A proposta para aprimoramento do Setor Elétrico Brasileiro

José Luiz Alquéres
Conselheiro do Clube de Engenharia
Engenheiro Civil, Ex-Secretário Nacional de Energia e Ex-Presidente da Eletrobrás, Light e outras empresas
Ex-Presidente da Associação Comercial do Rio de Janeiro

Há poucos anos, meio incomodado pela paranoia da expressão: "o setor de energia elétrica precisa ter regras permanentes e imutáveis" o Banco Mundial conduziu um estudo sobre a relação entre regras permanentes e qualidade do setor de energia elétrica, medida pela saúde das empresas, qualidade da energia e satisfação dos consumidores. Verificou, como era de bom-senso esperar, que muito pelo contrário: os países que faziam evoluir as regras de acordo com as tendências e características econômicas e sociais eram os que melhor se apresentavam. Havia, porém, um contraponto: evoluir mantendo um norte definido, sem guinadas provocadas por modismos e experimentações.

Devemos, portanto, de início saudar o Ministério de Minas e Energia por, finalmente – depois de mais de 13 anos de um ajuste maior no modelo e cinco anos da malfadada MP 579 e suas consequências –, dispor-se a revisitar o modelo do setor. E mais, fazer isso por meio de consulta pública que recolheu contribuições gerais, inclusive do Clube de Engenharia, até o ultimo dia 17 de agosto.

A proposta governamental procura atacar alguns pontos onde as disfuncionalidades setoriais causam enormes problemas, tais como a enorme e inédita judicialização entre os agentes do setor. Certamente foram ouvidos os agentes setoriais mais expostos a este tipo de problemas: geradores, comercializadores, grandes consumidores e um ou outro setor de energias alternativas.

Embora muitas propostas desta Consulta Pública CP-33 possam representar um alívio nas precárias condições atuais é um pouco de pretensão achar que isso, por si só, vai representar o aprimoramento deste importante setor.

O setor de energia elétrica tem peculiaridades próprias no Brasil em função das nossas características geográficas e geológicas, a diversidade dos regimes hidrológicos, a diferenciada densidade populacional entre as regiões, a recente megaurbanização da população, as enormes desigualdades de renda entre pessoas e regiões, apenas para mencionar alguns dos mais importantes fatores.

Sua evolução ao longo de pouco mais de 100 anos igualmente resultou em um sistema nacionalmente integrado com transporte de energia a longuíssimas distâncias, unindo centros produtores e centros consumidores. A topologia destas grandes redes merece hoje ser repensada.

Há que se acrescentar que a maneira de implantar aproveitamentos, especialmente ao longo dos últimos 25 anos na Amazônia, deixou muito a desejar no tocante à coordenação da engenharia (veja-se os problemas entre Jirau e Santo Antônio), no tocante ao planejamento, o que veio a se refletir no desordenamento econômico das hidrelétricas em construção, e na inexistência de um programa de complementação térmica adequado e econômico, como previsto nos Planos 2010 e 2015, elaborados no final da década de 80 e início da de 90, mas desprezados posteriormente.

Neste quesito específico da complementação térmica, vale destacar que nossa matriz se sujou estupidamente com abundância de geração térmica poluente e ineficaz, e vai sendo corrigida aos trancos e barrancos com leilões por fonte e incentivos estranhos – alguns por sinal eliminados em boa hora nesta proposta CP-33.

Nada se compara, porém, à falta de priorização da sustentabilidade na implantação dos aproveitamentos setoriais, algo que desde o I e o II PDMA’s (Planos Diretores do Meio Ambiente do Setor Elétrico) vinha sendo perseguido pela Eletrobras e pelas empresas participantes do seu fórum de planejamento e de seus dois fóruns (um voltado à sociedade, outro às empresas) de meio ambiente. O que me parece essencial – e que defendo publicamente há alguns anos – é a constituição de “Autoridades de Bacia” e que as concessões de uso e aproveitamento das águas sejam feitas por bacia hidrográfica, e não por projeto. Esta ação imporia ao concessionário uma responsabilidade perene em relação a todas as atividades do ciclo da água, ou seja, se ele tem a rec eita da produção da energia que cuide da encosta, do aquífero, da diversidade da fauna e flora, etc. Não vivemos mais em um planeta onde existem bens livres.

A estes aspectos da intimidade técnica do setor nós devemos somar três outros importantíssimos fronts: o institucional, o da engenharia/tecnologia, e o das suas implicações macroeconômicas.

No tocante aos aspectos institucionais, não se observa nesta nova proposta nem uma palavra sobre governança. Temos um sistema híbrido como de resto muitos países do mundo, inclusive os Estados Unidos, onde convivem empresas privadas, estatais, empresas privadas estrangeiras, empresas estatais estrangeiras, às vezes de propriedade exclusiva, às vezes com ações na bolsa de valores, etc. Seria simples e extremamente benéfico uma exigência no sentido de que todos os agentes possuam o mais elevado grau de classificação em matéria de transparência (empresas do novo mercado). Isto já seria um bom começo na eliminação de problemas que muitas sofrem em função das mais espúrias intervenções de seus acionistas, em geral (mas não somente) os governos.

No campo da engenharia e a tecnologia, nós vemos outro panorama desolador. Nossas maiores empresas de projeto e mesmo as filiais de grandes empresas americanas, europeias e asiáticas que aqui se instalaram e fabricavam boa parte das máquinas, cabos e estruturas de equipamentos estão em vias de fechar ou já fecharam suas portas, com raras exceções. Deixamos de dominar uma série de especialidades e de gerar uma série de empregos. O progresso de exportação de commodities com pequeno valor adicionado exportados para China está sendo compensado pela importação de bens de capital e manufaturados tendo por consequência a devastação de muitos setores de tecnologia com fechamento de empresas. Isto se dá por falta de coisas simples, tal como um cronograma bem pensado de oferta de obras a serem alocadas por compet ição, além de ineficazes políticas industriais. Nossa indústria não recebe condições isonômicas de competir e nem se modernizou e automatizou. Deixa-se tudo para última hora, temos leis anacrônicas e nos vemos obrigados a digerir "pratos feitos".

A engenharia brasileira também não soube se fazer presente. Não foi capaz de exigir um programa mínimo de licitações para projetos que, ademais, teriam certamente mitigado em muito a corrupção desenfreada de contratações e termos aditivos nas obras setoriais, que tanto nos envergonham.

Por fim, no tocante à relação com a macroeconomia, durante 50 anos ou mais sofremos absurdas intervenções da área econômica, às vezes em parceria com o nosso regulador setorial DNAEE, depois ANEEL, sob a forma de asfixia tarifária. Métodos dos mais canhestros aos mais sofisticados, explicações prim&
aacute;rias, ideológicas, corporativistas, sociais e de todo tipo foram para isso utilizadas. O “pano de fundo” sempre o mesmo: as empresas concessionárias são forças predadoras a perseguir desamparados consumidores, e ainda cometem a perversão de alimentar a inflação. Sabemos bem que isto se dá por outros meios e esta culpa não deve ser atribuída às concessionárias. A CP-33 mostra que os governos pretendem acrescentar mais outro oneroso expediente: a cobrança de outorgas em benefício da União ou do Tesouro Nacional, beneficiando-os com recursos que deveriam ficar no setor em benefício de suas empresas e seus consumidores, que verdadeiramente o construíram. Eu creio ser justo que se reaja contra isso. É como se o Estado viesse a se apropriar das nossas terras, águas e ar e nos vender o direito de usá-los, já que não tem competência sequer para gerir seus gastos perdulários e absurdos. A maneira mais simples de resolver isso seria a extensão pura e simples das concessões por 99 anos renováveis.

Vários outros pontos específicos da Consulta Pública estão sendo "endereçados" por comentaristas mais competentes do Clube de Engenharia e fora dele, mas estes me parecem dignos de uma maior reflexão por parte das nossas autoridades. E que se use esta oportunidade para, em pensamento mais abrangente, alinhar o setor de energia elétrica na direção de uma economia de mais baixo carbono, como o mundo inteiro já está fazendo. Vivemos no pós COP 21 e COP 22, com 194 países signatários de uma convenção mundial do clima. Como querer mudar o setor elétrico ignorando este tema?

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