Questionável regulamentação nas telecomunicações

Por Márcio Patusco Lana Lobo
Conselheiro do Clube de Engenharia

Por mais insólito e suspeitoso que possa parecer, o projeto de lei PLC 79/2016 e o acórdão 2142/2019 do TCU são rigorosamente conflitantes. O TCU na defesa do erário, e o PLC 79 em favor do repasse dos bens às concessionárias. Mudanças no marco regulatório das comunicações são anseios de longa data da sociedade brasileira e da comunidade do setor. Após a privatização ocorrida em 1998, onde o serviço de telefonia fixa foi apontado como essencial à época, inúmeras mudanças inovadoras no cenário de prestação de serviços ocorreram, e vieram estabelecer a necessidade de alterar a regulamentação no sentido de colocar o acesso à internet no foco das políticas públicas e aumentar a penetração da infraestrutura de telecomunicações. Todos sabemos da importância da internet nos dias de hoje, que tem perpassado praticamente todas as atividades da sociedade, desde a informação, serviços públicos e o entretenimento.

Apesar do Brasil ser atualmente a 9ª economia do mundo, de acordo com o Fundo Monetário Internacional, não temos registrado bons indicadores no setor de telecomunicações já há algum tempo. Isto é evidenciado por relatórios de diversas fontes, (*1) que colocam o país em situação bastante desconfortável, tanto em implementação de capacitações para tecnologias da informação e comunicações – TICs – (66º lugar do mundo), na instalação de redes de comunicações (72º lugar), nas velocidades de banda larga disponibilizadas (79º lugar). Além disso, um terço de nossos domicílios, que representam cerca de 24 milhões de lares, não dispõem de acesso à banda larga (*2). Some-se ainda que, a competição em internet é incipiente na maioria dos municípios brasileiros (*3), e que desigualdades sociais e regionais de atendimento aos serviços persistem.

A Conferência de Comunicações – Confecom – ocorrida em 2009 já evidenciava com suas propostas a necessidade de atualização do marco regulatório das comunicações. Sociedade civil, prestadores de serviço, operadoras, indústria, academia e entidades governamentais reunidas apontaram os novos caminhos a serem seguidos. Uma primeira iniciativa foi a instituição, em 2010, do Plano Nacional de Banda Larga – PNBL – que não obteve resultados satisfatórios. Em 2013, entidades da sociedade civil, entre elas o Clube de Engenharia, com a constatação do fracasso do PNBL, apresentaram ao Ministério das Comunicações e à Anatel, uma outra proposta. Para trazer a banda larga para o centro das políticas públicas de telecomunicações, estabelecia-se que este serviço fosse prestado também em regime público nos locais onde o atendimento não se dera de forma universal, e com a aplicação de tarifas módicas, possibilitadas pelo emprego do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações – FUST. Mesmo tendo despertado interesse em alguns dos gestores do governo, a proposta não foi implementada.

No vácuo criado pela falta de atuação do Ministério das Comunicações e da Anatel, algumas outras propostas pelo Legislativo começaram a surgir, e a mais significativa delas foi o PL 3453/2015 na Câmara dos Deputados, que acabou se transformando no projeto de lei PLC 79/2016 no Senado Federal. Com uma série de equívocos conceituais e de implantação em seu bojo, este projeto veio sendo apoiado pelo Ministério da Ciência Tecnologia Inovação e Comunicações – MCTIC, pela Anatel e pelas atuais concessionarias dos serviços, e combatido pelas entidades da sociedade civil, de defesa do consumidor e pelos provedores de internet. Sempre mal discutido e com audiências públicas no Congresso que não se finalizavam ou não se realizavam, o projeto de lei foi aos trancos e barrancos sendo mantido, mesmo tendo sofrido um Mandado de Segurança no STF e sem acolher emendas sugeridas durante o seu trâmite nas casas legislativas. Foi finalmente sancionado pela Presidência da República em 3 de outubro de 2019 pela Lei 13.879/2019.

O PLC 79, que entre outros procedimentos acaba com as concessões de telecomunicações e transfere toda a infraestrutura remanescente do serviço de telefonia fixa – STFC – para as atuais concessionárias, teve apontadas inúmeras inadequações em seu texto, sem que essas restrições abalassem a continuidade de seu apoiamento, até sua surpreendente sanção no ano de 2019. No entanto, permanecem alguns questionamentos importantes quanto à aplicação do seu conteúdo, que poderão inclusive vir a se constituir em eventuais judicializações que impactariam todo o desenvolvimento do projeto de lei.

Os equívocos do PLC 79/2016
Tal como apontado pela Consultoria Legislativa do Senado Federal em seu parecer de 21/08/2019 (*4), podem ser destacados como equívocos, entre outros, os seguintes pontos:

  1. O PLC 79 não segue o que estabelece a Lei Geral de Telecomunicações – LGT – e os contatos de concessão para os bens que devem retornar à União ao final dos contratos. Vale acrescentar que, esses bens, chamados de bens reversíveis, representam cerca de 40 milhões de itens, com valor estimado de 121 bilhões de reais, e fisicamente constituem toda a infraestrutura de telecomunicações do país, que inclui prédios, fibras óticas, cabos, equipamentos, postes, dutos, torres, antenas e sistemas associados (Ver Box abaixo).


    Telefonia fixa e Banda Larga Fixa

    É um engano se avaliar que a infraestrutura da telefonia fixa é obsoleta. Na verdade, ela possibilita que praticamente todos os segmentos da banda larga se apoiem em seus recursos de rede, tanto no backbone, como no backhaul e na última milha ou acesso de usuário. No segmento de acesso, novas tecnologias, tal como o xDSL, já possibilitam velocidades de até 1Gbps (tecnologia G.Fast já padronizada pela UIT-T) e 10 Gbps (tecnologia XG.Fast em fase de laboratório e testes de campo).

    Estas tecnologias permitem um atendimento bastante econômico principalmente onde já se tem o recurso da telefonia instalado. No Brasil, os acessos via xDSL são os mais utilizados proporcionalmente para o atendimento de banda larga. Estes recursos representam cerca de dezenas de bilhões de reais, e devem retornar à União ao final dos contratos de concessão do serviço de telefonia fixa.

     


  2. Repassa toda a infraestrutura de telecomunicações do STFC às atuais concessionárias sem contrapartidas claras.
  3. Se equivoca no valor da adaptação da concessão para autorização, que seria calculada apenas a partir da migração, e não desde o início da concessão, desconsiderando o período mais lucrativo da concessão em que o subsídio cruzado foi utilizado para o desenvolvimento da banda larga sem nenhum controle por parte da Anatel.
  4. Estabelece renovações de frequências e posições orbitais automáticas sem licitações. Seria, por exemplo, abdicar, no futuro, de cerca de 70 bilhões de reais com as licitações até hoje realizadas das frequências do serviço celular no Brasil.
  5. Fomenta ainda mais a concentração de mercado nas grandes operadoras de telecomunicações em detrimento de outros prestadores de serviço, notadamente os pequenos provedores de internet.
  6. Enfraquece o Estado no poder de definir com soberania os caminhos de implantação de políticas públicas no setor. Ao não acolher com obrigações adequadas os serviços essenciais ao cidadão, tais como universalização, tarifas módicas, garantia de continuidade e qualidade do serviço, com o PLC 79, o Estado está se afastando temerariamente de sua função constitucional.

A questão dos bens reversíveis
Pelo seu valor e pelo teor emblemático que representam, os bens reversíveis se revestem, nesta discussão, como o principal ponto de discórdia entre os apoiadores e detratores à adoção do PLC 79. No entanto, em recente decisão do Tribunal de Contas da União – TCU – , através do acórdão 2.142/2019 (*5), de 11 de setembro de 2019, após repetidas negativas da Anatel no acompanhamento desses  bens, ficou claro o seguinte entendimento:

“Não impelir as concessionárias a prestar as devidas contas dos bens reversíveis – como vem fazendo a Anatel – significa, em última análise, consentir que se apropriem de parte de patrimônio bilionário sem que tenham pago sequer 1 centavo por isso, bem assim anuir com seu enriquecimento sem causa, em detrimento do interesse público e dos reais proprietários, a partir de sucessivas violações legais e contratuais”.

Por trás dessa afirmação do TCU existe uma discussão pouco conhecida, e que a Anatel por comodidade passou a defender, em prejuízo do interesse público. Todo o imbróglio criado se deve a uma interpretação no mínimo equivocada da Anatel focando nos bens reversíveis apenas para a continuidade do serviço, e não nos termos da LGT e dos contratos de concessão, onde está consagrado que TODOS os bens associados à concessão desde o seu início devem ser retornados à União. Estas duas visões passaram a se denominar, visão funcionalista, em que apenas os bens essenciais à continuidade do serviço devem ser retornáveis à União, e visão patrimonialista, em que todos os bens desde o início da concessão são retornáveis à União.

Vale acrescentar ainda mais uma citação do acórdão do TCU:

“Estranho que os beneficiários da inação da agência reguladora sejam exclusivamente as empresas concessionárias que, pela ausência completa de informações, tornam-se proprietários de patrimônio que não era seu, consistentes em bens vinculados ao serviço público. A ausência de acompanhamento dos bens reversíveis surtiu esse deletério efeito para o patrimônio público”.

Ou seja, por mais insólito e suspeitoso que possa parecer, o projeto de lei PLC 79/2016, aprovado no Senado Federal, apoiado pela Anatel e MCTIC, sancionado por lei pela Presidência da República, que advoga pela visão funcionalista, e o acordão do TCU, que se apoia na visão patrimonialista, são rigorosamente conflitantes. O TCU na defesa do erário, e o PLC 79 em favor do repasse dos bens às concessionárias.

As últimas manifestações, tanto do MCTIC quanto da Anatel, pela desconsideração pura e simples do acórdão do TCU, e pela continuidade das atividades da regulamentação do PLC 79, trilham o perigoso caminho da judicialização. Em recente reunião do Conselho Diretor da Anatel, o ambiente de ofensas pessoais entre seus membros e o desacordo em relação à condução do assunto, indica que nem mesmo dentro da agência existe pacificação em torno da questão. Alguns segmentos dentro do setor também se julgam prejudicados com a mudança das regras sem uma discussão mais profunda dentro da sociedade. Estas manifestações já se fazem ouvir, como no recente evento promovido pelo Comitê Gestor de Internet – CGI.br – 9º Fórum da Internet no Brasil, em Manaus, onde algumas entidades se colocaram insatisfeitas com a sanção do PLC 79/2019 nos seus atuais termos.


(*1) UIT-T: Measuring The Information Society Report 2017

World Economic Forum: The Global Information Technology Report 2016

Akamai: The State of the Internet Q1 2017 Report

(*2) CGI.br: TIC Domicílios 2018

(*3) Anatel: Relatório Anatel de 20/10/2016 de Aníbal Diniz

(*4) https://teletime.com.br/21/08/2019/parecer-de-consultoria-legislativa-do-ccs-sugere-mudancas-no-plc-79/

(*5) http://www.tcu.gov.br/Consultas/Juris/Docs/judoc/Acord/faltantes/AC-2142-2019-P.rtf

 

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