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A cura está no melhor preço

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Foto Rovena Rosa/Agência Brasil

Francis Bogossian *

Houve um tempo no Brasil em que as obras eram executadas com acompanhamento técnico. Isso foi lá pelos idos dos anos 60, quando entrei no mercado da engenharia, e ainda se estudava e se realizava projeto executivo. Nas últimas décadas, essa prática foi caindo em desuso e se passou a licitar com menos estudos, sem projeto executivo, algumas vezes até sem projeto básico e muitas vezes sem anteprojeto.

Cabe lembrar que, até os anos 80, a boa oferta do mercado e os preços realistas permitiam que os executores das obras empreendessem estudos complementares, revisassem os projetos apresentados às licitações e acompanhassem passo a passo sua execução, num verdadeiro ‘pente fino’ para eliminar eventuais deficiências dos projetos licitados.

O cenário seguinte, aquele em que atualmente estamos, com as oportunidades reduzidas e as condições econômicas desfavoráveis, é o das licitações com carência cada vez maior de dados, em que as únicas alternativas que se apresentam são ganhar os serviços com preços incertos ou declinar deles. A segunda hipótese significa ter que demitir os técnicos, desmobilizando equipes constituídas com grande esforço. Mas não só os aspectos técnicos são determinantes em uma obra de engenharia, a questão econômica também prepondera na escolha da melhor solução.

Numa realidade em que a escassez de recursos acontece em âmbitos federal, estadual e municipal, a aplicação correta das verbas disponíveis deveria ser objetivo primordial e constante dos órgãos públicos, o que não ocorre.

É baixo o custo de uma solução que deixe a desejar tecnicamente. Porém, adotá-la não compensa os altos riscos econômicos, sociais e humanos que podem dela advir. Por isso, a necessidade de uma avaliação criteriosa dos projetistas e dos contratantes – em grande parte o poder público – já que a abrangência do colapso de uma obra é infinitamente superior a qualquer custo material. Sim, a busca pela solução de menor custo deve sempre ser a meta do projetista, mas tendo como base os aspectos técnicos e de segurança. Este sempre foi um princípio básico da engenharia.

Para definir uma solução de melhor relação custo e benefício, na fase de préprojeto, são fundamentais a engenharia geotécnica e a geologia. E o que vemos muitas vezes acontecer? Para compensar a falta de dados geotécnicos, que envolvem principalmente razões econômicas e às vezes prejuízos do cronograma, os projetistas costumam recorrer ao superdimensionamento das obras. Muito mais adequado do que isso seria a utilização de novas tecnologias. E este é o grande desafio que lanço aqui às universidades, com apoio das empresas de engenharia: que incentivem as pesquisas, única forma de se adquirir conhecimentos e utilizar experiências práticas para chegar a soluções inovadoras e de menor custo. O Brasil tem uma grande tradição de soluções inovadoras, e esse talento é um ativo nacional que deve ser estimulado e explorado.

Na Academia Nacional de Engenharia, que tenho a honra de presidir, estamos priorizando três diretrizes, em nossos comitês de Inovação e de Ensino:

• Atualizar o currículo do ensino de Engenharia, abraçando a Inovação, unindo, tanto quem ensina quanto quem emprega o engenheiro;

• Instar junto aos ministérios de Ciência, Tecnologia e Inovação, Educação e Infraestrutura, visando agilizar e acelerar posturas urgentes de inovação tecnológica no setor da Engenharia, o qual atua na medicina (equipamentos), na construção, na manutenção, na indústria, na segurança etc.;

• Instar junto ao poder público na luta pelo melhor preço, que propicia, ao próprio empresário, condições financeiras para inovar nos serviços e obras que executa.

Como último fator relevante para a excelência das obras, é de se destacar um acompanhamento diligente pósconstrução. Via de regra, as obras são duplamente esquecidas após sua inauguração; pelo construtor, que não é contratado para isso, e pelo contratante, que teria a obrigação de zelar por elas.

Mas o consumidor não se esquece de estar sendo preterido, na ausência dessa obrigatória manutenção. O Sistema de Gestão da Qualidade ISO-9001:2005 preconiza que todas as obras sejam entregues ao proprietário com um Manual do Usuário. É este o instrumento definidor de responsabilidades para que as obras sejam acompanhadas sem haver seu sucateamento. O documento fala na importância da qualidade para evitar o retrabalho, e na gestão de resíduos para garantir a proteção ambiental. Isso tem obrigado muitas empresas a investirem os próprios recursos em consultorias de gestão, segurança, responsabilidade, saúde ocupacional, para estar aptas a licitar para contratantes como o Sistema Petrobras, por exemplo. A inversão de responsabilidades vai ao ponto de empresas de engenharia oferecerem abatimento nos preços do custo básico de seus projetos, para ganhar obras públicas. E vão sobrevivendo à base de empréstimos e rolagem da dívida. É um círculo vicioso que precisa ser interrompido. Pois o vício corrói, não só o bolso dos construtores como a qualidade do que é contratado.

As alegações dos contratantes de que a maioria das obras ocorre dentro de padrões satisfatórios de desempenho, qualidade e prazos não nos impedem de questionar: Como fica a responsabilidade social de governos e empresas com obras apenas satisfatórias, cumprindo o mínimo das exigências legais? E a sociedade, como fica no atendimento de sua satisfação? Não nos cabe perguntar como fica a engenharia brasileira, diante de obras apenas satisfatórias, com equipamentos sucateados, canibalizados e superados pela falta de recursos ante os preços de custo praticados, e até mesmo de bem abaixo do custo. Não colocamos a pergunta por que, lamentavelmente, sabemos a resposta.

Um nascimento para ser saudável exige atenção contínua, exames de prénatal e um parto bem feito. Uma obra de construção bem sucedida necessita acompanhamento diligente desde a concepção, diagnósticos precisos, testes e controle de riscos. Os Estudos e Projetos na engenharia são como os cuidados indispensáveis a um paciente na medicina, que devem ser preventivos e até o fim da vida. Tal qual a saúde dos Homens, a saúde das obras precisa ser constantemente monitorada e cuidada durante toda a sua vida útil.

Por maiores a pressa e/ou razões políticas, as obras públicas jamais devem ser iniciadas sem projetos executivos. Não se justifica o que vemos acontecer pelo país afora: uma pandemia de obras públicas contaminadas pela ausência de projetos executivos e estudos prévios.

A cura contra esse mal é o melhor preço, aquele que propicia qualidade e segurança. O chamado “menor preço” costuma ter um custo alto para o Estado e para as nossas vidas. É como a panaceia da cloroquina, cujo único resultado constatado é a satisfação do imediatismo de vendedores e políticos.

 

(*) Francis Bogossian preside a Academia Nacional de Engenharia, tendo sido Presidente do Clube de Engenharia (2009/15), do CREA-RJ (março a outubro de 2020) e Professor da UFRJ e da UVA. O artigo faz parte do livro Democracia & Soberania, publicado pelo Grupo Sued Castro Lima de Estudos da Soberania, da Democracia e do Crescimento econômico.

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