Membro do Clube de Engenharia coordenou elaboração do Mapa do Brasil, como parte das comemorações do Centenário da Independência

Prof. Heloi José Fernandes Moreira

 

No Brasil, a simbiose entre o ensino e a formação de profissionais nas áreas de geografia, cartografia, topografia e engenharia aparece em 1810, com a criação da Academia Real Militar pelo Conde de Linhares. A academia se destinava à formação de oficiais militares, e também, a de “engenheiros geógrafos e topógrafos que possam ter o útil emprego de dirigir objetos administrativos de minas, caminhos, portos, canais, pontes, fontes e calçadas”. Mais ainda, seu Estatuto estabelecia que o professor do 4º ano deveria expor “uma noção das Cartas Geográficas e suas aplicações e o novo método como que foi construída a Carta de França.(1)

       Francisco Bhering nasceu em 01 de janeiro de 1867, Uberaba, e faleceu em Paris, a 13 de abril de 1924, ainda muito novo, com 57 anos. Obteve o título de Bacharel em Ciências Físicas e Matemáticas pela Escola Polytechnica do Rio de Janeiro em 1885. Em 1889 foi nomeado lente da seção que englobava as cadeiras de Cálculo, Mecânica Racional e Astronomia. Logo depois, foi para a Europa aperfeiçoar-se na Escola Prática de Montsouris. (2)

Em 1894 pediu demissão da Polytechnica do Rio de Janeiro e foi para São Paulo participar do corpo docente fundador da Escola Polytechnica daquele estado. Abraão de Morais, na monumental obra de Fernando de Azevedo, “As ciências no Brasil”, considerou que “seus cursos de astronomia visavam, principalmente, a formação de profissionais com prática suficiente para executar qualquer levantamento geográfico-geodésico-astronômico. Insistia Bhering na necessidade de formar uma equipe de engenheiros geógrafos dada à importância de tal trabalho para o Brasil, então ainda pouco conhecido. O próprio Bhering realizou muitas determinações astronômicas, entre as quais a da Praça do Patriarca, em São Paulo, realizada em 1907, e que serviu durante muito tempo como ponto de referência.(3) Retornou para a Polytechnica do Rio de Janeiro em 1913 quando foi nomeado professor da cadeira de Astronomia e Geodesia, tornando-se catedrático em 1915.

Em 1911, quando a reforma de ensino Rivadavia Corrêa instituiu a Livre Docência, Francisco Bhering foi o segundo a requerer esse título, apresentando tese para as cadeiras de astronomia e de eletrotécnica. Suas aulas tinham elevado nível matemático, tendo merecido por parte do irreverente aluno Sóter Caio de Araújo a seguinte sátira elaborada durante uma aula de Astronomia do próprio Francisco Bhering:

“Ouvindo o Chico, qualquer pessoa,

Por mais talento, por mais carola,

Sente as orelhas crescer a toa.

Acha que se acha na estrebaria

Em que foi feita, feito magia,

A nossa Escola. [de engenharia]” (4)

Bhering foi membro da Academia Brasileira de Ciências, Sociedade Brasileira de Geografia e do Clube de Engenharia, Integrando o Comitê Eletrotécnico Brasileiro do Clube, criado em 1909. Organizou uma escola de radiotelegrafia que funcionava em anexo ao Observatório da Escola Politécnica, no morro de Santo Antônio.

Em 1903 havia sido criada uma comissão subordinada ao Ministério da Guerra para a elaboração de uma Carta Geral do Brasil. Ocorre que em 1915 ainda faltava muita coisa para ser feita. Segundo Pedro Carlos da Silva Telles, “foi essa a tarefa a que propôs em 1916, o Clube de Engenharia, por sugestão do presidente Paulo de Frontin. A intenção era concluir o trabalho até 1922, como parte das comemorações do Centenário da Independência. Organizou-se para isso uma comissão chefiada pelo professor Francisco Bhering e contando inicialmente com a participação de Henrique Morize, Fábio Hostílio de Moraes Rego, Álvaro Rodavalho Marcondes dos Reis e Mário de Andrade Ramos, que começaram a colecionar e classificar todos os trabalhos já existentes”. (5)

Essa Carta deveria ser feita na Escala 1:1.000.000, conforme recomendação estabelecida na Conferência Internacional de Londres de 1909 para a confecção de um mapa de todo o globo terrestre. Devido a escala a ser adotada e a época em que foi finalizada, a opinião pública e a imprensa em geral se referiam à mesma como “Carta ao Milionésimo” ou “Carta do Centenário”.

Cabe observar que Francisco Bhering já vinha fazendo esforços para a urgente confecção de um mapa atualizado para o Brasil, que atendesse tanto aos aspectos políticos e econômicos, quanto às questões estratégicas de natureza militar. Em 1917, na Sociedade Brasileira de Geografia, havia afirmado: “sem a topografia, sem a geografia, a Indústria como a Guerra nada poderiam conseguir. Cabe ao Exército a defesa das terras, e à Marinha a dos mares: como resolver o problema dos transportes rápidos da artilharia contra o inimigo visível, sem o conhecimento suficiente do terreno?(6) Assim, Bhering seria o líder natural para chefiar esse trabalho.

Francisco Bhering, ao se referir à Carta de 1922, afirmou: (7)

Pode-se considerar que o Brasil apresenta três épocas geográficas bem definidas: A primeira e mais remota data de 1798, quando éramos ainda colônia, a Carta de projeção esférica do Capitão Antônio da Silva Pontes Leme. É um documento de grande valor histórico. A segunda, já no Império, em 1883, de Beaurepaire Rohan, que apresentou um precioso trabalho, arquivo fiel da documentação da época, a chamada Carta do Império do Brasil. A terceira e atual, agora em 1922, 100 anos após a nossa emancipação política, a Carta Geográfica do Centenário do Brasil. Ela representa uma síntese de numerosas contribuições devidas aos trabalhos de penetração e povoamento. É o passo decisivo para a moderna representação cartográfica do Brasil. Pode-se mesmo dizer que se procurou pela primeira vez dar a ideia do conjunto do relevo do solo, definindo a posição relativa dos acidentes topográficos, com o conhecimento de 1.576 cotas, inúmeras linhas de nivelamento, centenas de perfis de levantamento para estradas de ferro, 3.304 coordenadas geográficas, levantamento de rios, limites de estados, demarcação de fronteiras, etc. As discordâncias que se observam em relação às recomendações do Congresso Internacional Geográfico são devidas ao fato de não haver levantamento sistemático do Brasil e sim aproveitamento de contribuições diversas, para fins especiais. São justamente essas discordâncias que justificam a nota Edição Provisória.

Nesse mesmo ano, na Revista do Clube de Engenharia, considerou que “Os trabalhos da comissão da Carta do Centenário não estão completos. Eles representam, entretanto, o máximo esforço em curto prazo. As edições são, por isso, provisórias e aguardam, como arquivo precioso, novos subsídios complementares”. (8)

Em 01 de maio de 1923, agradecendo os elogios que o jornal O Paiz havia lhe feito dias antes sobre os esforços do pessoal que colaborou na organização da Carta Geográfica do Brasil, Bhering expressou que “quanto aos braços que executaram a obra, mais do que os meus, valeram os jovens, meus alunos, cujo devotamento e entusiasmo citarei sempre como estímulo do patriotismo dos outros, que vão sucessivamente passando pelas minhas vistas, na Escola Polytechnica”. Nota-se aqui o elevado grau de dignidade de um verdadeiro professor.

Finalmente, podem-se ressaltar alguns aspectos da Carta que foram importantes para o desenvolvimento e o ensino da engenharia brasileira.

- o conhecimento do relevo permitiu o planejamento, traçado e a construção de inúmeras estradas de rodagem, em substituição às estradas de ferro, cuja construção já vinha em declínio desde o final da Primeira Guerra; devemos lembrar que com as estradas seguiam as linhas telegráficas, o que provocou o desenvolvimento das comunicações com o interior e, consequentemente, a facilitação dos negócios;

- um melhor conhecimento do curso dos rios provocou a melhoria da navegação interior e, aliando-se a localização das estradas, provocou a construção de pontes, portos fluviais e de hidroelétricas. Cabe ressaltar que o concreto armado acabava de surgir viabilizando a construção de grandes pontes com o uso dessa tecnologia;

 - também com a Carta houve uma crescente localização e construção de usinas hidroelétricas, passando de 209 usinas em 1920, para 554 em 1930 e 759 em 1940; 

- quem observar o alto grau de informações, a precisão e o elevado nível de detalhes contidos nessa Carta pode concluir o quanto esse documento foi importante para o ensino de engenharia naqueles tempos, isso em uma época que não existiam as facilidades dos atuais meios digitais.

Em 1922, Mauricio Joppert da Silva era o Professor Catedrático de Hidráulica Fluvial, Navegação Interior, Canais, Portos de Mar e Faróis da Escola Polytechnica. Brilhante e dedicado professor, muito querido por seus pares e alunos, (9) mais tarde Professor Emérito da UFRJ, ex-presidente do Clube de Engenharia, Deputado Federal e Ministro da Viação e Obras Públicas, com toda a sua inteligência e perspicácia, logo percebeu a grande importância para o ensino em alocar no seu Gabinete na Escola um exemplar da Carta. Assim, hoje, há um raro exemplar da Carta de 1922 fazendo parte do acervo do Museu da Escola Politécnica da UFRJ.

Maurício Joppert da Silva nasceu no Rio de Janeiro a 10 de junho de 1891 e faleceu, nessa mesma cidade, em 23 de setembro de 1985. Foi admitido na Escola Polytechnica em 1911 com 19 anos de idade e, em 1913, obteve o título de Engenheiro Geógrafo. Em 1914, ainda aluno do 4º ano de engenharia civil, apresentou tese para livre docência da cadeira de geometria analítica e cálculo infinitesimal. Tornou-se assim, formalmente, professor e aluno!

Foi um dos principais defensores da regulamentação da profissão de Engenheiro, o que se deu pelo Decreto nº 23.596, de 22 de dezembro de 1933. Recebeu a medalha de ouro do CONFEA. Foi membro da Academia Brasileira de Ciências. Publicou inúmeros trabalhos em diversas revistas especializadas: Revista Brasileira de Engenharia, Revista Brasil Técnico, Revista da Liga Marítima Brasileira, Revista Viação, Revista do Clube de Engenharia, Revista Rodovia, Revista Concreto, etc. Colaborou com os jornais O Globo e Jornal do Brasil, escrevendo semanalmente crônicas sobre a vida política, acontecimentos técnicos e suas reminiscências. Recebeu a cruz de Grande Oficial da Ordem Militar de Cristo, conferida pelo Governo Português. Foi também Presidente do Núcleo Regional do Rio de Janeiro da Associação Brasileira de Mecânica dos Solos. Em 1945, liderando diversos professores e ex-alunos da Escola Politécnica, retomou a ideia lançada em 1932 pelo diretor Ruy Mauricio de Lima e Silva que fundou a Associação dos Antigos Alunos da Politécnica.

Assim, deve-se ao Clube de Engenharia a feliz iniciativa de encetar a ideia da confecção da Carta ao Milionésimo. E ao Prof. Mauricio Joppert da Silva e ao Museu da Escola Politécnica a existência, até os dias de hoje, desse raríssimo documento da história da ciência e da engenharia brasileira.

 

 

NOTAS DE RODAPÉ:

(1) - Estatuto da Academia Real Militar. Carta Régia de 04 de dezembro de 1810; páginas 1 e 8.
(2) - Revista Didactica da Escola Polytechnica. Nº 27. Agosto de 1924; p. 13.

(3) - AZEVEDO, Fernando. As ciências no Brasil. Vol. 1, p. 155.
(4) - PARDAL. Paulo. Memórias da Escola Politécnica. p. 76.
(5) - TELLES, Pedro Carlos da Silva. “História da Engenharia no Brasil” – Vol. 2, p. 637.
(6) - BHERING, Francisco. “A geografia no Centenário de Independência. Resumo da conferência feita pelo professor Francisco Bhering na Sociedade de Geografia em 07 de dezembro de 1917”. Revista da Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro. RJ, tomos. 25-26-27, 1912-1922, 1922, p. 31.
(7) -
RELATÓRIO DO MINISTÉRIO DA VIAÇÃO E OBRAS PÚBLICAS – 1922.

(8) - Revista do Clube de Engenharia – Número especial comemorativo do Centenário da Independência do Brasil. Ano 1922, p. 255.
(9) - No ano de 1922, Maurício Joppert da Silva e Francisco Bhering paraninfaram, respectivamente, os Engenheiros Civis e Geógrafos que concluíram os seus cursos em 1921. 

 

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