Pesquisadores denunciam: Proposta do governo privatiza o SUS em plena pandemia, e faz a festa dos planos de saúde; conheça as 18 armadilhas

Foto: Govesp

Por Conceição Lemes
Publicado em Viomundo

O pote de ouro no final do arco-íris dos planos de saúde que operam no Brasil é o mesmo: apoderar-se do Sistema Único de Saúde, a maior conquista dos brasileiros.

100% dos empresários e entidades do setor “defendem” o SUS.

Adoram “maior articulação” com o sistema; um SUS “ integrado” aos planos de saúde.

Porém, é uma falsa defesa.

Não visam à saúde pública da população brasileira, mas bombar seus negócios privados.

Querem tudo junto e misturado, sob uma condição: de o SUS arcar com os tratamentos caros e os procedimentos lucrativos ficarem, é claro, com os planos de saúde.

Tanto que, de tempos em tempos, empresários da saúde parasitas dos recursos públicos em conluio com políticos (parte eleita com recursos dos planos) e agentes governamentais tentam privatizar os recursos do SUS.

É o que justamente acontece agora, em plena pandemia.

Em 30 de abril, o Ministério da Saúde da Saúde lançou uma consulta pública na plataforma Participa + Brasil.

A consulta tem título pomposo: Política Nacional de Saúde Suplementar Para o Enfrentamento da Pandemia da Covid-19.

Lembrando-se de que os planos privados (é a chamada saúde suplementar) se recusaram a ter com o SUS uma fila única de leitos de UTI para enfrentar o novo coronavírus, alguém talvez diga: “Ufa, finalmente vão contribuir para o combate à covid!”

Infelizmente, é o contrário.

O título é enganoso.

Pura desfaçatez.

A mais sórdida proposta já feita.

Além de se apropriar dos recursos do SUS (que lasquem os 70% dos brasileiros que não podem pagar saúde privada!), os planos querem liberar geral os reajustes e ter autorização para vender planos baratos de menor cobertura.

A proposta foi acertada em reunião realizada, em 27 de abril, do recém-criado Conselho de Saúde Suplementar (Consu), da qual os ministros da Casa Civil, general da reserva Luiz Eduardo Ramos, Economia, Paulo Guedes, e Saúde, Marcelo Queiroga.

Guedes e Ramos, vale relembrar, vacinaram-se às escondidas, para não chatear o chefe.

“É mais uma tentativa de desconstrução de direitos e da democracia”, afirma a professora Lígia Bahia, do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

“São empresários da saúde parasitas de recursos públicos, extremistas na defesa de seus interesses privados”, frisa.

“São abutres, destrutivos, não respeitam a vida da população brasileira”, acusa.

Na verdade, entra governo, sai governo, os planos de saúde atacam, só muda a estratégia.

“Agora, é via Consu”, avisa professor Mário Scheffer, do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP.

“Trata-se de um grupo de ministros criado para tratorar a fraca e omissa ANS [Agência Nacional de Saúde Suplementar]”, esclarece.

“Já tentaram via Congresso, via ex-ministro da saúde Ricardo Barros, via ANS em governos passados, quando indicaram gente do mercado para presidir a agência”, relembra Scheffer.

O que impediu a concretização foram as divergências internas entre os próprios empresários do setor, de um lado, e a mobilização de pesquisadores, entidades da saúde e pró-consumidores, do outro.

“Agora, a situação é muito mais perigosa, com um congresso submisso ao governo genocida e os movimentos sociais desarticulados, atuando em ‘bolhas’”, alerta Scheffer.

Lígia Bahia coordena o Grupo de Pesquisa e Documentação sobre Empresariamento na Saúde do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da UFRJ (GPDES – IESC/UFRJ).

Mário Scheffer, o Grupo de Estudos sobre Planos de Saúde da Faculdade de Medicina da USP (GEPS – FMUSP).

As duas equipes se debruçaram sobre a proposta do governo Bolsonaro.

O resultado é o documento Planos de saúde tentam “passar a boiada” em plena pandemia.

Por que a proposta do Consu tem que ser suspensa

A avaliação dos pesquisadores é arrasadora.

Eles elencam os pontos cruciais:

— Trata-se de ataque ao bom senso, um desrespeito ao atual momento catastrófico da vida no país.

— É mais uma tentativa de mudar as regras do jogo, com diminuição de direitos minimamente assegurados e nítidos prejuízos ao SUS e aos usuários de planos de saúde.

— No lugar de medidas para fortalecer o SUS e reduzir mortes por covid, o governo decidiu atender às velhas demandas do setor privado assistencial e lançar uma política para o crescimento do mercado dos planos de saúde.

— O documento, além de propositalmente confuso, é nitidamente favorável aos interesses privados.

— Diz que a covid-19 “gerou mudanças profundas nos sistemas de saúde”.

Mas esconde que, no mundo inteiro, as transformações para responder à pandemia foram direcionadas para o fortalecimento de sistemas e redes públicas de serviços de saúde

— Refere-se à “integração entre setor de saúde suplementar e sistema público de saúde”.

Mas oculta o “papelão” das empresas de planos privados durante a pandemia, que se recusaram a participar dos esforços para a unificação de leitos de UTI, mantiveram reajustes abusivos das mensalidades e negaram a cobertura de testes de covid-19.

— Alardeia “uma política transversal, integrada e intersetorial.”

Mas ignora que essa “integração” que se pretende perpetuar é perversa, baseada no uso de recursos públicos para subsidiar a oferta e a demanda de planos privados, e no financiamento, pelo SUS, de ações, tratamentos e medicamentos de alto custo para usuários da saúde suplementar.

Atente às 18 armadilhas da proposta de Guedes-Queiroga-Ramos

Conclusão: a proposta do governo Bolsonaro é um amontado de inverdades e absurdos, que atenta à saúde da população.

Em seu trabalho, os pesquisadores da UFRJ e da USP desmontam, ponto a ponto, todas as armadilhas da proposta, e mostram por que cada item deve ser rejeitado (gov.br/participamaisbrasil/pnss-covid-19).

ARMADILHA 1

Mais de um ano depois do início da pandemia no Brasil, a proposta de “integrar Saúde Suplementar” ignora o cotidiano de clientes de planos:

— muitas pessoas não conseguem mais pagar as mensalidades;

— famílias contraem empréstimos para tentar manter os contratos;

— empresas têm deixado de oferecer planos para seus empregados ou passaram a contratar planos de menor preço, pior qualidade e menor cobertura.

Ou seja, é uma “integração” que não prevê regular as práticas dos planos privados, mas sim usar o SUS para alavancar esse mercado.

Além disso, é um desatino um plano nacional para um setor que é nitidamente concentrado em termos geográficos (as proporções de clientes variam entre 41 % em São Paulo a 5% no Acre), de oferta de serviços e renda de suas clientelas

ARMADILHA 2

A proposta enumera platitudes como “dignidade”, “vulnerabilidade”, “transparência” e “excelência” e ignora totalmente o princípio essencial, inscrito na Constituição de 1988, do direito universal a saúde.

A “integração com o SUS” sugerida não é um princípio, mas a tentativa de jogar a saúde pública no precipício.

O SUS, está previsto em lei, é o instrumento para efetivação de direitos e não um anteparo de negócios e um resseguro de transações empresariais.

ARMADILHA 3

Os valores e práticas do SUS e dos planos privados são heterogêneos e, na maioria das vezes, divergentes, o que inviabiliza a proposta de “integração”.

Qualquer aproximação dependeria da adoção da saúde como um bem comum, ou seja, da premissa de que todos terão acesso a cuidados efetivos e de qualidade, de acordo com as necessidades e gravidade de quadros clínicos, e não conforme a capacidade direta ou indireta de pagamento.

Significaria inverter o padrão assistencial predominante hoje no Brasil, segregado e estratificado.

O que chamam de “integração”, na verdade, é a ideia do SUS como rede prestadora das operadoras privadas, adicionada à liberação da venda de planos com coberturas reduzidas.

A proposta vislumbra uma integração reversa, na qual o SUS entra como coadjuvante e as operadoras se apresentam como as protagonistas do sistema de saúde.

ARMADILHA 4

Os planos de saúde comercializam o atendimento sintomático e curativo a demandas espontâneas, cujos procedimentos serão ou não autorizados em estabelecimentos de saúde.

A estrutura assistencial dos planos privados não inclui medidas que previnam exposição a riscos.

As redes prestadoras de serviços têm qualidade distintas, de acordo com os tipos e preços de planos.

Esse modus operandi leva a desfechos ineficazes tais como: descontinuidade de tratamentos, indefinição de responsabilidades e conflitos entre operadoras, profissionais de saúde e pacientes.

ARMADILHA 5

É mais do que sabido que os prazos hoje dependem do tipo de plano e da especialidade procurada.

Nos planos “VIP” os prazos são curtos, nos planos básicos há longa espera, que muitas vezes deságua no atendimento pelo SUS.

Os contratos não mencionam prazos, pois adiar agendamentos é um mecanismo estruturante de um mercado que sempre impôs barreiras de acesso.

Não está escrito, mas esse item da proposta visa remover o artigo 3º da RN 259/ 2011 da ANS, que definiu prazos máximos para o atendimento, hoje uma “pedra no sapato” para a comercialização de planos com cobertura restrita, que é o objetivo da política em consulta.

ARMADILHA 6

“Intermediação”, aqui, é a possiblidade de aumentar a interferência das operadoras nas condutas dos médicos e profissionais de saúde.

As empresas de planos poderão exigir pareceres prévios à liberação ou não de tratamentos, ou auditorias posteriores que determinam glosas e não pagamento aos prestadores.

Uma das sugestões de “intermediação” sempre sugerida é a inclusão de uma nova atribuição para a ANS: estimular denúncias e investigações de profissionais de saúde vinculados a indústrias de medicamentos, insumos, órteses etc.

As relações entre médicos e pacientes já são regidas por instituições e conselhos profissionais.

As tentativas de impor regras para o relacionamento entre médicos e operadoras não visa a transparência, muito menos a segurança dos pacientes, mas sim impor contratos desfavoráveis à prestação de serviços.

ARMADILHA 7

Para clientes de planos de saúde nada é mais previsível do que os reajustes das mensalidades.

Não há dúvidas: o aumento vem sempre e acima da inflação, vem no aniversário do plano e na mudança de faixa etária, e é liberado na imensa maioria dos contratos, inclusive nos chamados “planos falsos coletivos” e coletivos por adesão que substituíram os planos individuais, oferta praticamente extinta do mercado, com autorização da ANS.

Não por acaso a elevação das receitas das operadoras ocorre mesmo quando há redução do número de clientes.

Abusos nos reajustes têm sido um tormento, especialmente para pessoas com doenças graves que se vêem ameaçadas na manutenção do tratamento.

A solução já foi apresentada em inúmeros fóruns: é inadiável definir um parâmetro único para reajustes.

Planos de saúde são baseados no mutualismo e em cálculos de riscos comunitários. Pressupõem a diluição dos riscos entre todos os participantes.

É um contrassenso penalizar com maiores reajustes os idosos, doentes e integrantes de contratos enganosos tipo “pejotinha” e “adesão dissimulada”.

ARMADILHA 8

O setor suplementar tem mostrado um incremento notável e contracíclico ao longo da história.

Cresceu em número de clientes e em faturamento até nas chamadas “décadas perdidas” dos anos de 1980 e de 1990, e seguiu apresentando uma trajetória de expansão.

Recentemente, em plena superposição das crises econômica e sanitária, os planos de saúde aumentaram suas receitas, entraram na bolsa de valores, promoveram grandes aquisições e fusões.

Não há justificativa para o apoio governamental ao setor privado de saúde em um país que tem o SUS e a saúde como um direito de todos e dever do Estado.

Suportes públicos para ampliar a privatização da saúde, num país tão desigual como o Brasil, são ilegais e imorais.

ARMADILHA 9

Propositalmente ambígua, a redação remete a planos com coberturas mínimas e fortes barreiras de acesso, tendo como “garantia” o acesso ao SUS.

O plano cobriria apenas consulta com generalistas e exames baratos, o resto é com o SUS.

Querem normalizar o SUS como porta de entrada de seus clientes, sem serem importunados pela Justiça.

Atualmente, propagandas de operadoras já incluem hospitais de emergência públicos como integrantes de suas redes assistenciais.

Pretendem “oficializar” a rede pública como retaguarda permanente. Seria uma divisão de ações, na qual os planos ficam com o baixo custo e o SUS arca com tudo mais.

ARMADILHA 10

É relevante estabelecer uma base comum de informações para o monitoramento do acesso e qualidade da atenção à saúde no país.

Mas não para facilitar o ingresso de clientes de planos no SUS. Considerável volume de recursos públicos já foi gasto em sistemas de informação, sempre implementados parcialmente e descontinuados.

Informação em saúde é uma atribuição do Ministério da Saúde e não da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS)

Em que pesem esforços de organização e divulgação de informações pelo corpo técnico da ANS, a agência hoje restringe acesso a dados sobre preços e reajustes, mesmo quando solicitados pela Lei de Acesso à Informação, impedindo relacionar valor de mensalidades com o uso e ocupação de serviços de saúde.

ARMADILHA 11

A expressão “razoáveis” embute a pretensão de não estabelecer prazos, o que leva pacientes a não obter cuidados em tempo oportuno para seus problemas de saúde.

Os planos “baratos” e com coberturas restritas não são compatíveis com garantias mínimas.

E para que existam, assegurando retornos máximos aos investimentos das operadoras, requerem o ambiente de total desregulamentação almejado.

ARMADILHA 12

Planos com coberturas reduzidas, ou seja, somente aquelas consignadas nos contratos, aumentariam o número de clientes do segmento suplementar e trariam mais retornos financeiros às operadoras.

Restrições radicais de cobertura tornam atrativo o preço de mensalidades num primeiro momento mas, na hora do adoecimento, tendem a gerar gastos catastróficos e a busca tardia do SUS por indivíduos e famílias.

ARMADILHA 13

O setor suplementar mantém estreitas relações entre prestadores e operadoras, que determinam protocolos assistenciais e valores de remuneração, nem sempre compatíveis com a ética profissional e as necessidades de saúde.

Não se trata de atenuar conflitos e tamponar tensões, é preciso conferir transparência aos acordos sobre a prestação de serviços e a remuneração, inclusive de procedimentos que têm a mesma denominação, mas são sub ou sobrevalorizados conforme o tipo de plano.

ARMADILHA 14

A ideia subjacente à palavra “transparência” é uma só: a de reajustes anuais para contratos individuais e coletivos baseados na variação dos custos médico-hospitalares e das novas tecnologias diagnósticas e terapêuticas.

As operadoras poderiam, assim, definir reajustes diferenciados conforme a região e em função do tipo de plano, com a venda de módulos segmentados de cobertura e padrões distintos de rede credenciada.

ARMADILHA 15

Interditar o direito de recorrer à justiça em busca de garantias previstas nos contratos configura uma tentativa de obliterar as atribuições e competências dos órgãos do Poder Judiciário e Ministério Público.

As ações judiciais têm sido fundamentais para conter reajustes abusivos, assegurar coberturas negadas pelos planos, manter pacientes em leitos de terapia intensiva e realizar procedimentos terapêuticos comprovadamente eficazes para cânceres e outras doenças.

ARMADILHA 16

Garantias financeiras, com liquidez, são exigidas para todas as instituições de natureza securitária . Afinal, não se pode fazer face a despesas acima de incrementos previsíveis.

A ANS definiu exigências, bem como penalidades, visando a apresentação de planos de contas das operadoras, com demonstrações de ativos e passivos.

Versões anteriores de propostas empresariais queriam suprimir punições e multas às operadoras, como se a ação de fiscalização da ANS fosse uma ameaça aos requerimentos prudenciais da atividade do setor.

ARMADILHA 17

Querem atribuir ao Conselho de Saúde Suplementar (CONSU) um papel hierarquicamente superior ao da ANS.

O CONSU, uma instância consultiva, passaria a arbitrar conflitos e celebrar termos de mediação envolvendo a regulamentação dos planos de saúde.

A ANS é a instância executiva encarregada da regulação dos planos de saúde e o CONSU, integrado por membros de ministérios e indicados do governo federal, é um órgão de natureza política.

Não é atribuição do CONSU encomendar para a ANS um plano para a expansão do setor privado.

A existência da ANS só se justifica como agência reguladora e não enquanto órgão público pró-mercado.

ARMADILHA 18

Trata-se, aqui, de tentativa de “passar a boiada”, de mudar a legislação para assegurar a comercialização de planos com coberturas restritas, por meio de expedientes administrativos, mediante a convocação e mobilização do CONSU.

É mais uma manobra para evitar o debate franco e aberto.

Mais um episódio protagonizado pela “coalizão” entre empresários, autoridades governamentais e parlamentares que se tornaram conhecidos por palavras e gestos contra a ciência, os direitos humanos e a democracia.

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