Quando o compositor Heitor Villa-Lobos desembarcou no Rio de Janeiro, no ano de 1930, vindo de Paris após uma turnê pela Europa divulgando suas composições, deu-se conta de que, com mais de 40 anos de idade, o sucesso internacional não lhe garantiria os subsídios necessários para o mínimo existencial, tampouco proveria os recursos para dar continuidade a sua profícua obra musical.

O convite de Getúlio Vargas para que ele aderisse ao Estado Novo, cumprindo uma agenda eminentemente nacionalista, não somente atendeu suas expectativas ideológicas e estéticas, como equacionou suas aflições financeiras, durante os quinze anos seguintes. As célebres Bachianas Brasileiras foram compostas nesse período. Destacam-se, dentre as nove suítes orquestrais, a Toccata da 2a. Bachiana, cujo subtítulo, atribuído pelo próprio autor, é “O Trenzinho do Caipira”, e a ária da 5a. Bachiana, denominada “Cantilena”, ambas de grande apelo popular.

A iniciativa de unir nossas raízes folclóricas a elementos da música do maior compositor alemão de todos os tempos respondia a duas aflições de Villa-Lobos. De um lado, integrava-o definitivamente ao movimento modernista capitaneado por Mário de Andrade: as bachianas contém elementos da tradição rural brasileira conjugados aos cânones eruditos da musical europeia e são um excelente exemplo da antropofagia cultural propalada por Oswald de Andrade, no célebre manifesto da Semana de Arte Moderna de1922.

De outro lado, a opção pela intertextualidade com as obras do Cantor de Leipzig propiciava a Villa-Lobos inserir-se no movimento de Retour a Bach que eclodira na Europa no início do Século XX, situando nosso Villa ao lado de expoentes como Ferrucio Busoni, Igor Stravinsky e Dmitri Shostakovitch.

No exercício do cargo público, já em 1932 coube-lhe instalar e dirigir a Superintendência de Educação Musical e Artística (SEMA), cujo escopo era orientar, planejar e desenvolver o estudo da música nas escolas, em todos os níveis. Sua principal estratégia era a disseminação do canto coletivo, o coral orfeônico, que ele acreditava ter o poder de socializar e disciplinar o indivíduo, despertando-o para solidariedade.

A partir de 1935, passou a atuar em colaboração com Gustavo Capanema, nomeado por Vargas para chefiar o novo ministério, recém criado, da Educação e Saúde. Ministro, Capanema formou uma equipe de excelência: Carlos Drummond de Andrade, seu chefe de gabinete, Mário de Andrade, Rodrigo Melo Franco, Anísio Teixeira e Manuel Bandeira, entre outros.

Tratava-se, ao modo da antropofagia tropical, tal qual expressavam as Bachianas Brasileiras, de construir e afirmar a nossa identidade, compatibilizando um país ainda rural com a vanguarda do mundo. A criação da Companhia Siderúrgica Nacional, indispensável para a industrialização e urbanização do país, a criação da Universidade do Brasil, primeira instituição federal de ensino superior, no contexto de uma ampla reforma do ensino, e a criação do Serviço Nacional de Febre Amarela, o primeiro serviço de saúde pública de dimensão nacional, são exemplos eloquentes dos três pilares sobre os quais se assentava esse projeto de nação.

Pensando bem, é impossível manter a dignidade de um país se seus governantes não se ocupam da salvaguarda da economia interna, da solução expedita das questões sanitárias e de uma educação pública de qualidade.

Os trabalhos da equipe responsável pela edificação desse novo Brasil, moderno, e urbano, careciam de uma sede física. O traço original do novo Ministério da Educação e Cultura, proposto pelo mestre franco-suíço Le Corbusier, foi desenvolvido pelo arquiteto Lucio Costa, este que viria a ser, na década de 1950, o autor do plano piloto de Brasília.

Sua equipe, composta por jovens profissionais, contava com o ainda estagiário Oscar Niemeyer. Os trabalhos, que revelaram o gênio de Niemeyer, estenderam-se do ano de 1936 até 1944, com a inauguração do prédio em 1945, mesmo ano em que Villa-Lobos, servidor da Casa, concluiu suas nove suítes orquestrais.

Nas palavras do próprio Lucio Costa, o Palácio é um marco ao mesmo tempo histórico e simbólico. Foi nele que, pela primeira vez, no mundo, se aplicou em grande escala a nova tecnologia do concreto armado e da fachada inteiramente envidraçada, o que certamente o destaca na linha do tempo. Nova Iorque, por exemplo, que desde o século passado é identificada por seus arranha-céus com fachadas translúcidas, não detinha à época uma única construção comparável ao nosso Ministério.

Mas é do ponto de vista simbólico que a importância do Palácio Capanema é incomensurável. Bourdieu afirma que é a partir dos símbolos que uma determinada comunidade entra em consenso para a reafirmação e reprodução de paradigmas, de ideias e de uma ordem social.

O Ministério resultou do esforço dos brasileiros para a constituição de um novo paradigma, no qual o país dialogava com suas tradições, sem descurar dos avanços científicos e tecnológicos do hemisfério norte, tal qual soava a música de Villa-Lobos. Ele simboliza o turbilhão de ideias a partir do qual foi forjada uma nova identidade nacional, foi inventado um novo Brasil. Ele encarna, em concreto armado e pano de vidro, a busca de uma ordem social mais justa e solidária, com o respeito aos direitos sociais, a um programa nacional de saúde e a uma educação pública de qualidade.

Há alguns dias não me surpreendi com a notícia de que a União, proprietária do Palácio Capanema, pretende submetê-lo à venda. Tampouco causou-me estranheza o desmentido das autoridades, logo seguido de nova negativa, como um avesso do avesso, o que me fez lembrar de outro gênio da nossa música. Entendi bem: o governo não sabe se vai vender, mas poderá vender, quando e se quiser, se houver comprador. É um tratado de licitação pública.

Seria mais coerente, no atual estágio das coisas, e com recurso à antífrase, simplesmente demolir o prédio. Seria um ato profundamente sincero e simbólico, por se tratar de um palácio construído com otimismo e fé no futuro, com inventividade e insuspeita tecnologia, por arquitetos moços e inexperientes, em um país subdesenvolvido, pioneirismo que expressa o contrário do que o Brasil de hoje teima em ser ou se transformar.

Como disse Dr. Lucio, o que a inteligência constrói com as mãos a ignorância demole com os pés. A cerimônia de demolição poderia ter como música de fundo o Trenzinho do Caipira tocado de trás pra frente, como o avesso do avesso do avesso da Nação.

 

* Antonio Carlos Bigonha é compositor, pianista e mestre em Música pela Universidade de Brasília. Subprocurador-Geral da República, atua na 2a. Seção do Superior Tribunal de Justiça, proferindo pareceres em Direito Privado. Foi presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (2007/2011) e coordenador da 6a. Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais da PGR (2019/2021).

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