Imagem: U.S. Army

José Eduardo Pessoa de Andrade

Diretor do Clube de Engenharia e engenheiro aposentado do BNDES

Vários de nós estamos pensando e discutindo sobre como será nosso país no pós-coronavírus. É possível que a maioria já considere que o impacto e o desconhecimento ainda existente sobre a evolução do vírus já fizeram nosso mundo mudar, não só o Brasil. É possível que uma parte da sociedade, talvez minoritária, considere que em pouco tempo, ainda indeterminado, voltaremos a continuar no progresso que estava sendo retomado antes do aparecimento do vírus.

Quero nesse texto compartilhar minhas ideias com os colegas do BNDES e imaginar que possamos ampliar essa reflexão com pessoas de nossa sociedade.

Em primeiro lugar, reafirmo minha convicção de que devemos sim construir um diálogo entre as diferentes visões de mundo. No momento atual, talvez elas concordem que estamos no meio de uma crise global de dimensões não imaginadas. A partir daí, no entanto, a expectativa de saída no futuro evidencia a diversidade das visões.

Minha opinião é de que essa turbulência tem proporção inimaginável e que suas consequências colocarão um grande desafio para a reconstrução de nossa sociedade. Não pretendo convencer as pessoas com opiniões diferentes da minha. Mas se vejo esse desafio também vejo a necessidade real de estabelecermos um diálogo porque a maioria, talvez honestamente, esteja de fato procurando contribuir com suas ideias para a melhoria de nosso mundo.

Considero necessária esta introdução porque temos vivenciado um período de extrema intolerância com quem pensa diferente, beirando o ódio. Definitivamente isso é muito ruim para a qualidade de nossa vida. Desperdiçamos muita energia que não leva a nada. Então, o primeiro desafio será modificarmos esse clima e começarmos um novo diálogo – entre os iguais e entre os diferentes.

Um colega do Banco, advogado aposentado, está cursando agora uma faculdade de filosofia. Ele me falou que um de seus professores comentou que sabemos dialogar razoavelmente com nossos pares. É mais fácil. Mas, se quisermos de fato melhorar nossa sociedade, devemos aprender a dialogar com os ímpares. Isso se aplica a todos.

Eu acrescento – em relação à intolerância, simplificada nas ideologias opostas – que a história pode ensinar que a esquerda nunca exterminará a direita, e que a direita nunca exterminará a esquerda. O que precisamos é aprender a conviver com aqueles que são honestos em suas diferentes ideologias e querem dar sua contribuição para melhorar nossa sociedade. Em minha história no BNDES, tive a oportunidade de assistir nas comemorações dos 25 anos do Banco, em 1977, em evento no Hotel Glória, um debate de alto nível protagonizado por Roberto Campos, um representante da direita, e Maria da Conceição Tavares, uma representante da esquerda. Registro: não foi um debate fácil, mas eles respeitaram regras de convivência civilizada entre contrários.

Então vou expor minhas ideias para compartilhar com todos. Talvez vocês as considerem ingênuas e sonhadoras demais. Mas é meu jeito de contribuir.

A crise global se apresenta de modo particular no Brasil.

Uma das maiores dificuldades é a desigualdade social e o grau de concentração de renda. Somos um dos países mais desiguais do mundo. Será que o pensamento de direita considera positiva essa situação? Ela precisa ser melhorada com honestidade de propostas, contribuições e compromissos das pessoas honestas. E os resultados só poderão ser colhidos de forma sustentável em tempo razoável. Essa é uma primeira ideia para recuperarmos esse debate.

Nosso país se perdeu em sua trajetória de crescimento e desenvolvimento econômico. Estamos sem projeto para o futuro. Temos aqui uma segunda ideia para reintroduzirmos nesse debate, tão caro ao BNDES.

Simplificando, sem deixar de reconhecer sua complexidade, a corrente neoliberal, mais à direita, atribui à intervenção estatal a responsabilidade pelos fracos resultados obtidos nessa área. O Estado deveria se abster de participar da atividade econômica. O mercado teria encontrado as melhores oportunidades de investimento, incluindo atração de investidores externos, e nosso país teria alcançado um nível de desenvolvimento que o colocaria entre as principais nações do mundo. As referências para esse modelo são as nações mais desenvolvidas. Será que sou eu o ingênuo? Vamos falar mais sério e conhecer melhor a experiência desses países, sem preconceitos, e verificar como eles conseguiram articular o Estado, que nunca foi ausente de participar e influenciar a atividade econômica, cada um com sua particularidade. Correntes ainda com influência no pensamento econômico atribuem ao excesso de intervenção estatal nos EUA o fato gerador da grande crise de 1929. O livre mercado não deixaria essa crise ter acontecido. Esse bom debate deveria ocorrer tanto no nível acadêmico como na sociedade.

A corrente desenvolvimentista, que associou o pensamento mais conservador e o mais à esquerda, a exemplo do debate citado entre Roberto Campos e Conceição Tavares, organizou, com base em um projeto de país iniciado no período de Getúlio Vargas, uma articulação da presença do Estado e do setor privado na esfera econômica. Empresas estatais foram criadas em setores onde foi identificado interesse estratégico para o país e a ausência de empresas privadas capazes de dominar as complexidades e de dispor do capital necessário para implantar essas empresas. No período militar, esse projeto de articulação foi aprofundado. O desempenho da economia brasileira até a década de 80 foi bastante satisfatório e seu crescimento esteve entre os maiores do mundo.

Já na década de 90, após o fim do período militar e a aprovação da nova Constituição de 1988, e numa compreensão de que o papel de várias empresas estatais tinha se esgotado e de que seriam mais eficientes se comandadas pelo setor privado, o governo brasileiro iniciou a privatização de parcela significativa dessas empresas.

Penso que várias empresas poderiam incorporar aperfeiçoamentos em sua gestão e governança. Outras, entretanto, já apresentavam bom desempenho quando de sua privatização.

A interferência política partidária de vários matizes prejudicou muito a busca pela eficiência em algumas empresas além do envolvimento em vários episódios de corrupção que vieram a ser esclarecidos e seus responsáveis punidos pela Justiça brasileira. O papel do Estado na esfera econômica foi significativamente reduzido. Os resultados obtidos desde então não conseguem se equiparar ao do período de sua instalação.

Na realidade, o país deixou de ter um debate organizado e abriu mão de um projeto de futuro que articulasse o Estado, o setor privado e representantes dos trabalhadores e da sociedade. Deixamos de ter um projeto que pudesse orientar um plano de desenvolvimento econômico com integração social e que incorporasse lições que certamente foram aprendidas ao longo de nossa história. Quase todos concordam que precisamos retomar os investimentos na infraestrutura, cujas carências são reconhecidas por todos e que tem contribuição relevante para o aumento da eficiência econômica do país e na geração de novos empregos. Teremos que reconstruir a capacidade das grandes empresas de engenharia que foram muito prejudicadas no processo adotado de combate à corrupção.

Outros investimentos, não tão óbvios ainda, serão necessários no setor industrial, hoje com significativa capacidade e necessidade de melhorar sua eficiência. A tecnologia e a inovação precisarão de apoio decisivo para diminuir a defasagem em relação aos países de ponta. Klaus Schwab, um dos fundadores do Fórum Econômico Mundial, já alertava em seu livro de 2016, “A 4ª Revolução Industrial” 1, que todas as instituições mundiais e de cada país deveriam dedicar um grande cuidado com o potencial desemprego que poderia ser causado com a automação e a digitalização em curso. Temos muito ainda a fazer.

O mesmo cuidado deve ser observado no setor de serviços e nas micro, pequenas e médias empresas.

Nosso país, de modo positivo, conseguiu desenvolver o setor do agronegócio, um dos líderes mundiais e com resultado muito favorável em suas exportações – mérito dos empresários e de instituições públicas de pesquisa, com destaque para a Embrapa. Permanecem ainda como desafios, a integração e a valorização da pequena produção agroindustrial e da agricultura familiar, onde a geração de empregos tem mais potencial e os resultados obtidos – fruto de alguns preconceitos –, são muito pouco conhecidos em nosso país.

No mundo de hoje, não existe um caso puro de mercado sem a presença do Estado e nem um caso puro de Estado onde não haja presença de um setor privado. Portanto, precisamos debater, com base na avaliação de nossa história, realidade e cultura, nossas particularidades, como poderemos voltar a ter um projeto de Brasil que articule de modo inteligente a combinação de Estado e setor privado, que incorpore os trabalhadores, como atores relevantes nesse projeto, e os aprendizados já realizados. Esse projeto só terá futuro se for construído, compreendido e apoiado pela maioria da população brasileira.

Críticas sobre a inevitabilidade de corrupção em empresas estatais não responde à análise cuidadosa. O BNDES é um bom exemplo. A abertura da “caixa-preta” se mostrou apenas como jogada de publicidade irresponsável, que explorou um pouco da ciência da semiótica. Vários países do mundo têm experiências que podemos conhecer melhor sobre o combate à corrupção nos empreendimentos públicos. Talvez as mais significativas, pela sua complexidade e pelos valores envolvidos, tenham sido as iniciativas do Estado norte-americano durante o New Deal do presidente Franklin Roosevelt. Paul Krugman, economista laureado com o Nobel de 2008 em sua área, relata as precauções, tomadas à época, em seu livro “A Consciência de um Liberal” 2, de 2009. A combinação de pesquisas sobre outras experiências e nossa inteligência será capaz de estruturar a ação das empresas públicas que ainda precisamos, sem correr o risco de sobressaltos com a corrupção. A organização da transparência e da adequada prestação de contas, accountability valorizada na língua inglesa, permitirá que a maioria da sociedade reconheça a relevância de empresas públicas bem geridas. E a corrupção não ocorre apenas no setor público. São várias as organizações privadas onde a corrupção permanece entranhada.

Outra particularidade do Brasil é a lucratividade estável obtida pelo setor bancário, ainda imune às diversas crises sentidas pelo setor produtivo. Claro que esse setor tem seus méritos próprios em sua gestão. Mas é preciso corrigir sua integração e custo de sua atividade para a sociedade brasileira. A taxa de juros cobrada no Brasil tem sido das mais altas do mundo e isso não é saudável para a atividade econômica e social. Esse setor tem uma função relevante para disponibilizar o crédito necessário para todas as cadeias produtivas e de consumo. Não se trata de enfraquecê-lo, mas de compreendê-lo melhor e ajustar, com inteligência, sua funcionalidade às necessidades de nosso país e corrigir as distorções que foram acumuladas.

Não concordei com a proposta de eliminação da TJLP no BNDES porque acreditava que a taxa de juros seria mantida em nível muito elevado e os rentistas seriam os únicos beneficiados. Confesso que me surpreendeu a redução dos juros na economia brasileira efetuada e mantida até agora. Mas isso é apenas parte do problema. A crise econômica e social provocada pelo coronavírus está expondo as dificuldades para disponibilizar crédito ao setor produtivo. O BC libera recursos para os bancos que não o repassam às empresas produtivas que o demandam. Alguns já falam que a dívida pública atingirá níveis em relação ao PIB que a tornarão impagável no futuro.

Neste ano de 2020, André Lara Resende, intelectual e homem público dos mais ativos na elaboração e no sucesso da implantação do Plano Real e da redução da inflação no Brasil, lançou um novo livro, “Consenso e contrassenso: Por uma economia não dogmática” 3. Lara desenvolve uma série de ideias que ainda permanecem fora dos debates relevantes na academia e na sociedade. Em suma, considera necessário tratar a dívida pública com base no conhecimento real, sem trocadilho, do setor bancário e de sua relação com o Banco Central e o Tesouro Nacional. O setor público federal tem condições, pela sua função intrínseca de emissão e controle da moeda e sua capacidade de operar a favor dos interesses da população – leia-se retomada do desenvolvimento e da geração de empregos –, de atuar fora dos dogmas prevalecentes e sair da sinuca de bico em que se coloca a dívida pública. Ele defende a necessidade de eficiência do Estado e seu controle para que se evite sua captura pelo poder dos interesses econômicos e corporativos. Então, é outro debate complexo que precisamos aprofundar e gerar propostas positivas e responsáveis. Temos, sim, condições de saída para o ajuste correto do rentismo, certamente não exatamente agradável para quem ficou viciado no ganho fácil.

Esse conjunto de debates, ora proposto, só conseguirá ocorrer com a preservação e consolidação da democracia, do respeito à independência de seus poderes e à constituição brasileira. Existem várias divergências, é fato, mas devemos tratá-las com realismo. Hoje fala-se muito em atitude republicana. Penso que devemos explicar o que seria essa atitude. Em meu ponto de vista, significa: acatar o processo democrático e o resultado das eleições; exigir dos vencedores, a maioria, o diálogo devido com os perdedores, a minoria; a maioria exercer as responsabilidades do mandato recebido e criar um canal maduro de comunicação com a minoria, que também tem sua legitimidade própria; e distinguir as funções de Estado das de Governo. Nossa Constituição prevê a alternância do exercício do poder como resultado das eleições periódicas.

A realidade pós-corona deve ser estudada, melhor conhecida e avaliada por todos para que resulte em propostas viáveis de superação. Não adiantará acharmos que o céu será de brigadeiro, no jargão dos aeronautas. Teremos que superar muitas turbulências para que nosso avião pouse com segurança após seu voo rumo ao futuro. Mas, tenho convicção que a magnitude dos problemas a enfrentar é também um fator que desafiará a maioria da população brasileira, constituída de pessoas honestas, a pensar e utilizar sua capacidade criativa e inteligência para superar esses desafios e encontrar as alternativas de soluções adequadas.

Penso que devemos institucionalizar a organização desses futuros debates para que sejam elaboradas suas propostas a serem submetidas às lideranças de nosso país. Talvez a melhor forma seja a criação de vários Conselhos, cuja sugestão inicial foi formulada em entrevista do economista Luiz Gonzaga Belluzzo 4, ao Instituto Humanitas Unisinos, de 17 de abril deste ano, com proposta de criação de Comitês de Coordenação Econômica. Esses Comitês ou Conselhos fazem parte de experiências exitosas em nossa história republicana.

Concluo com uma citação já utilizada em meu último artigo para o VÍNCULO, de dezembro de 2018:

“O Brasil tem um enorme passado pela frente” – Millôr Fernandes.

Vamos debater?

1 SCHWAB, K., “A quarta revolução industrial”. São Paulo: Edipro, 2016.

2 KRUGMAN, Paul R., “A consciência de um liberal”. Rio de Janeiro: Record, 2010.

3 LARA RESENDE, A., “Consenso e contrassenso: Por uma economia não dogmática”. São Paulo: Portfolio-Penguin, 2020.

4 BELLUZZO, Luiz. G., “Que país se espera?”. Entrevista concedida por e-mail à Patrícia Fachin, Instituto Humanitas Unisinos – IHU on Line, em 17/04/2020.

 

 

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