Rocinha entre o saneamento básico e o turismo

Projeto de teleférico levanta polêmica. Moradores são contrários à construção com fins turísticos, que não atende às reais necessidades da população local

O teleférico do Complexo do Alemão é hoje um dos símbolos mais marcantes da ocupação das forças das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) em comunidades populares do Rio de Janeiro. Outra área da cidade do Rio de Janeiro está prestes a ganhar o seu transporte suspenso sobre cabos: a Rocinha. Parte das obras da segunda fase do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC2), o teleférico é um dos equipamentos que os governos do estado e federal pretendem implantar na área com um orçamento de 1,6 bilhão. De acordo com o projeto serão seis estações em duas linhas interligadas aos futuros pontos do metrô Gávea e São Conrado.

O que a primeira vista parece motivo de comemoração para os moradores da Rocinha vem se mostrando um impasse e foi motivo de manifestações no dia 14 de junho, durante visita da presidente Dilma Rousseff à Rocinha. Os moradores da comunidade alegam que com os problemas vivenciados pela comunidade, construir teleférico é um absurdo. A insatisfação da comunidade tem raízes em decisões governamentais que apresentaram os projetos prontos, pensados sem a participação popular. Por isso, em audiência pública, em 2011, rejeitaram a construção do teleférico, que também não estava previsto no Plano Diretor da Rocinha, documento de 2007, criado com a participação direta dos moradores.

Opção nacional

José Ricardo Duarte Ferreira mora na Rocinha, é membro da Comissão de Moradores do Laboriaux e confirma que as obras do PAC 2 não foram discutidas e nem pensadas junto com os moradores: “O projeto veio pronto e foi apresentado em ambiente fechado, para 60 convidados. A maioria com ligações diretas com o governo. Não foi possível discutir ali, por exemplo, que o programa não contempla vários pontos da comunidade, como é o caso do Laboriaux”. O Fórum de Mobilidade Urbana na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, um dos mais representativos movimentos de discussão do transporte na cidade, fundado pelo Clube de Engenharia e Federação de Associações de Moradores do Município do Rio de Janeiro (FAM-Rio), está acompanhando de perto o caso. A perspectiva é ouvir todos os envolvidos e buscar caminhos para o entendimento.

Contribuindo para a discussão, a Divisão Técnica Especializada de Transporte e Logística do Clube (DTRL) vem estudando proposta que substitui o teleférico por planos inclinados. Entre os argumentos que defendem para justificar a mudança do projeto estão alguns bem contundentes: o preço é menor, material, construção e instalação são nacionais (o teleférico é francês) e atenderia diretamente à população.

Segundo Alcebíades Fonseca, chefe da DTRL, “a divisão técnica iniciou a discussão sobre o tema para a produção de uma proposta ao Conselho Diretor do Clube. Sabemos através de declarações do secretário de Transportes do estado, Júlio Lopes, que a tarifa cobrada no teleférico do Alemão não cobre 20% dos custos de operação. Foi esse o motivo da proposta de reajuste de tarifa de R$ 1,00 para R$ 5,00”.

Para inglês ver

Necessidades mais urgentes da comunidade, como obras de saneamento básico, são motivos que levaram a população local a questionar a construção do teleférico. Além disso, alegam que a construção é invasiva e exigiria a remoção de 4 mil moradores, cerca de 1.700 habitações. O comércio local também sairia prejudicado, uma vez que tiraria as pessoas das ruas e as transferiria para o percurso aéreo. O alto custo de manutenção também é lembrado pela população que ainda convive com esgoto a céu aberto. Os temores dos moradores encontram eco em uma obra parecida feita no Complexo do Alemão, onde 7 das 12 mil pessoas que usam o teleférico nos fins

de semana são turistas. Não estão nessa conta os visitantes que usam o Riocard, Bilhete Único ou Cartão Expresso para pagar a passagem. Os números colocam o teleférico na lista dos pontos mais visitados por turistas no Rio. O Pão de Açúcar, por exemplo, recebe cerca de 6 mil pessoas no mesmo período. O Cristo redentor atrai cerca de 4.500 pessoas por dia.

José Ricardo é categórico ao afirmar que, tendo em vista as muitas necessidades da Rocinha, o teleférico é supérfluo, além de não poder ser caracterizado como um empreendimento de mobilidade: “O viés da obra é turístico. O morador que passar mal vai usar o teleférico em caso de emergência? Vai ser possível carregar nossos móveis pra casa? Precisamos muito mais de ruas para arejar a comunidade, que tem muitos casos de tuberculose por causa dos becos espremidos”. José destaca, ainda, que o trabalho de conscientização da comunidade é difícil e o descaso do poder público dificulta mais. “Oferecem uma passarela assinada pelo Oscar Niemeyer, mas nos deixaram sem uma creche. Dizem que as obras estão em andamento, mas não se vê um funcionário trabalhando. O que realmente importa para a comunidade eles deixam para depois. Para nós está claro que não virá nunca”, desabafa.

Stelberto Soares, diretor do Clube de Engenharia e ex-superintendente dos projetos de saneamento da CEDAE na favela da Rocinha

Jornal do CE: Os moradores da Rocinha comemoraram os recursos da segunda fase do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC2), mas não concordam com a construção de um dos equipamentos propostos: o teleférico. Isso procede?

Stelberto Soares: Para entender a revolta da população local, é preciso pensar a questão do teleférico no contexto das prioridades daquela comunidade. Não sou contra a construção do teleférico, mas sob o ponto de vista técnico há muito a fazer antes dele. A Rocinha tem uma incidência altíssima de tuberculose. Os valões, os prédios altos impedindo a luz do sol de entrar nas vielas e a umidade criam um cenário totalmente favorável à doença. As pessoas se tratam e voltam para as suas casas para adoecer novamente.

Jornal do CE: Quais seriam as prioridades da Rocinha hoje?

Stelberto Soares: Entendo que a obra precisa começar pelo esgotamento sanitário e drenagem. É necessário casas e também separar o esgoto da água de chuva, fazer o separador absoluto de toda a Rocinha. As condições para resolver isso existem. O emissário terrestre está construído para receber todo o esgoto que possa ser produzido na Rocinha desde 1994. Como as redes não foram feitas, está lá, subutilizado.

Jornal do CE:O teleférico invalida as obras de saneamento?

Stelberto Soares: Não, mas o passado nos condena. Há um desgaste muito grande em relação a essas grandes obras. Ninguém mais acredita nelas. Seria ótimo se fosse possível implementar tudo, teleférico, esgoto, urbanização, mas sabemos que no meio das obras o dinheiro acaba e as coisas ficam pela metade. O esgotamento sanitário e a drenagem exigem atenção prioritária e ninguém acredita mais que é possível fazer tudo de uma vez. A Rocinha é um caso emblemático porque é a favela visível para a Zona Sul e Zona Oeste. Fazer um teleférico ali é uma vitrine. Enquanto isso a população sofre com demandas e reivindicações que apareceram, inclusive, nas recentes manifestações.

Jornal do CE: O teleférico do Complexo do Alemão é um exemplo disso?

Stelberto Soares: O teleférico do Alemão é uma obra claramente turística. A maioria da população do Alemão não usa e nunca vai usar. Ele só passa no cume dos morros do Complexo do Alemão e ninguém vai se dispor a subir o morro para pegar o teleférico. E o custo de operação e manutenção é altíssimo, não se sustenta, mas está lá na vitrine, enquanto a subadutora que estava nos planos de obras não foi construída. O resultado é que reservatórios de 15 milhões de litros estão vazios porque o dinheiro se esvaiu no teleférico. O caso da Rocinha é “menos pior”, uma vez que o teleférico deverá fazer várias paradas no caminho da base ao topo. Ainda assim, não é prioritário. Os moradores já se deslocam na comunidade de várias formas, usando as vielas e ruas que acompanham as curvas de nível.

Jornal do CE: Você trabalhou naquela área, justamente em obras de saneamento. Como foi a experiência?

Stelberto Soares: Exatamente por ter trabalhado lá estou de acordo com os anseios dos moradores. Coordenei o início dos projetos do Pró-Sanear, do Banco Mundial, em 1993, na Rocinha. Quando cheguei, a licitação já tinha sido realizada. Para ganhar a licitação a vencedora jogou o preço para baixo e a obra ficou estipulada em 5 milhões e 600 mil dólares. A pergunta que fiz ao olhar a planilha foi: “Como vocês pretendem fazer uma adutora, subir a tubulação de água da Gávea até a Rocinha e não ter na planilha os custos da destruição e recomposição das placas de concreto da estrada da Gávea”? Para mim ficou claro ali que quem fez o projeto não conhecia a Rocinha, nunca passou do Fashion Mall. Deixei a obra por discordâncias, mas quando voltei como superintendente por um curto espaço de tempo, o investimento já estava em 24 milhões e 900 mil dólares. E a comunidade continuava sem esgoto.

Jornal do CE: Nessa época houve avanço naquela área? Por que a questão do esgotamento sanitário não ficou resolvida?

Stelberto Soares: Avançou. A parte de água foi razoavelmente feita: os reservatórios foram construídos e a distribuição foi implantada. A parte de esgoto, quando deixei o projeto, já tinha a parte estruturante: o coletor tronco, que sai da boca do túnel Dois Irmãos, passa em frente à Rocinha, em São Conrado, e vai até a elevatória do Hotel Nacional para receber todo o esgoto está pronto. É uma tubulação de 600 milímetros e tem 1.380 metros de comprimento. Foi feito para receber o esgoto das redes que nunca foram construídas. Não acompanhei mais o projeto da rede de esgoto. Cheguei a recusar nove vezes o projeto que foi apresentado por ser inconsistente. De lá para cá executaram várias obras por lá, mas até hoje não foi feita a rede de esgoto, só a de água com precária manutenção pelos poucos recursos disponibilizados. Não é hora de pensar na vitrine.

Matéria publicada na página 5 do jornal número 532 do Clube de Engenharia.

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