerca de 85% da sua população vivendo em áreas urbanas. Ainda assim, os problemas persistem. Do início dos anos 80 até hoje, vimos o fim do BNH e das políticas de financiamento subsidiadas pelo Estado. Conquistamos a Constituição, criamos a lei de licitações e o Estatuto das Cidades em 2001, ainda pouquíssimo implementado. A lei do saneamento básico foi sancionada em 2007 e, em 2011, o regime diferenciado de contratação, que terminou por levar à desvalorização do processo de planejamento.

Mais recentemente, o Minha Casa Minha Vida se destacou nessa área. Embora reconheça o programa como “um investimento civilizatório histórico, comparável ao plano Marshal dos americanos para reconstruir a Europa", Fajardo destaca os problemas de construção em 53% dos imóveis. “Quase 300 bilhões foram investidos no programa. Para se ter uma ideia, a Copa custou 25 bilhões e as Olimpíadas, 34 bilhões. O programa foi importante, mas teve como base experiências no México, que hoje enfrenta o problema das residências abandonadas. Muita gente foi beneficiada, mas acho que o montante foi investido equivocadamente”, explica.

 “Em duas gerações podemos mitigar esse processo em um esforço que não nasce do preconceito com aqueles espaços, mas do entendimento de que precisamos produzir uma sociedade diversa e misturada no território brasileiro para chegar em algum lugar como nação”.

 

Sociedade diversa e misturada
Hoje, cerca de 6% da população brasileira vive em favelas ou loteamentos irregulares em território urbano. Só metade dos domicílios brasileiros tem esgoto, segundo Fajardo. No entanto, em duas gerações, de acordo com o que dispomos hoje, seria possível urbanizar as favelas e frear a expansão da favelização. “Para isso, é preciso uma nova agenda e uma nova forma de olhar a governança urbana”, defende. “É preciso falar de política de habitação e da sua função como organizadora do território”, completa.

Nos anos 60, a remoção era a abordagem que predominava no tratamento de áreas informais. Apenas o Favela Bairro veio depois disso. A Rocinha conseguiu avançar mais e convenceu o governo do estado a contratar um Plano Diretor para a favela. Em algum momento chegou o PAC, o plano foi abandonado e tentaram colocar um teleférico contra a vontade dos moradores. "Essas iniciativas geraram mais conhecimento sobre os territórios, mas  favela como um modelo para as cidades já não funciona como funcionou um dia para a questão das desocupações. Favela não é mais solução. Precisamos cuidar das nossas e implementar um marco regulatório. Temos condições de, em duas gerações, mitigar esse processo em um esforço que não nasce do preconceito com aqueles espaços, mas do entendimento de que precisamos produzir uma sociedade diversa e misturada no território brasileiro para chegar em algum lugar como nação”.

Moradia digna para além da existência da casa
Fajardo abordou alguns casos de sucesso, na sua visão, em que o problema da moradia precária pode ser parcial ou completamente resolvido. Um deles é o Programa Vivenda, que atua com "kits reforma" em São Paulo, oferecendo reforma a baixo custo e rápida execução para moradores de favelas na cidade. No Rio de Janeiro atua a Inova Urbis, outro negócio social, que fornece gratuitamente não a execução da obra, mas o projeto de uma reforma, bem assessorada tecnicamente, aos moradores de favela interessados, que têm voz ativa para alcançar a arquitetura desejada. "Esse princípio de dignidade está sendo construído por negócios sociais. As ações de governo estão ficando para trás e a sociedade brasileira já está inventando soluções", comentou o palestrante.

Ele reforçou que tanto as condições internas da moradia quanto as externas são fundamentais para a dignidade das pessoas. "Nós adoramos ter a grande solução moderna que vai resolver tudo em cinco anos e não estamos interessados em saber se a calçada está boa, se está tudo bem feito e conservado. Mas essa é uma escala relevante e não cuidar dela atrapalha as políticas habitacionais", afirmou.

"As pessoas estão precisando da solução, não podem mais esperar o tempo de o governo fazer alguma coisa. Não tenho a menor dúvida de que a política habitacional é uma prioridade do país e das cidades brasileiras".

Centro histórico também é local de moradia
Uma das críticas traçadas por Fajardo à organização urbana do Rio de Janeiro é o centro histórico. Segundo ele, a aparência de abandono e degradação da região afasta o desejo de moradia das pessoas. "A ideia de morar nos centros históricos é uma penalização e não algo positivo, quando a região tem uma oferta de serviços, cultural, de empregos e de infraestrutura. Morar no centro histórico deveria ser um ponto fundamental".

Em São Paulo a porta já foi aberta: uma iniciativa do governo estadual, numa parceria público-privada (PPP), trabalhou a ocupação de uma área pública no centro histórico da capital. São quatro lotes que ao fim da construção terão catorze mil moradias, além de creche, escola de música, lojas comerciais, com localização próxima aos principais serviços urbanos. Uma das responsabilidades da empreiteira é a “tutela social”, com gestão do condomínio.

O arquiteto também abordou a recuperação de imóveis privados. Na época em que era presidente do Instituto Rio Patrimônio da Humanidade, participou da execução de projetos do Edital Programa de Apoio à Conservação do Patrimônio Cultural (PRÓ-APAC) com o objetivo de recuperar, em imóveis do centro histórico, fachada, cobertura, instalações prediais básicas, estrutura e acessibilidade. Em dois anos foram 23 imóveis recuperados e o projeto ganhou o Prêmio Rodrigo Melo Franco de Andrade, promovido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).

O acesso à moradia como política de Estado
Programas espanhóis de ocupação do centro histórico serviram de exemplos: arrendamento habitacional; reabilitação de edifícios, programas de apoio para moradia para jovens. "Existe um entendimento filosófico sobre a ideia de cidade que queremos resolver tudo mas não queremos criar programas continuados que ajudem os moradores". Os exemplos se espalham por outros países como Inglaterra, Estados Unidos e Chile. Nos Estados Unidos, os candidatos a prefeituras e governos estaduais prometem a produção de unidades habitacionais, com números e localidades, em suas campanhas, o que não ocorre no Brasil.

Finalmente, o urbanista abordou a falta de vontade política no Brasil de se destinar terrenos públicos à moradia. Como exemplo deu estacionamentos no centro e em Botafogo que pertencem ao INSS. Foram terrenos vendidos para se fazer produção imobiliária de mercado. "Temos muita terra pública, imóveis ociosos e não conseguimos destravar isso. Assim as pessoas continuam fazendo a autoconstrução e nós continuamos dizendo a uma parcela da população que o lugar delas é fora da cidade e não dentro da cidade". O Estado se torna especulador imobiliário em vez de seguir a constituição e destinar seus imóveis sem uso à função social. "A função social da cidade é a moradia. Nós passamos a trabalhar a cidade como se seu objetivo fosse econômico", conclui Washington Fajardo.

 

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