Por Reinaldo Guimarães* e Ana Oliveira**

Jornal Valor Econômico em 21/09/2017

Há muito é sabido que o Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) apresenta enormes dificuldades para o efetivo cumprimento de sua missão. No plano operacional, há grande carência de recursos materiais, humanos e de gestão que resultam no inadmissível tempo levado entre o depósito e a decisão final quanto ao patenteamento de um produto ou processo. Segundo o próprio INPI, o backlog de patentes está acima de 14 anos para medicamentos, bem como no campo das telecomunicações. Ainda segundo o INPI, vale ressaltar que o backlog acelerou intensamente na última década, de 126 mil para 231 mil depósitos, em números redondos.

Para tentar resolver o problema, o INPI lançou uma consulta pública propondo a concessão de todas as 231 mil patentes do backlog mais as depositadas no órgão até 90 dias após a publicação da norma que implantará a proposta, após um exame sumário das mesmas. Concessões massivas de patentes sem um exame criterioso sobre os seus impactos na economia do país implicam perda importante de soberania em tema em que ela deveria ser compulsória e estrita, tal qual se apresenta nos países industrializados de economia complexa. É bem conhecido o crescimento das pressões oriundas de países desenvolvidos em harmonizar globalmente os critérios e a cultura patentária segundo os seus interesses comerciais.

Poucos países de porte possuem políticas de propriedade intelectual que dispensam um exame substantivo de patentes com vistas à concessão. Um deles é a África do Sul que, tradicionalmente, não realiza buscas e exame substantivos para a concessão de patentes, fazendo exclusivamente o exame de aspectos formais dos pedidos. Conforme as palavras de seu governo, utiliza um sistema exclusivamente cartorial (depository system). Pois mesmo a África do Sul está atualmente empenhada em modificar sua política de propriedade intelectual na direção de abandonar o cartório e passar a ter um sistema de exames substantivos com vistas a equilibrar os interesses comerciais e o interesse público.

A proposta apresentada pelo INPI caminha no sentido oposto: de um sistema de exame substantivo para um sistema cartorial, no qual seriam examinados exclusivamente os aspectos formais dos pedidos com o objetivo de eliminar rapidamente o backlog. O INPI esclarece que essa medida, temporária e excepcional, deverá ser aplicada para debelar uma crise e, em seguida, abandonada. Em outros termos, corrigir o passado para que o futuro, agora ausente do backlog, possa ser manejável.

Mas é razoável argumentar que, com mais de 30 mil novos depósitos ao ano, voltando ao sistema de exames substantivos o blacklog tenderá a ser recomposto caso outras medidas no plano administrativo-financeiro não sejam tomadas. E se isso se confirmar, a tentação de tornar permanente a medida pontual poderá vir a ser perpetuada, instituindo-se no país um novo padrão de política de propriedade intelectual no que se refere a patentes, agora definitivamente cartorial.

A despeito da dedicação de seu quadro técnico, o INPI sofre de várias deficiências no terreno institucional, a começar pelo reduzido quadro de examinadores de patentes e essas deficiências são o principal responsável pelo crescimento do backlog. A maior evidência da escassez de examinadores está na comparação da relação entre depósitos por examinador por ano entre o INPI e o escritório norte-americano de patentes (USPTO). Para o ano de 2016 no INPI essa relação foi de cerca de 114 depósitos por examinador. Para o USPTO foi de cerca de 64, pouco mais da metade.

Vale notar que o INPI não está alheio a essas dificuldades e a disposição de enfrentá-las sem abrir mão de suas competências e métodos de trabalho tradicionais esteve presente em maio de 2017 quando da apresentação ao ministro da Indústria e Comércio Exterior e Serviços (MDIC) de seu plano de trabalho para o ano. Nele foram destacados o enfrentamento do backlog, a solução dos problemas imobiliários e a valorização dos servidores e da carreira do INPI. Além disso, a redução de 44% do backlog e aumento de 234% da produção; aumento de 60% da produção de decisões técnicas de pedidos de patentes em relação a 2016 e de 93% em relação a 2015; aumento de 57% na produtividade individual dos examinadores de patentes em relação a 2015.

Não havia então qualquer menção a propostas de mudanças radicais como a contida na consulta pública. A pergunta que fica é por que esse corajoso plano de trabalho foi substituído por uma proposta tão problemática e inusitada, que transforma o INPI em pouco mais do que um escritório notarial? Por que entre maio e agosto de 2017, a direção do órgão se convenceu ou foi convencida de que ao invés de perseverar no exame substantivo de patentes e de continuar a perseguir as medidas de reestruturação institucional com as quais acreditamos que esteja de pleno acordo, decidiu por caminho "cirúrgico"? Por que escolheu esse caminho que, na melhor das hipóteses, deverá estabelecer um notável aumento de demandas judiciais decorrentes de disputas entre patentes com reivindicações similares sendo concedidas e, principalmente, por uma enxurrada de patentes muito frágeis do ponto de vista substantivo, portanto passíveis de contestação judicial? E, na pior das hipóteses - caso em que ele seja acionado a cada vez que o backlog for reconstituído pela dinâmica tecnológica global - resultará numa confissão de que também no campo da política de propriedade industrial o Brasil estará deixando de ser um país industrializado soberano.

Dando à direção do INPI o benefício da dúvida que é mister conceder a uma equipe séria e profissional, especulamos que essa opção possa ter sido trazida de instâncias superiores a serviço de um governo central cada vez mais frágil e isolado, à procura de "fatos" positivos de que tanto necessita para melhorar sua legitimidade. No caso, trombetear "o fim do backlog do INPI".

As consequências? Essas não vêm ao caso, pelo menos para essas instâncias superiores. Para o INPI, sua direção e corpo técnico, restará o ônus de tentar responder à nova norma sem ter as mínimas condições de pessoal, tecnologia e instalações físicas para fazê-lo adequadamente.

*Reinaldo Guimarães é vice-presiente da Associação Brasileira das Indústrias de Química Fina, Biotecnologia e suas Especialidades (Abifina)

**Ana Claudia Oliveira é consultora técnica da Abifina

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