Contribuições do Clube de Engenharia à Consulta Pública n º 33

O Clube de Engenharia ouvindo diversos pesquisadores, especialistas do setor elétrico, consumidores industriais e entidades da sociedade civil, elaborou a proposta a seguir que submete ao Ministério de Minas e Energia (MME) em atendimento à consulta pública nº 33 de 05/07/2017 que propõe o aprimoramento do Marco Legal  do Setor Elétrico Brasileiro.

Propostas para o Grupo IV – Medidas de Sustentabilidade e Desjudicialização

Considerando:

  1. A presente proposta de reforma setorial aponta que a sociedade irá pagar mais caro a sua conta de eletricidade. Os compradores das usinas antigas cotizadas poderão aplicar uma tarifa muito mais alta conforme descrito na própria nota técnica. Esta situação irá causar mais um aumento tarifário dentre muitos outros que estão oclusos num sistema altamente judicializado.
  2. No item “Descotização e Privatização” da Nota 05/2017/AEREG/SE o processo de “descotização” proposto visa reverter a Lei 12.783/2013 que renovou as concessões de usinas hidrelétricas por cotas.
  3. Além disso, quando propõe a privatização das usinas cotizadas que vendem energia mais barata hoje, a Consulta Pública 33 contradiz o item 2.1 da Consulta Pública 32 (também do MME) que fala em isonomia entre os participantes do mercado. Quando se cria a condição de privatizar para descotizar, caracteriza-se uma quebra de isonomia dos agentes públicos com os privados no setor elétrico. 
  4. A “descotização” da forma proposta acarretará em um reajuste 7%, além de outros encargos ao consumidor final de energia, ferindo os preceitos de modicidade tarifária e, consequentemente, impactando em um reajuste natural de inflação.
  5. Caso seja exercida a opção de privatização das usinas hidrelétricas e seus reservatórios da Eletronorte, CHESF e Furnas poderemos ter um atentado à soberania nacional, já que o nosso setor elétrico tem sido alvo constante das investidas, entre outros, do capital chinês e europeu. E ainda, o Brasil estará exposto a um risco de monopólio privado no mercado de energia elétrica. Isso pode afetar no “Sistema Interligado Nacional de Geração e Transmissão” e tornar o país mais frágil a uma crise energética sem precedentes.
  6. Vide o caso da Califórnia (EUA) onde o modelo de liberalização do setor de energia aprovado em 1996 foi trágico. Em certo momento, a demanda no estado aumentou em 50% e a capacidade de fornecimento manteve-se estacionada. Em maio 2001, o governo californiano aprovou um reajuste de 50% das tarifas de energia ao consumidor final para cobrir os custos da crise energética. Os casos de insucesso levaram as políticas mundiais de energia a retirarem este assunto da pauta desta política.
  7. As alterações nas questões que envolvem os impactos no preço das tarifas de eletricidade em um cenário de forte crise econômica que afeta a população brasileira.

 

Propõe-se:

Por todos os riscos expostos, e pela preocupação generalizada de consumidores e distribuidores com o impacto tarifário e o risco de monopólio privado, vimos através de esta proposta solicitar:

A - A manutenção das usinas “cotizadas” nos respectivos agentes públicos propondo a retirada do item “Descotização e Privatização” (páginas 29 a 32) da Consulta Pública nº 33/2017 (Ministério de Minas e Energia). 

B - A isonomia entre os agentes econômicos privados e públicos introduzindo mudanças no art. 28 da lei nº 9.074 de 1995 que permitam que as usinas hidrelétricas prorrogadas ou licitadas nos termos da Lei nº 12.783, de 11 de janeiro de 2013, avaliem a alteração do seu regime de exploração para o equivalente ao produtor independente, inclusive quanto às condições de extinção da concessão ou autorização e de encampação das instalações, bem como da indenização porventura devida.


Rio de Janeiro, 17 de agosto de 2017

 

Contribuições do Clube de Engenharia à Nota Técnica 05/20176/AEREG/SE*

Introdução

O setor elétrico brasileiro foi construído sob a lógica da exploração do vasto potencial hidráulico do país. Desde as primeiras usinas construídas pela Light no início do século XX até a usina de Belo Monte, foi essa exploração que estruturou o setor em seus pilares técnico, econômico e institucional, e foi construído, em grande parte, pela iniciativa do estado por meio de empresas estatais, que também eram responsáveis pelo planejamento centralizado do setor. A estrutura de mercado era caracterizada como monopólio estatal verticalizado, onde a União detinha os ativos de geração e transmissão e os estados e municípios detinham os ativos de distribuição. A tarifa era definida de forma a remunerar o custo do serviço (cost plus) das empresas do SEB.

No fim dos anos 1980 e início dos anos 1990, entretanto, a capacidade de autofinanciamento do setor elétrico se esgotou e o governo deu início a uma reestruturação do modelo regulatório do setor, motivado não somente pela necessidade de atrair investimentos privados, mas também pela possibilidade de melhoria na eficiência da prestação do serviço, que era o pressuposto do movimento liberalizante internacional que acontecia na época.

Assim, o Brasil implementou uma reforma, cujo marco legal foi a Lei 9.074/1995, conhecida como projeto Re-SEB (Reestruturação do Setor Elétrico Brasileiro), que tinha como característica principal a criação de um Mercado Atacadista de Energia – MAE, nos moldes do que tinha sido adotado na reforma da Inglaterra e do País de Gales. O MAE foi criado para ser autorregulado e, com isso, o planejamento de setor era negligenciado, pois entendia-se que o mercado seria capaz de atrair investimentos privados. O resultado foi que o sistema não expandiu no mesmo ritmo da demanda e, em 2001, foi necessário declarar um racionamento para reduzir 20%, em média, do consumo de energia para evitar um colapso do SIN.

O Re-SEB, então, teve que ser revisto e em 2004 foi adotado um novo modelo regulatório, a partir da Lei 10.848/2004, que teve o mérito de retomar o planejamento e, com isso, garantiu a expansão do sistema no ritmo necessário para o desenvolvimento do país. Entretanto, o sucesso na atração dos investimentos não se refletia na redução da tarifa de energia. Algumas medidas foram adotadas para contornar o problema, mas se revelaram completamente equivocadas, com destaque para a MP 579 de 2012, convertida na Lei 12.783/2013, pois elevou ainda mais as tarifas e comprometeu a saúde financeira das empresas estatais.

A atual crise no SEB é agravada pela situação econômica e política do país e induziu o governo a propor uma reorganização do modelo regulatório, através da Nota Técnica n°5 de 2017 do MME, que está em consulta pública. Apesar de propor uma reforma de grandes dimensões no mercado e até nas instituições, ela ainda está repleta de indefinições, o que causa muita preocupação, como as que serão relatadas a seguir.

Separação de Lastro e Energia

A base estrutural está fundamentada numa separação entre dois conceitos de lastro e de energia. O primeiro remete a um mercado de capacidade, uma tendência adotada em vários países e parece ser uma medida adequada para garantir a confiabilidade e a expansão do sistema. Entretanto, de acordo com a Lei 10.848/2004, o “lastro é um certificado emitido pelo Ministério de Minas e Energia (MME) correspondente à garantia física proporcionada por empreendimento de geração próprio, ou de terceiro, sendo a contribuição, em MW médios de garantia física, de cada usina para a segurança do suprimento do sistema”.

A “garantia física” é um conceito que se origina na percepção de que o sistema brasileiro, por singularidades ligadas à sua hidrologia e sua geografia, precisa definir um valor global denominado “carga crítica” para todo o sistema interligado. Essa necessidade é originada no fato concreto de que grandes blocos de energia trafegam pelas linhas inter-regionais alterando a estrutura de oferta entre usinas hidráulicas e térmicas, os dois principais alicerces da garantia de suprimento.

Portanto, é dessa avaliação global, sob uma ótica monopolista da operação que surge esse valor sistêmico. Mesmo essa metodologia já é afetada por mudanças estruturais ao longo do tempo. Não se pode dizer que a “carga crítica” definida na década de 90 é metodologicamente compatível com a definida agora. A divisão desse valor global pelas usinas é ainda mais contestável, pois usa critérios diferentes daqueles usados na primeira etapa.

Essa foi a forma encontrada na década de 90 para fragmentar a garantia global na tentativa de mimetizar outra estrutura física. Não há como não perceber as grandes diferenças entre a situação efetiva de sistemas de base térmica. Atualmente, o sistema brasileiro tem usinas cuja “garantias físicas” foram definidas há 15 anos passados, quando os critérios eram outros e o sistema de reserva hídrica mais significativo. Portanto, não se pode esperar isonomia nesses valores.

Sinais de superavaliação estão presentes até no fato de termos um encargo denominado energia de reserva que foi criado para compensar esse valor exagerado. De 2008 até hoje, já se despendeu mais de R$ 150 bilhões nesse custo, com uma potência de mais de 12 GW. Assim, não se pode aceitar que tal conceito, que precisa urgentemente ser revisto, seja a base da reforma e sendo, inclusive, tratado como parâmetro de “confiabilidade”.

Para completar o risco que se corre com a manutenção desses valores como base da reforma, hoje há uma “sobra” escritural de energia com a carga estagnada desde 2014 e com os reservatórios vazios. Portanto, não se pode considerar segura uma reforma significativa, como a descrita na Nota, sem uma revisão profunda de todos esses valores.

Outro método mais seguro seria o abandono desse parâmetro e o estudo do uso da potência como lastro de confiabilidade, uma vez que essa não depende de critérios mutáveis por natureza.

Capacidade de Armazenamento

Os reservatórios sempre foram o coração do setor elétrico brasileiro e continuarão a sê-lo. Se as restrições ambientais e sociais à sua construção apontam na direção da limitação do seu papel direto na expansão do setor, a forte ampliação das novas fontes renováveis – eólica e solar – reforçam o seu papel estratégico nessa expansão. Diante da intermitência característica dessas fontes, a capacidade de estocagem é um fator determinante da velocidade e do alcance do seu avanço na matriz elétrica. O Brasil é o país que hoje detém a maior capacidade de estocar energia elétrica no mundo, via os seus reservatórios. De tal forma que nesses reservatórios estaria a chave para o país aceder à nova era das energias limpas, montado em uma grande vantagem competitiva em relação aos demais países.

Para explorar ao máximo essa capacidade de os reservatórios serem o back-up das renováveis, tornando a sua introdução mais segura e menos custosa, será necessária uma maior coordenação dos planos e das ações no interior do setor elétrico brasileiro. Essa necessidade nasce naturalmente das grandes economias de escala e escopo contidas na exploração desse tipo de estocagem. Sob essa perspectiva estratégica, quem controlar os reservatórios terá o controle sobre a evolução do setor elétrico brasileiro e quanto maior for a capacidade de coordenar a gestão conjunta desses recursos maior esse controle.

Nesse sentido, além de deter esses reservatórios, o Brasil tem uma grande vantagem organizacional que é o fato de uma parte significativa desse recurso estratégico estar sob o controle do Estado, via o Grupo Eletrobras. Esse controle reduz o custo da coordenação e permite colocar essa variável estratégica para o desenvolvimento do país sob uma lógica de longo prazo que estabilize a delicada transição elétrica brasileira – da base hidráulica para uma base de novas renováveis – no interior da incerta transição elétrica mundial – dos combustíveis fósseis para os combustíveis renováveis.

Fragmentar o controle desses reservatórios, mediante a privatização das usinas que estão hoje sob o regime de cota, é acertar em cheio o coração do setor elétrico brasileiro, desestabilizando a transição elétrica brasileira de forma a torná-la mais incerta e custosa para todos os agentes do setor. Colocar esses recursos estratégicos sob a guarda de uma lógica fragmentada e privada levará a sociedade a pagar um elevado preço para a instalação de uma coordenação regulatória sobre esse controle individual e privado, incontornável diante da evolução futura do setor.

O Brasil usará os seus reservatórios para firmar a energia das novas renováveis. Para esse uso, a coordenação desempenhará um papel essencial. Nessa coordenação, o Estado, diretamente via estatais ou indiretamente via ação regulatória – será o ator decisivo. Este será um fato natural da evolução brasileira do novo paradigma que se desenha no setor elétrico do mundo. A questão que se coloca é se o país terá a sabedoria de usar os recursos técnicos, econômicos e organizacionais que já dispõe, ou se desfazer deles para depois reconstruí-los, pagando um custo elevadíssimo, tanto econômico quanto político-institucional.

* Com participação do Instituto de Desenvolvimento Estratégico do Setor Elétrico (Ilumina)

 

 

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