Por Sonia Fleury – Doutora em Ciência Política e pesquisadora sênior (CEE-Fiocruz)
Site do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz, em 13/11/2019
Ao encaminhar ao Senado novas propostas de revisão constitucional – PEC 186 Emergencial e PEC 188 do Pacto Federativo – o ministro Paulo Guedes usava um curioso adereço, bastante estranho a seu perfil de homem do mercado financeiro, cujos padrões estéticos indicadores do sucesso pessoal são bastante conhecidos. Tratava-se de uma pulseira artesanal, tipo as que homenageiam o Senhor do Bonfim na Bahia, na qual se lia APOCALIPSE e o número de um versículo do livro bíblico. Chamou atenção o uso do inusitado adorno, já que o ministro, até então, não fazia parte da ala governamental conhecida pelo fanatismo religioso, situando-se na ala do fanatismo neoliberal.
Tratava-se de um momento solene e de tal gravidade para a sociedade brasileira, que ficou impossível não buscar entender a linguagem metafórica contida nesse ato de flagrante intencionalidade. Trata-se de um conjunto de propostas que visam à destruição do Estado de Bem-Estar Social contido no texto constitucional e sua substituição pela constitucionalização do Estado de Exceção Permanente. Isso fica claro no texto da PEC 188, no qual se propõe uma adição ao Artigo 6º da Constituição Federal, que estabelece o rol de direitos sociais a serem garantidos pelo Estado brasileiro: “Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”.
A proposta atual inclui o seguinte parágrafo único: “Será observado, na promoção dos direitos sociais, o direito ao equilíbrio fiscal intergeracional”.
A primeira pergunta que cabe é saber de quem é o direito ao equilíbrio fiscal? Do Ministério da Economia? Do sistema financeiro que receberá os recursos retirados dos trabalhadores a título de serviço da dívida? Outra questão fundamental é saber qual é a base técnica do conceito de equilíbrio fiscal intergeracional? E sua base jurídica? Finalmente, quem definirá o equilíbrio fiscal intergeracional ao qual os direitos sociais da cidadania passariam a ser subordinados?
Esse conjunto de questões só tem uma resposta: ao constitucionalizar o Estado de emergência fiscal permanente, rasga-se a Constituição Federal de 1988, cujos princípios fundamentais da República elencados no Título I vêm sendo sistematicamente sabotados pelo governo atual, inaugurando um estado de exceção constitucional, no qual a economia deixa de servir à sociedade para, invertendo a lógica, colocar a sociedade a serviço de uma economia especulativa e financeirizada. Essa parece ser a missão do ministro Paulo Guedes.
A veia sarcástica do ministro já havia traído sua soberba e desprezo pela população pobre do país quando, em recente entrevista à Folha de S. Paulo (3/11/2019), voltou a defender o modelo econômico chileno e a capitalização na Previdência Social, argumentando que enquanto os ricos guardam dinheiro e acumulam, assim como os altos funcionários públicos, os pobres não têm o hábito de poupar. A capitalização e as reformas previdenciária e trabalhista, ao retirarem direitos dos pobres, seriam, portanto, uma forma de “pedagogia do oprimido” que, com o aumento da opressão aprenderia a acumular. Falou isso em um momento no qual o IBGE divulgava a terrível situação de miséria em que se encontra um quarto da população, ou 52,1 milhões de brasileiros, que vive com uma renda domiciliar per capita de R$ 387 mensais. O estudo aponta: a pobreza atinge principalmente crianças e adolescentes de 0 a 14 anos (42%), homens e mulheres pretos/pardos (67%), famílias formadas por mulheres sem companheiros e com filhos de até 14 anos (55% do total desse tipo de família), e mulheres pretas/pardas também sem companheiro e com filhos de qualquer idade (64%).
Perguntado como seria possível a uma pessoa miserável acumular recursos em fundos de capitalização o posto Ipiranga responde que eles não sabem que já têm um fundo, o FGTS. Parece realmente um deboche tal afirmativa, já que é impossível desconhecer que o FGTS é um fundo com contribuições sobre a folha de salários, pago pelas empresas para seus empregados. Enquanto isso, o índice de desemprego alcança os 11,8% em 2018, com 12 milhões de desempregados, à medida que crescem os números dos desalentados e aumenta o emprego na informalidade. Para esses não há FGTS, mas o ministro crê que, mesmo assim, podem aprender a capitalizar desde novinhos, já que o sucesso dos ricos e o fracasso dos pobres é uma questão de pendor individual para economizar.
Como a taxa de desemprego entre jovens de 18 a 24 anos atingiu, em 2019, a assustadora cifra de 27,3%, o governo lançou o programa de emprego Verde Amarelo, que oferecerá emprego a um menor custo para as empresas que absorverem jovens por dois anos, com metade dos direitos trabalhistas que ainda estão vigentes. Tudo isso pago com a contribuição dos desempregados, já que os recursos para liberação das obrigações trabalhistas das empresas, pasmem, virão da alíquota de 7,5% sobre o seguro desemprego! Trabalhadores que recebem o seguro-desemprego passarão esta alíquota de contribuição ao INSS (Instituto Nacional do Seguro Social). Esse dinheiro vai ser usado para compensar o que o governo deixa de arrecadar das empresas que contratarem jovens verde-amarelos com vínculos precários e redução dos direitos trabalhistas. Trata-se do verdadeiro moinho satânico que tão bem nos ensinou Karl Polanyi. Assim, ao lado dos trabalhadores com carteira assinada em extinção, teremos trabalhadores temporários, trabalhadores informais, desalentados, e agora, também infratrabalhadores verde-amarelos e desempregados financiadores das desonerações das empresas.
A proposta do programa de emprego Verde Amarelo aproveita para retomar todas as medidas de aprofundamento da desregulação trabalhista que haviam sido vetadas anteriormente, como permissão de trabalho aos domingos, correção pela metade das dívidas trabalhistas, permissão de funcionamento dos bancos aos sábados, entre outras.
Além disso, o governo extinguiu o seguro obrigatório DPVAT, que, por cobrir acidentes de trânsito, repassou ao SUS R$ 33,4 bilhões entre 2008 e 2018. A maior parte das indenizações em 2018 foi para acidentes com motocicletas (75%), motoristas na faixa de 18 a 34 anos (47%) e moradores das regiões Nordeste (30%) e Sudeste (29%). Em outras palavras, os jovens pobres das periferias que se desempenham como motoboys. Para dirimir dúvidas sobre sua insensibilidade em relação aos jovens pobres e acidentados o governo alegou: “A Medida Provisória não desampara os cidadãos no caso de acidentes, já que, quanto às despesas médicas, há atendimento gratuito e universal na rede pública, por meio do SUS. Para os segurados do INSS, também há a cobertura do auxílio-doença, aposentadoria por invalidez, auxílio-acidente e de pensão por morte. E, mesmo para aqueles que não são segurados do INSS, o Governo Federal também já oferece o Benefício de Prestação Continuada (BPC), que garante o pagamento de um salário mínimo mensal para pessoas que não possuam meios de prover sua subsistência ou de tê-la provida por sua família, nos termos da legislação respectiva”.
Levantamento feito pelo jornal O Globo mostra o tamanho da demanda provocada por acidentes de trânsito no SUS: entre 1998 e 2018, o país desembolsou R$ 5,3 bilhões, corrigidos pela inflação, em 2,8 milhões de procedimentos médicos relacionados ao trânsito, cobertos pelo Sistema Único de Saúde. Um levantamento do Conselho Federal de Medicina estima que esses acidentes geram mais de 160 mil internações por ano.
Com a nova medida, o SUS vai perder recursos e continuar responsável pela crescente demanda de internações, próteses e outras intervenções caras. O cinismo da nota do governo se manifesta no desconhecimento da situação de subfinanciamento do SUS e no impacto que terá na rede a perda dos recursos do DPVAT. Reportagens recentes associam a extinção do DPVAT a uma vingança de Bolsonaro a seu rival político, Luciano Bivar, que participa do consórcio de asseguradoras do DPVAT. Face à total ausência de sentido lógico na medida proposta, essa hipótese, que revela mesquinharia e desprezo pelos direitos da cidadania, parece plausível. Finalmente, a alusão à existência do BPC para proteger os miseráveis – com renda per capita de um quarto do salário mínimo – também é uma falácia cruel, já que no mesmo conjunto de medidas de ajuste fiscal do pacto federativo o governo voltou a insistir na desvinculação do valor do BPC do salário mínimo, proposta que já havia sido derrotada na discussão da reforma da Previdência.
Portanto, vai ficando claro que a alusão ao Apocalipse não é apenas metafórica, pois ela se configura como um verdadeiro programa de metas, que convida seus quatro cavaleiros a se instalarem e reinarem definitivamente entre nós: a Peste, a Guerra, a Fome e a Morte.