Avanço do garimpo ilegal na Amazônia gera desafios ambientais e de saúde

População da região sofre com os efeitos do uso do mercúrio na extração do ouro e do desmatamento acelerado

“Temos que batalhar para a Amazônia não se tornar uma colônia dentro do Brasil”. O apelo foi feito pelo físico Ennio Candotti, que atualmente vive em Manaus (AM) e dirige o Museu da Amazônia (MUSA). Seu alerta vem no sentido de se evitar uma corrida desenfreada pelo ouro e outros minerais, o que pode agravar a poluição dos rios e acarretar problemas de saúde para a população. Por outro lado, o crescimento do desmatamento descontrolado para que a floresta dê lugar a campos de soja ou pasto para o gado é outra preocupação. A exploração desordenada também agrava o quadro de violência, que ficou mais evidenciada depois do assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips.

Num momento em que avança no Congresso Nacional projeto de lei que viabiliza o garimpo e outras atividades em terras indígenas, surge mais do que nunca a necessidade de o Brasil discutir alternativas sustentáveis de desenvolvimento econômico da Amazônia. O MUSA é uma iniciativa ainda tímida perto dos gigantescos desafios que a Amazônia enfrenta, mas a instituição já contribui para a valorização da diversidade biológica e social dessa parte do território brasileiro. 

“Quando me aposentei, pensei o que faria se tivesse 18 anos e resolvi vir para a Amazônia com a minha esposa, que concordou. O que justificou a vinda é que na Europa e nos Estados Unidos há espaços que imitam a Amazônia, mas às vezes até com projetos caricaturais. Aqui temos um museu na Floresta original”, explica Candotti.

Na sua visão, culturalmente a floresta ainda é comparada por muitos a um lixão. Por outro lado, a exuberância da mata tropical cria a ilusão de um solo extremamente fértil, o que não corresponde à realidade. Por isso, sua inadequação para a agropecuária extensiva ou a monocultura. O desprezo pelos conhecimentos dos povos nativos complementa esse quadro.  

Com isso, até o poder público acaba deixando a região de lado, sem prestar serviços médicos e de saúde com o mesmo padrão que o resto do país. A comparação com uma colônia, dessa forma, acaba sendo pertinente.

“É preciso um grande esforço de desenvolvimento da educação e dar alternativas às pessoas e conscientizá-las do desastre ambiental que está ocorrendo”, ressalta o cientista.

Sinais da degradação vão se tornando também mais evidentes e chamando a atenção cada vez mais do Brasil e do mundo. Recentemente, foi divulgado estudo realizado pelo LEpiMol (Laboratório de Epidemiologia Molecular) da Ufopa (Universidade Federal do Oeste do Pará), realizado em parceria com a Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) e o WWF-Brasil, que apontou alta taxa de concentração de mercúrio no sangue de pessoas que vivem em áreas urbanas e ribeirinhas da bacia do Baixo Tapajós, no Pará. O metal usado no garimpo do ouro estava em níveis acima do limite recomendado pela OMS (Organização Mundial da Sáude), acima de 10 µg/L, em amostras de sangue de 75,6% dos 462 participantes. 

Os responsáveis pelo estudo apontam a alimentação a base de peixes como o vetor da contaminação e acreditam que a poluição pode ser causada até por garimpos distantes das áreas pesquisadas. “Assim como o garimpo, o desmatamento e as queimadas contribuem para a contaminação ambiental. Temos um conjunto de fatores que afetam o Rio Tapajós e, consequentemente, as pessoas que vivem às suas margens”, explica a coordenadora do estudo, a professora Heloisa do Nascimento de Moura Meneses, da Ufopa.

O estudo foi publicado pela “International Journal of Environmental Research and Public Health” e sua importância se deve aos possíveis danos para a saúde da população que a contaminação traz. A alta concentração de mercúrio pode causar efeitos negativos principalmente ao sistema nervoso central, fígado, rins, nos sistemas cardiovascular, gastrointestinal e imunológico. O problema não é novo, pois desde 1980, pesquisas vêm apontando maior concentração de mercúrio no sangue da população amazônica, mas seu agravamento é extremante preocupante.

Pesquisa divulgada em 2021 feita pela equipe coordenada pela pesquisadora Vanessa Alves Mendes (UFMT) apontou concentração de alta taxa de mercúrio no sangue da população ribeirinha do Rio Madeira, também com resultados acima do limite considerado seguro pela OMS.  Um estudo publicado em 2020, liderado pelo pesquisador Cassio dos Santos Lima (UFBA), mostra que a exposição ambiental ao mercúrio está associada ao baixo desempenho neuropsicológico de crianças e adolescentes de áreas ribeirinhas. 

Além da contaminação pelo mercúrio, o garimpo e o desmatamento causam outros danos aos rios amazônicos, que podem até mudar sua coloração. Tal degradação prejudica gravemente o desenvolvimento de uma importante atividade econômica, que é o turismo. Em Alter do Chão, na foz da bacia do Rio Tapajós, no Pará, as águas começam a apresentar cor barrenta, o que contrasta com o tom cristalino tradicional que atrai tanto os turistas para esse local de beleza paradisíaca.

Eventualmente, operações policiais têm procurado combater o garimpo ilegal, mas as ações cinematográficas não são suficientes para resolver o problema, que tem origem no campo social. Milhares de pessoas vivem dessa atividade e o combate pontual só provoca a transferência para outro lugar. A solução seria a adoção de práticas mais sustentáveis ou pelo menos não tão agressivas ao meio ambiente. Mas, além desse longo processo de aprimoramento do garimpo, a descontaminação do meio ambiente ainda seria outro desafio.

Um grupo de pesquisadores do Programa de Engenharia Química da Coppe/UFRJ pesquisa processos de remediação e estabilização do mercúrio liberado na natureza, principalmente para processos da indústria petrolífera. Através do Laboratório de Engenharia de Fenômenos Interfaciais (LABEFIT), também estuda o desenvolvimento de adsorventes e dispositivos adequados à descontaminação do ar proveniente das chaminés ou de retortas usadas nas regiões de garimpo. 

Segundo resposta enviada pelo grupo, há alternativas tecnológicas menos poluentes para o garimpo, como o uso de centrífugas, que garantem a produção de um concentrado com alto teor de ouro. Outro processo menos agressivo é o da cianetação, ou seja, o minério é depositado em solução com sais de cianeto, agentes cáusticos e carvão ativado. Esses materiais perderiam mais rapidamente sua ação tóxica na natureza. No entanto, o método requer investimento e capacitação da mão de obra. 

“O garimpo, a exploração extrativista e o uso de recursos hídricos, além da importante questão ambiental, estão associados a graves problemas socioeconômicos e a questões políticas e jurídicas. Este complexo e intricado problema socioambiental não tem sido visto e tratado como prioridade em politicas publicas e de Estado. Reverter essa situação inclui a atuação de órgãos governamentais de controle e fiscalização, promoção de projetos socioeducativos, com desenvolvimento e aplicação de tecnologias seguras para extração e remediação ambiental”, defende a coordenadora do grupo, a pesquisadora Vera Salim.

Segundo o Instituto Igarapé, o garimpo ilegal tem sido não só negligenciado como até estimulado pelo governo federal, que tem falhado na fiscalização e estimulado a ocupação da Amazônia a qualquer preço. A ONG defende o uso de tecnologias alternativas como forma de se minimizar os danos ambientais e salienta que países vizinhos como Peru e Colômbia já estão mais avançados que o Brasil no emprego dessas técnicas, apesar de ainda terem muito o que progredir. 

“É importante salientar que, tal como no caso da agropecuária, a transformação dos processos produtivos requer investimento em tecnologia alternativa e vontade política e corporativa para fazer diferente. Estamos, no entanto, na infância deste importante debate. Cabe ao setor público aprimorar as regulações para o garimpo e assim criar mecanismos de sanção a práticas ilegais e nocivas, bem como de incentivos a práticas sustentáveis e compatíveis com a floresta de pé”, diz Laura Trajber Waisbich, pesquisadora sênior do Instituto Igarapé.

Combater o garimpo ilegal pura e simplesmente é uma tarefa comparada pelo físico Ennio Candotti à de enxugar gelo. Além disso, é preciso enxergar que o garimpeiro é também vítima dos efeitos tóxicos do mercúrio e seus ganhos financeiros são ínfimos comparados aos dos atravessadores, normalmente contrabandistas. 

Criar alternativas econômicas para a população e fomentar o desenvolvimento econômico sustentável da região seria o melhor caminho a ser adotado pelo Brasil, que tem na Floresta Amazônica uma riqueza inestimável. Sementes e até cascas de árvores podem ser valiosíssimas pelo seu uso na indústria de cosméticos, perfumes e medicinal. Em alguns casos, esse material biológico pode se equiparar ao ouro, mas sem se esgotar como o metal precioso.  

No entanto, a disposição das autoridades caminha no sentido contrário. No início de março, a Câmara dos Deputados aprovou a tramitação em regime de urgência do Projeto de Lei 191/2020, que libera o garimpo em terras indígenas. A justificativa é de que com a guerra travada na Ucrânia pode faltar fertilizantes para o Brasil. A medida foi criticada por entidades como a Federação Brasileira de Geólogos (Febrageo), que teme pelos efeitos nocivos até para as empresas que atuam regularmente no setor de mineração já formalizado no país. 

A urgência na tramitação do PL também é criticada pelo Instituto Brasileiro de Mineração. Em reportagem do jornal O Globo de 27 de março, a entidade defende um debate mais profundo sobre o tema e alerta que a exploração em terras indígenas pode ser autorizada, “desde que condicionada aos requisitos de pesquisa geológica, estudos de viabilidade econômica, licenças ambientais embasadas em estudos e outras autorizações previstas em lei, de modo a preservar a vida e o meio ambiente, em especial na Amazônia, evitando o desmatamento”. 

Um levantamento do projeto MapBiomas, divulgado no ano passado, mostra que em uma década o território explorado pelo garimpo cresceu 301% nas Unidades de Conservação e 495% nas terras indígenas. Se o bom senso não prevalecer, as estatísticas e os danos ambientais vão ser ainda mais alarmantes e a Amazônia pode virar terra sem lei.

Imagem de luis deltreehd, Pixabay

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