Autorizar mineração em terras indígenas e os fertilizantes?

Crítica ao Projeto de Lei 191/2020, que autoriza a possibilidade de mineração em terras indígenas, e os necessários desdobramentos motivados pelo Plano Nacional de Fertilizantes - 2050

José Eduardo Pessoa de Andrade1
Chefe da Divisão Técnica de Engenharia Química do CLUBE DE
ENGENHARIA e Professor Colaborador da Escola de Química da UFRJ

De autoria do Executivo, o PL 191/2020 que havia sido encaminhado à Câmara dos Deputados em fevereiro de 2020 prevê a possibilidade de mineração em terras indígenas. No início deste mês de março o Presidente Jair Bolsonaro voltou a defendê-lo sob o argumento de que a exploração mineral em terras indígenas poderia resolver a escassez de fertilizantes potássicos, causada pela guerra na Ucrânia. A Constituição Federal em seu artigo 231, que ainda não foi regulamentado, não permite a implantação de empreendimentos em áreas pertencentes aos povos originários. Uma eventual regulamentação precisaria ser amplamente debatida pela sociedade, em especial pelos próprios povos indígenas, e pelo parlamento brasileiro. Ainda assim, com mobilização da base do governo, a Câmara conseguiu a aprovação do projeto em regime de urgência e pretende votá-lo no início de abril.

Em defesa dos direitos dos povos indígenas, a Federação Brasileira de Geólogos (Febrageo) emitiu, em 04 de março de 2022, nota intitulada “Potássio, mineração em Terras Indígenas e os conflitos acirrados pela guerra no leste europeu”, e o Instituto Brasileiro de Mineração (IBRAM) e a Comissão de Geoética da Sociedade Brasileira de Geologia também divulgaram ou suas preocupações contrárias ao PL 191/2020 e questionaram a impropriedade do regime de urgência aprovado pela Câmara Federal.

O Clube de Engenharia se associa às demais entidades civis que se manifestaram contrárias ao PL 191/2020 e, com o lançamento do Plano Nacional de Fertilizantes, agrega suas considerações com foco nos fertilizantes que exigem atividades de mineração.

O primeiro ponto, a defesa da exploração mineral em terras indígenas, divulgada pelo Presidente da República com o argumento de que essa exploração poderá resolver a escassez de fertilizantes potássicos, causada pela guerra na Ucrânia, causa uma profunda estranheza. É certo que a dependência da importação de fertilizantes potássicos, em torno de 95% das
necessidades brasileiras, exige um conjunto de medidas complexas e articuladas para superar a escassez há muito tempo identificada. Dar destaque à liberação das terras indígenas e usar a guerra na Ucrânia como argumento beira à uma completa insensatez, para não precisar usar palavras mais fortes.

Em sentido contrário, o Ministério das Minas e Energia, em seu Serviço Geológico do Brasil - CPRM, dispõe de um acervo de publicações sobre as pesquisas de jazidas de minérios potássicos efetuadas na região amazônica. A ocorrência desse mineral em terras indígenas representa uma pequena proporção das ocorrências identificadas e não resolveria nosso problema de escassez.

Portanto, a solução da escassez dos fertilizantes potássicos tem pouca relação com a exploração mineral em terras indígenas. Mesmo que essas terras fossem liberadas, a complexidade técnica e o elevado investimento necessário para a implantação de unidades de extração de minérios em ocorrências com 400 a 900 metros de profundidade na região amazônica, indicaria um prazo mínimo em torno de 3 anos para iniciar a efetiva produção.

Essa proposta de liberar terras indígenas para a mineração teria como óbvia consequência a expansão da presença de garimpos irregulares nas reservas, o que já vem ocorrendo nos últimos anos. O uso do mercúrio, empregado na separação do ouro, seria ampliado e as condições de saúde das populações moradoras da região, principalmente indígenas e ribeirinhos, seriam, para o mal, as mais prejudicadas nesse processo.

A realidade é que a expansão do agronegócio e de sua importância para o Brasil, tanto nos aspectos sócio-econômicos como na geração de divisas no comércio exterior, não foi acompanhada pela indústria de fertilizantes NPK. Isto tornou o país fortemente dependente da importação desses fertilizantes para o atendimento da demanda interna, conforme pode ser constatado na Tabela 1.

Essa realidade do setor dos fertilizantes foi reconhecida formalmente, e positivamente, pelo atual Governo Federal através do lançamento, no dia 11 de março de 2022, do Plano Nacional de Fertilizantes – 2050, Uma Estratégia para os Fertilizantes no Brasil. A intenção do plano é diminuir a participação da importação no consumo brasileiro de 85% para 45%, até 2050.

A Ministra Teresa Cristina, do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), destacou que esse Plano é de Estado e não de Governo. É o reconhecimento da complexidade das ações que precisarão ser implantadas de modo coordenado para a redução da dependência brasileira dos fertilizantes.

Entre os fertilizantes NPK, como já mencionado em parágrafo anterior, a maior dependência do Brasil está nos potássicos, dos quais o país importa 96,5% do cloreto de potássio, o mais importante dos fertilizantes potássicos usados na fertilização do solo. No mundo, após a China, o Brasil é o 2º maior país consumidor de potássio e, como importador, é o 1º maior, com 10,45 milhões de toneladas adquiridas em 2019, de acordo com dados do Ministério da Economia.

No curto prazo, é verdade, a estrutura da logística vinda da Rússia e da Belarus, a maior fornecedora de potássio do Brasil, foi desestruturada pela guerra na Ucrânia. A Ministra, para assegurar a obtenção de suprimento alternativo, está trabalhando numa ação emergencial e complexa através de esforço que ela denominou de “diplomacia dos fertilizantes” para aumentar o suprimento do Canadá, maior produtor mundial e 2º fornecedor de potássio para nosso país. Como os EUA também eram importantes compradores da Rússia e do Canadá, e estão ativos com sua diplomacia, esse processo não é trivial para o Brasil.

No médio e longo prazo, porém, o aprofundamento das pesquisas dos minérios potássicos e a implantação de novas unidades produtivas industriais poderão contribuir para amenizar a dependência do potássio. Entretanto, o país deverá continuar sendo um importador relevante desse fertilizante. Outras oportunidades devem merecer um forte apoio do Estado, conforme abordagem na referida nota da Febrageo e no Plano Nacional de Fertilizantes (PNF).

O PNF propõe incentivos às “oportunidades em relação a produtos emergentes como os fertilizantes organominerais e orgânicos (adubos orgânicos enriquecidos com minerais, por exemplo) e os subprodutos com potencial de uso agrícola, os bioinsumos e biomoléculas, os remineralizadores (exemplo, pó de rocha), nanomateriais, entre outros”3.

A Febrageo realça que o “Brasil dispõe de opções que podem suprir de forma adequada a necessidade de fertilizantes para alimentar o seu poderoso setor do agronegócio. Trata-se do uso dos remineralizadores de solos, que são derivados de rochas moídas – as quais são amplamente disponíveis em praticamente todas as regiões brasileiras e que têm seu uso amparado nos pressupostos da tecnologia da Rochagem”4.

Estamos, portanto, diante de uma perspectiva de obtenção complementar de produtos fertilizantes distintos da cadeia produtiva dos macronutrientes NPK, dominante no mundo, que poderão complementar um pouco a oferta nacional. Contudo, é preciso evitar simplificações excessivas para dimensionar a possível redução da dependência. Os produtos emergentes citados, como os remineralizadores, certamente se constituirão numa excelente oportunidade a ser aproveitada pelos atores da cadeia dos fertilizantes.

Transcrevo, a seguir, parte de um texto, que considero esclarecedor, escrito por dois diretores do Serviço Geológico do Brasil – CPRM, Paulo Romano e Márcio Remédio:

“Tendo em vista este panorama, é fundamental para o país ter uma política que incentive a produção e amplie suas pesquisas em inovação voltadas para insumos agrícolas, tanto para produção dos fertilizantes convencionais (NPK e outras formulações) como para fertilizantes alternativos, remineralizadores e corretivos de solos alternativos. “Agrominerais não solúveis naturalmente em água, mesmo que finamente moídos, possuem teores entre 1 a 20% de nutrientes, sobremaneira o potássio, Ca e Mg. Estes materiais não podem substituir os insumos supracitados, porque sua eficiência agronômica não é equivalente técnica e economicamente.

Então não se deve usar os agrominerais silicáticos não solúveis em água na agricultura? Pelo contrário, eles devem ser usados como remineralizadores de solos, em conjunto com os corretivos e fertilizantes solúveis, visando à construção da fertilidade física, química e biológica do solo, ano a ano, podendo aumentar a eficiência produtiva nas lavouras.”5

A cadeia dos macronutrientes NPK, coadjuvados pelos macronutrientes secundários6, não conquistou a dominância no mundo e no Brasil por mero acaso. Essa posição foi resultado de mais de um século de incorporação de avanços científicos, tecnológicos e inovações em vários campos do conhecimento: na biologia e no metabolismo vegetal; na seleção e desenvolvimento de sementes de espécies mais resistentes e produtivas; nas práticas agronômicas da interação solo, espécies vegetais e absorção dos fertilizantes; na química e na engenharia química da cadeia produtiva industrial; na sustentabilidade ambiental; na engenharia dos projetos industriais e sua construção, na fabricação dos equipamentos e sistemas de controle e componentes; e na engenharia dos projetos e obras na logística da distribuição dos fertilizantes até os responsáveis finais da produção vegetal.

Os produtos emergentes também passarão a incorporar todos os avanços científicos e tecnológicos de nosso tempo. Seu espaço será ocupado à medida dos sucessos que forem conquistados na nova cadeia produtiva dos fertilizantes.

Meu primeiro comentário, para reflexão, é quanto ao volume dos macronutrientes NPK que já são movimentados para atender às demandas da produção agrícola brasileira. Conforme se verifica na tabela constante desse texto, estamos falando, em ordem de grandeza anual, de 45,5 milhões de toneladas de consumo, de 6,5 milhões de toneladas de produção interna e de 39,5 milhões de toneladas importadas. Podemos dizer que a produção agrícola brasileira retira anualmente do solo 45,5 milhões de toneladas desses macronutrientes. Para garantir a permanência da fertilidade do solo e da produção agrícola esse volume de macronutrientes necessitam ser respostos também anualmente. Para aumentar a produção agrícola, a quantidade de macronutrientes que precisará ser reposta ao solo também será maior.

Além da resposta agronômica vantajosa, os fertilizantes NPK mais utilizados oferecem vantagem de custo na logística de transporte para sua distribuição ao usuário final. Os fertilizantes NPK mais utilizados apresentam elevado teor dos macronutrientes principais7, como mostrado na Tabela 2, o que, comparativamente, diminui o custo de transporte unitário desses nutrientes quando comparados aos fertilizantes com baixa concentração. Na mesma tabela, se observa também que alguns desses fertilizantes tem mais de um macronutriente principal e que outros contém macronutrientes secundários que também contribuem para a produção agrícola.

Na Tabela 3, elaborada pelo autor, a consolidação das estatísticas brasileiras demonstra uma história de resultados favoráveis para a cadeia produtiva do agronegócio brasileiro. Esses valores permitem estimar um provável desmatamento evitado de 100 milhões de hectares, ou 1 milhão de km2.

Nosso país, a partir da entrega dos nutrientes NPK para a cadeia do agronegócio teve um sucesso com repercussão mundial. No entanto, à montante dessa cadeia, a produção nacional dos fertilizantes NPK que lhes são entregues, como pode ser visto na Tabela 1, foi reduzida de 2018 para 2021, de 8,2 para 6,6 milhões de toneladas anuais. Essa cadeia à montante vem sendo desestruturada, desde os insumos minerais básicos iniciais até os fertilizantes NPK.

Conforme publicado no Valor Econômico, falando no lançamento do Plano Nacional de Fertilizantes, a própria ministra do MAPA “reiterou que o plano visa reestruturar as bases industriais que sustentam o agronegócio”.8 Para conseguirmos obter resultados favoráveis com a implantação do PNF, teremos um longo caminho a percorrer na mobilização e na articulação das entidades e instituições representativas dos poderes políticos, e dos campos científicos, tecnológicos, empresariais, da sociedade civil e sindical. Ou seja, precisaremos aprender nesse caminho como fazer um trabalho adequado de motivação comprometida da sociedade brasileira.

Devemos iniciar a organização de encontros com os componentes e atores de todos esses campos visando a exposição de seus conhecimentos, experiências e ideias. Devemos continuar com debates conjuntos visando a geração de propostas com foco na obtenção dos resultados positivos, imagino eu, pretendidos por todos, isto é, a reestruturação democrática das bases industriais que sustentam o agronegócio.

Será um grande desafio para aperfeiçoar o desempenho de nossa democracia. Aproveitando os paralelos exemplos agronômicos, teremos que:

1. saber escolher, aperfeiçoar e selecionar as sementes das espécies adequadas que serão plantadas para obter os resultados favoráveis pretendidos;

2. saber dominar o estado da arte para plantar, para cuidar do crescimento sadio dessas plantas, e para colher e difundir os resultados favoráveis obtidos;

3. saber aproveitar as vantagens da democracia para preservar o apoio da sociedade e de suas instituições;

4. saber identificar, controlar e corrigir as desvantagens da democracia num processo cíclico e contínuo de longo prazo.

Essas reflexões abrangem um contexto complexo, com aspectos técnicos, sociais e políticos, mas sua dimensão é compatível com os objetivos propostos pelo PNF 2050.

Aproveitando os desafios propostos pelo PNF, nós do Clube de Engenharia, reforçamos as posições de várias outras entidades e fazemos nossas críticas ao objetivo do Projeto de Lei PL 6.299/2002 que visa facilitar o registro de agrotóxicos para utilização no Brasil. Esse PL foi aprovado em caráter de urgência na Câmara de Deputados, em 09/02/2022 e encaminhado à apreciação do Senado Federal9. Em outras iniciativas, procuraremos reforçar debates com os poderes políticos e demais entidades da sociedade civil, e nesse processo valorizar o contraditório e conseguir um texto de projeto sobre agrotóxicos que melhor atenda à população brasileira.


Notas

1 O autor, responsável pelas deficiências e qualidades do texto, agradece as relevantes sugestões recebidas dos integrantes do Clube de Engenharia: Maria Alice Ibañes Duarte, 2o Vice-presidente, e de Marco Aurélio Lemos Latgé e Renato Rodriguez Cabral Ramos, respectivamente, Chefe e Subchefe da Divisão Técnica de Recursos Minerais.

2 ANDA – Associação Nacional para Difusão de Adubos.

3 Lançamento do PNF - Informações à imprensa; Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento [email protected]; Ministério da Economia [email protected]; Ministério de Minas e Energia [email protected]; em 11/mar/2022.

4 FEBRAGEO – Federação Brasileira de Geólogos; Nota Potássio, mineração em Terras Indígenas e os conflitos acirrados pela guerra no leste europeu; São Paulo, 04 de março de 2022.

5 Romano, Paulo A.; Remédio, Márcio J., Mercado e Perspectivas para o Uso de Remineralizadores de Solo. Capítulo 7, Outlook Global Fert, 2021. p. 92-96.

6 Os macronutrientes secundários, menos relevantes para as plantas do que os primários, são constituídos pelos elementos químicos enxofre (S), cálcio (Ca) e magnésio (Mg).

7 Dias, Victor P.; Fernandes, Eduardo, op cit.

8 Plano de Fertilizantes busca reduzir dependência de importações para 45%. Por Rafael Walendorff, Matheus Schuch e Estevão Taiar. Valor Econômico. São Paulo, 11/03/2022.

9 Câmara aumenta poder do Ministério da Agricultura para registrar agrotóxicos. Por Danielle Brant. Folha de São Paulo, 10/02/2022.

Foto em destaque: TV Brasil/Agência Brasil

 

 

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