Lava Jato cobra conta de quem não deve, diz pesquisadora

Acordo de leniência firmado com a Braskem causou à Petrobras prejuízo bem superior ao benefício alardeado

Carros da Polícia Federal chegam com malotes e computadores na sede da polícia no Rio. Foto: Tania Rego/Fotos Públicas.

Publicado na Folha de São Paulo - Caderno Ilustríssima - 06/10/2019
Por Érica Gorga
- doutora em direito comercial pela Universidade de São Paulo (USP), com pós-doutoramento na Universidade do Texas. Foi professora nas Universidades do Texas, Cornell e Vanderbilt, diretora do Centro de Direito Empresarial da Escola de Direito de Yale e pesquisadora em Stanford e Yale.

Estratégias jurídicas inadequadas tomadas pela Operação Lava Jato fizeram com que penalizações recaíssem sobre empresas em vez de recaírem sobre os acionistas responsáveis pelos atos ilícitos, o que prejudicou setores da economia e acarretou perdas para trabalhadores e credores, diz pesquisadora. O acordo de leniência firmado com a Braskem causou à Petrobras prejuízo bem superior ao benefício alardeado.

Recém-empossado procurador-geral da República, Augusto Aras, criticou os excessos, abusos e a “espetacularização” da Operação Lava Jato, defendendo que o combate à corrupção seja realizado de modo técnico.

A fim de cumprir tal objetivo, terá um longo caminho para rever decisões da operação, que custaram muito caro à Petrobras e às empresas do setor de construção civil, bem como a milhares de seus acionistas, credores e trabalhadores, que pagam agora a conta dos equívocos das autoridades na esfera da responsabilização civil e administrativa pela corrupção e por fraudes perpetradas.

Apesar dos méritos da revelação dos esquemas de corrupção, é fácil perceber como a responsabilização financeira pelos ilícitos terminou por recair sobre terceiros. Marcelo Odebrecht passou a cumprir pena em regime semiaberto, desfrutando de sua mansão e podendo “visitar” a sede da construtora quando bem quiser — palpitando e interferindo nas decisões empresariais.

No entanto, o grupo Odebrecht passa pela maior recuperação judicial da história do país, com dívidas estimadas em R$ 98,5 bilhões de uma lista infindável de credores.

A estratégia desacertada da Lava Jato de penalizar as empresas responsáveis pela atividade produtiva, ao negligenciar as questões de controle societário, contribuiu para tal prejuízo de terceiros.

A família Odebrecht controla o grupo empresarial por meio da empresa Kieppe Participações. Emílio e Marcelo Odebrecht, os acionistas controladores finais, eram, respectivamente, presidentes do conselho de administração e da diretoria da Odebrecht S.A. — empresa esta que controla, por sua vez, a Braskem S.A.

Assim, enquanto acionistas controladores, os Odebrecht votavam para se elegerem na gestão e eram responsáveis pelas decisões, tanto em assembleias gerais quanto em órgãos administrativos compostos pelos executivos que escolhiam.

Em vez de imporem a responsabilidade e o ônus financeiro dos acordos ao próprio clã Odebrecht, diretamente culpado pela tomada das decisões criminosas, os procuradores optaram por estender a responsabilização financeira pelos crimes a todo o grupo empresarial Odebrecht, incluindo as empresas controladas, as quais congregam acionistas minoritários que não participavam das decisões espúrias do clã controlador.

É preciso lembrar que o Ministério Público Federal de Curitiba celebrou acordo de leniência de mais de R$ 3,8 bilhões com a empresa Odebrecht S.A. Contudo, a lei anticorrupção (12.486/2013) deixa claro, no art. 6°, que sanções “serão aplicadas às pessoas jurídicas consideradas responsáveis pelos atos lesivos”.

Outrossim, o art. 16 estabelece que o acordo de leniência será realizado “com as pessoas jurídicas responsáveis”. Para identificá-las, os procuradores deveriam obrigatoriamente ter recorrido à lei das sociedades anônimas (S.A.), a lei especial que disciplina as sociedades Odebrecht S.A. e Braskem S.A.

 Se tivessem examinado cuidadosamente a lei que rege as sociedades anônimas que pretendiam disciplinar, os procuradores verificariam que o acionista controlador é quem “responde pelos danos causados por atos praticados com abuso de poder” (art. 117), como, por exemplo, “orientar a companhia para fim estranho ao objeto social” (§ 1º a) ou “induzir ... administrador ou fiscal a praticar ato ilegal” (§ 1º e), dentre outras hipóteses.

 Ora, o conceito de acionista controlador abrange, pela lei das S.A., a pessoa jurídica controladora (art. 116), estando de acordo com a lógica da lei anticorrupção de responsabilizar pessoas jurídicas.

Trocando em miúdos, o ordenamento jurídico nacional exigia que a responsabilidade pelos danos incidisse exclusivamente sobre a sociedade controladora Kieppe Participações, que congregava as ações de controle de Emílio e Marcelo Odebrecht, os quais determinavam as decisões na Odebrecht S.A. e na Braskem S.A.

Logo, o Ministério Público Federal deveria ter celebrado o acordo de leniência com a própria Kieppe Participações e requerido, inclusive, a suspensão do direito de voto das ações dos Odebrecht, a fim de fazer cessar a influência das decisões ilegais de Emílio e Marcelo sobre todo o grupo empresarial.

O ideal seria ter imposto até a obrigação de os Odebrecht alienarem o controle do grupo. Livre da interferência da família controladora, o conglomerado poderia ter recuperado credibilidade e crédito no mercado, de maneira a evitar a perda de milhares de empregos e valor do investimento dos demais acionistas minoritários e credores. Isso não foi feito, muito pelo contrário.

 Primeiro, os procuradores impuseram proibições de contratações que recaíram sobre as empresas produtivas controladas, gerando instabilidade, interrompendo projetos e suscitando congelamento de linhas de crédito. Depois, o malfadado acordo de leniência da Lava Jato com a Odebrecht S.A. permitiu que a própria família Odebrecht continue a exercer o controle, vindo a decidir sobre quais companhias do grupo recai o ônus financeiro do acordo, um verdadeiro despautério (cláusula 7a § 4º).

Pior ainda, os procuradores de Curitiba celebraram acordo de leniência com a Braskem S.A., impondo encargo financeiro de mais de R$ 3,1 bilhões que incidem sobre a própria Petrobras!

Assim, contrariaram a técnica societária usual de averiguar quem assumirá a conta. Ora, a petroleira é detentora de 47% das ações ordinárias e 21,92% das preferenciais, o que equivale a 36,15% do capital total da Braskem S.A. Devido a tal estrutura de propriedade acionária, o acordo celebrado pelo MPF de Curitiba significa que, no fim das contas, a Petrobras e seus acionistas arcarão com mais de R$ 1,12 bilhão das penalidades que deveriam ter sido impostas somente aos Odebrecht!

Tal análise detalhada faz ruir o anúncio propagado pela Lava Jato na mídia de que o acordo da Braskem recuperou R$ 264,5 milhões para a Petrobras. Infelizmente, a 5ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF e a própria Justiça Federal de Curitiba, que homologaram os acordos, também desprezaram as cruciais questões societárias envolvidas e, desse modo, foram incapazes de compreender que o acordo gerou mais prejuízo do que reposição de perdas à Petrobras e a seus acionistas.

Portanto, é necessário ponderar sobre o dinheiro que a Lava Jato diz que recupera. O acordo de leniência com a Braskem causou à Petrobras prejuízo bem superior ao benefício alardeado. E nem sequer existe transparência suficiente para análises mais pormenorizadas.

O MPF aceitou manter sigilo dos apêndices dos acordos, em infração ao princípio da publicidade, e atendendo aos interesses dos Odebrecht que visam impedir que o público compreenda detalhes das avenças que os favorecem em detrimento de terceiros.

Entre os prejudicados estão credores da construtora, como os bancos BNDES, Caixa Econômica Federal e Banco do Brasil, com empréstimos sem garantias reais de mais de R$ 17 bilhões não pagos. O BNDES acabou de provisionar perdas de até R$ 14,6 bilhões com financiamentos associados à Odebrecht, além dos R$ 8,7 bilhões discutidos nas recuperações judiciais da Odebrecht e da Atvos (Odebrecht Agroindustrial). A Caixa pediu a extinção da recuperação judicial, alegando que o grupo baiano fez uma “consolidação substancial” ilegal de credores, e acaba de requerer a falência do grupo.

Em razão dos equívocos dos acordos da Lava Jato, os acionistas controladores delinquentes elaboraram reestruturações societárias eivadas de fraudes para expropriar acionistas minoritários e credores, conforme análise do próprio Tribunal de Contas da União.

Tal tribunal decidiu acertadamente bloquear R$ 1,1 bilhão em bens de Marcelo e Emílio Odebrecht, justificando que ambos têm atuado para esvaziar o patrimônio das empresas do grupo, com objetivo deliberado de evitar ressarcir os danos que causaram. Enquanto isso, acionistas minoritários, credores, fornecedores e trabalhadores arcam com as perdas.

A análise desapaixonada das estratégias jurídicas adotadas pela Lava Jato revela que o modelo de responsabilização adotado pelo MPF de Curitiba fez recair a maior parte das penalizações sobre as empresas, em vez de buscar confinar o ônus financeiro sobre os acionistas controladores responsáveis pelos ilícitos empresariais perpetrados.

Essas decisões jurídicas inadequadas prejudicaram a continuidade das atividades produtivas, agravando a crise de setores importantes da economia brasileira.

É verdade que a existência do sistema corrupto de gestão empresarial precede as ações da operação, suscitando a necessidade de intervenção das autoridades. Não se pode olvidar, porém, que cabe ao médico ministrar os remédios para combater a doença diagnosticada. E no caso da Lava Jato, na esfera empresarial, os remédios mal aplicados acarretaram gravíssimos efeitos colaterais.

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