Mobilidade Urbana pós-Covid-19 - o caso da Região Metropolitana do Rio de Janeiro

Não se pode admitir que o transporte público do Rio de Janeiro, que diariamente movimenta uma quantidade expressiva de passageiros, venha à ruína, e junto com ele todos os sonhos acalentados durante décadas de um serviço de excelência para seus clientes. Foto: Agetransp

Por José Gustavo de Souza Costa, ex-Presidente do Conselho da SuperVia e ex-CEO do MetroRio

A PRIVATIZAÇÃO

A privatização do sistema metro-ferroviário do Rio de Janeiro foi realizada em 1998 quando a falta de investimento em manutenção e na operação provocou sua degradação, comprometendo o Nível de Serviço de forma crítica. A Flumitrens, sucessora da RFFSA, era a estatal controlada pelo Estado do Rio de Janeiro que chegou a transportar 1 milhão e 100 mil passageiros/dia em uma situação em que o sistema ferroviário absorveu a demanda cativa do transporte rodoviário mostrando, nessa ocasião, o potencial de demanda do sistema. Naquele período a demanda caiu para somente 140 mil passageiros/dia e para tal cenário existem várias explicações, mas provavelmente a principal tenha sido a redução da frota de trens disponíveis que passaram de 254 trens para somente 37 trens ou seja menos 85%.  A companhia perdia 20 milhões de dólares por mês que eram cobertos com um subsídio do Estado. Nesta mesma época, o Metrô apresentava um desempenho semelhante: após ter alcançado um pico de 450 mil passageiros/dia, transportava somente 210 mil passageiros/dia com 40% de sua frota inoperante e um prejuízo mensal de 10 milhões de dólares.

A partir de 1999, as duas companhias recém privatizadas começaram a atrair novos passageiros com um processo agressivo de investimentos em novos trens e recuperação da infraestrutura que havia sido destruída. 

A PANDEMIA

Dentre os diversos setores fortemente impactados pelo novo coronavírus, o de mobilidade urbana foi um dos mais atingidos com forte queda do número de passageiros, menos 85% no Rio de Janeiro, até casos extremos como o de Nova York com menos 95%. Mais que isso, dada à atual necessidade de distanciamento físico entre pessoas, o retorno aos níveis anteriores de ocupação poderá ser extremamente moroso.

Tomando o caso do Rio de Janeiro, vimos que as concessionárias MetroRio e SuperVia chegaram a transportar no total durante o ano passado, mais de 1 milhão e 600 mil passageiros/dia. Este número está hoje abaixo de 350 mil. Por sua vez o fluxo de passageiros no VLT, que nunca alcançou os números inicialmente projetados de 200 mil passageiros/dia, apresentou queda ainda mais expressiva. 

Pela natureza de suas operações, o transporte metro-ferroviário tem estrutura de custos fixos elevados e com pouca flexibilidade operacional. O sistema opera com dois picos de demanda bem evidentes, pela manhã, no sentido casa-trabalho e pela tarde, no sentido trabalho-casa. Temos ainda um meio-pico na hora do almoço, este mais relevante no metrô quando comparado com o trem.

Ainda não se sabe quando as restrições de circulação serão flexibilizadas, mas está claro que o sistema de transporte urbano precisa ter sua operação otimizada e deve ser repensado tanto sob os novos aspectos sanitários, como pela viabilidade financeira das concessionárias. 

A OPERAÇÃO

Do ponto de vista operacional, as grades de horário terão que ser revistas ajustando-se à necessidade de higienização, à desaceleração econômica e à menor quantidade de passageiros por metro quadrado. Um trem “cheio” no Brasil tem cerca de 6 passageiros por m2, enquanto no Japão este número é de 10 (quem já não viu vídeo de funcionários com luvas brancas empurrando passageiros para dentro dos carros ferroviários nos sistemas de transporte japoneses?). 

O sistema de transporte urbano no Rio de Janeiro está dividido em concessões estaduais a saber: trem, metrô, barcas e ônibus intermunicipais; e concessões municipais como o VLT e os ônibus municipais. Do ponto de vista regulatório e para permitir a integração entre modais, ter dois sistemas distintos representa um desafio que deve ser atacado pelas autoridades competentes. É fundamental que haja coordenação entre Governador e Prefeitos, particularmente na Região Metropolitana hoje atendida pelas concessionárias SuperVia, MetroRio, CCR Barcas, VLTCarioca, empresas de transporte de ônibus intermunicipais e municipais. Governo Estadual e Prefeituras dessas regiões têm muito pouco diálogo e sem este, não existe possibilidade de otimizar os sistemas, reduzir custos operacionais e melhorar a qualidade do serviço para os clientes. Afinal, os passageiros são clientes e não usuários, e precisam ser tratados como tal

Além disso, hoje há uma canibalização dos vários sistemas de transporte que “competem” entre si. Construímos com dinheiro público quilômetros de linhas metro-ferroviárias (trem, metrô e VLT) e colocamos ao mesmo tempo ônibus fazendo exatamente o mesmo trajeto. É ineficiente do ponto de vista econômico-financeiro, ineficiente do ponto de vista logístico e ineficiente do ponto de vista energético (tanto pelo consumo quanto pela queima desnecessária de combustível fóssil). O resultado desta “competição” é notório. Ônibus circulam vazios pela cidade e consequentemente mais de uma dezena destas empresas faliram com veículos de pouca qualidade e clientes mal atendidos.

As linhas de ônibus deveriam ser ajustadas para passar a funcionar, em larga medida, como alimentadores dos sistemas de transporte de alta capacidade como linhas circulares, semelhantes às do Metrô de Superfície ora operadas pela MetroRio. Esta forma de operação permitiria a otimização tanto dos sistemas de ônibus como os de trem, metrô e barcas.

O mesmo raciocínio se aplica ao VLT, que compete no Centro do Rio de Janeiro com linhas de ônibus cumprindo traçado semelhante. Só um país muito rico pode se dar ao luxo de gastar bilhões com sistemas de transporte de alta capacidade e permitir em paralelo um sistema de linhas rodoviárias.

A atual crise é uma excelente oportunidade para otimizar o sistema de transporte do Rio de Janeiro e usá-lo como modelo para o resto do país. 

EQUILÍBRIO ECONÔMICO-FINANCEIRO

Como acontece com todas as concessões no transporte urbano, também há previsão contratual de ajustes tarifários para adequar o seu equilíbrio econômico/financeiro, ajustes estes que podem oscilar materialmente para cima ou para baixo. O fato é que no atual momento econômico do Estado do Rio de Janeiro a solução para o problema tarifário não será com um aumento de tarifa nem tão pouco com subsídios públicos.

As quatro companhias de transporte de média e alta capacidades do Rio de Janeiro entraram nesta crise em situação financeira bastante distinta. O MetroRio é subsidiária integral da Invepar (empresa que abriga em seu portfólio mais de dez concessões no país, incluindo a Linha Amarela e o Aeroporto de Guarulhos). Terminou o ano de 2019 com Ebitda de 260 milhões, prejuízo de 6,2 milhões e dívida liquida de 830,3 milhões. Era considerado uma das joias da coroa da controladora até o início da pandemia.

A SuperVia, por sua vez, teve uma mudança na sua estrutura acionária em 2019 quando o grupo japonês Mitsui assumiu o controle tendo hoje aproximadamente 90% da empresa. A situação da SuperVia já era mais complicada que a do Metrô, tendo renegociado sua dívida com diversos credores (dentre os quais o BNDES é o principal) além de diversas negociações pendentes com o poder concedente, tanto por conta de diversas demandas relativas à reequilíbrio econômico-financeiro quanto por investimentos devidos relativos à renovação do contrato de concessão. A recente redução drástica do fluxo de passageiros por conta da quarentena sem dúvida torna a situação da companhia ainda mais preocupante. Adicionalmente, a SuperVia serve principalmente a população de baixa renda da Zona Oeste e da Baixada Fluminense, população essa muito dependente do transporte ferroviário para prover suas necessidades de deslocamento. 

Com base nos números públicos do exercício fiscal 2019, calcula-se que o furo de caixa mensal destas duas empresas é da ordem de 40 milhões cada. Estimando-se uma retomada gradual do fluxo de passageiros até atingir 75% do volume pre-Covid no final de 12 meses, a necessidade de capital estimada é de pelo menos 600 milhões para as duas companhias.

Barcas é a concessionária que administra o sistema de barcas na Baía de Guanabara que tem se mostrado incapaz de equilibrar suas contas. Esta empresa é uma subsidiária da CCR com várias concessões pelo Brasil, lutando com um déficit crônico de passageiros que inviabiliza o negócio.

O VLT é uma concessão municipal e é a companhia que está em situação mais delicada destas empresas. Ela opera uma concessão municipal e as divergências públicas com a prefeitura do Rio de Janeiro já perduram por mais de um ano. O sistema nunca atingiu o número de passageiros necessário para que não dependesse da complementação financeira contratual por parte do município, que para agravar tem tido dificuldade para pagar os valores devidos. Adicionalmente enfrenta competição direta dos ônibus municipais e o seu controle acionário é difuso, com quatro grandes grupos no controle, dentre os quais a Fetranspor, a CCR (Barcas), a própria Mitsui (SuperVia) e a Invepar (MetroRio). 

Neste ambiente complexo, tanto pela crise sanitária (e seu efeito sobre o comportamento da sociedade) quanto pela crise financeira que já se instalou, a solução “tradicional” de aumentar a tarifa para buscar um suposto reequilíbrio econômico-financeiro não é viável. O novo valor de tarifa seria proibitivo e os clientes não poderiam pagar, na contramão da modicidade tarifária. Assim sendo, devemos evitar ao máximo tentar transferir para o cliente o ônus de ineficiência na operação, da redução brutal da quantidade de usuários e finalmente da falta de coordenação política que permita operar um sistema com um mínimo de integração operacional e tarifária.

UMA SOLUÇÃO VIÁVEL

As duas companhias que operam o sistema metro-ferroviário têm um fator que as une: seu principal credor, é o BNDES. O banco tem atualmente 990 milhões de exposição a estas empresas, sendo 211,7milhões com o MetroRio e 778,4 milhões com a SuperVia. Colocar mais capital nestas empresas quer como empréstimo ou como capital sem uma solução permanente para a falta de coordenação operacional é uma aposta muito arriscada. Por outro lado, se traçarmos um paralelo com o setor de transporte aéreo onde a atuação do BNDES foi decisiva para colocar o sistema financeiro, empresas e reguladores na mesma mesa, vemos que existe uma solução.

Situações extremas mostram que para sobreviver é necessária a união de todos. Desde o início da concessão o Banco Mundial foi o principal financiador do governo do Estado e permitiu que a SuperVia conseguisse se reerguer e prestar um serviço de qualidade aos seus clientes. Está na hora de chamar o Banco Mundial, BNDES, Governo Federal, Governo do Estado, Prefeituras da Região Metropolitana, Concessionárias de sistemas sobre trilhos, Concessionárias de sistemas rodoviários, Ministério Público Estadual e todos os outros interessados para que juntos encontrem uma solução. Dentro da proposta razoável e viável, estas empresas devem buscar:

  1. Renegociar as dívidas atuais com seus credores;
  2. Acessar crédito adicional para superar a redução de passageiros nos próximos 12 meses; 
  3. Avaliar eventual conversão de parte da dívida atual em capital;
  4. Avaliar alternativas para reequilíbrio econômico-financeiro que vão além de aumento de tarifa como por exemplo, cessão de imóveis do Estado ou Município e a venda do direito de exploração do espaço aéreo sobre as linhas férreas (em particular no caso da SuperVia);
  5. Obter isenção temporária de impostos estaduais e federais (em especial do ICMS) sobre as tarifas de energia elétrica. Caso no futuro estes impostos fossem reinstituídos gerariam um imediato aumento do preço da tarifa para reequilibrar o contrato de concessão;
  6. Revisar todos os processos de operação como adequação temporária da grade horária, e/ou quaisquer outras medidas necessárias para uma efetiva redução de custos;
  7. Realizar reuniões extraordinárias de revisão do contrato de concessão pela AGETRANSP;
  8. Acessar fundos federais destinados a alívio das empresas de transporte público em forma de créditos a juros baixos para aumentar a liquidez do sistema.
  9. Por último, mas não menos importante, que este grupo de trabalho seja coordenado por um dos agentes públicos acima citados. 

Não se pode admitir que o transporte público do Rio de Janeiro, que diariamente movimenta uma quantidade expressiva de passageiros, venha à ruína, e junto com ele todos os sonhos acalentados durante décadas de um serviço de excelência para seus clientes.

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