5G: a novela de um edital

5G: a novela de um edital

Depois de longas discussões a respeito das características do que seria o edital para a introdução efetiva da tecnologia de quinta geração de serviços móveis no Brasil, a ANATEL apresentou, em fevereiro de 2021, as bases do que propõe ser uma evolução na prestação de novos serviços móveis. A perspectiva é que incorporem maiores velocidades, menores tempos de resposta e grandes quantidades de dispositivos
conectados. Esse edital foi enviado à submissão do Tribunal de Contas da União (TCU) para avaliação de seu conteúdo e estabelecimento dos preços mínimos para seus diversos componentes, principalmente para os blocos de frequência que seriam ofertados para a prestação dos serviços.

Sob pressão do Ministério das Comunicações (MCom) para uma análise rápida de forma a garantir prazos curtos, a área técnica do TCU, a Seinfracom, se debruçou sobre os diversos aspectos do edital no início de agosto de 2021. Divulgou parecer que incluía uma extensa lista de inconsistências e necessidades de mudanças, que abrangiam, entre outras questões, “fragilidades na metodologia de cálculo das frequências, ausência de compromissos de conexão de escolas e na incorreta valoração da migração da TV aberta da faixa de 3,5 GHz para a faixa de 12 GHz”. Além disso, tendo em vista o tempo exíguo de análise, ficaram sem avaliação outras questões, tais como a modelagem de viabilidade de exploração comercial nos municípios brasileiros, que implicaria em valores muito diferentes nas precificações das frequências levando a subavaliações. No entanto, estes posicionamentos da área técnica não representavam ainda a palavra final do relator do processo e do acórdão final que viria a ser aprovado na corte pelo seu colegiado.

Em seguida, o ministro relator do processo no TCU, em 18 de agosto de 2021, levou seu parecer ao colegiado segmentando suas observações em determinações de mudança do edital recomendações, e alertas para acompanhamento de ações, com a preocupação de que todas as modificações não implicassem em significativas alterações de prazos no certame, de forma a viabilizar o início de operação da tecnologia antes das eleições gerais de 2022, como era o desejo do MCom. De imediato sete ministros do colegiado votaram a favor do relator. No entanto, houve um voto contra que acabou por determinar um pedido de vistas por 60 dias, e que foi sendo reduzido nas discussões havidas para apenas 7 dias. Em seu voto contra, o agora relator de vistas apontou “falhas e ilegalidades” no edital e que ele iria apontar no seu relatório, decorridos os sete dias de prazo.

Na semana seguinte, em 25 de agosto, o ministro relator de vistas, exercendo seu prazo, apresentou um veemente relatório no qual chegou a afirmar que “o edital está eivado de erros crassos, para não dizer fraudes”. Segundo suas avaliações, o valor total das frequências, considerado no edital de R$ 45,7 bilhões, deveria ser na verdade de R$ 130,9 bilhões, se adotadas as premissas adequadas, resultando em prejuízo significativo à arrecadação do erário. Reafirmou todas as inconsistências apontadas anteriormente e ainda mostrou o quão temerária é a estratégia de leiloar imensos blocos de frequência, numa época de infância da tecnologia, que poderia representar perda de oportunidade de arrecadação futura. Exatamente o que países desenvolvidos têm evitado e se mostram exatamente cautelosos, ofertando quantidades menores de frequências em seus leilões. Apesar da sua eloquência e da possível perda de arrecadação num certame de tamanha importância e visibilidade, o plenário do TCU votou a favor do relator original, assumindo um alinhamento com o MCom.

Ainda dentro do edital, e sob suspeita de “pedalada fiscal”, foi incluída uma rede subfluvial de cabo de fibras óticas na região amazônica, a ser custeada pelos vencedores das frequências do 3,5 GHz. A administração de implantação seria realizada por uma organização a ser criada, a Entidade Administradora das Frequências (EAF), que também cuidará da migração da faixa da frequência de 3,5 GHz para 12 GHz, do gerenciamento da rede privativa governamental e finalmente dos recursos para a implantação de banda larga nas escolas. Recursos vindos da licitação das frequências de 26 GHz. Nenhum detalhamento desses projetos foi apresentado. E muito embora a área técnica tenha apontado essas irregularidades, o relator do TCU não determinou modificações.

O foco das mudanças no edital voltou a se concentrar nas determinações, recomendações e alertas que o TCU encaminhou para que a ANATEL adotasse. Entretanto, nenhuma delas é capaz de implicar em atrasos significativos no edital, o que provavelmente resultará em um leilão no mês de outubro de 2021. Nem mesmo a determinação de atendimento de conexões em escolas públicas, que no voto final do relator acabou se tornando uma recomendação, sensibilizou o TCU para uma mais incisiva atuação junto à ANATEL. Vale salientar que inúmeras vezes este tribunal, em outros acórdãos, teceu críticas à condução negligente da agência, e agora se vê propondo ações que serão difíceis de serem acompanhadas e efetivamente concretizadas, numa aparente sinalização de que estaria fazendo “vistas grossas”.

Insegurança jurídica

No entanto, algumas incertezas quanto às premissas adotadas podem eventualmente trazer uma insegurança jurídica ao processo. Esse é o caso das empresas de satélite que exploram a faixa de 3,5 GHz, que em virtude da mudança da TV aberta para a faixa de 12 GHz perderão receitas e já estão ameaçando através do seu sindicato patronal, o Sindisat. Da mesma forma, os integrantes do Consórcio 5G Brasil, que reúne centenas de pequenos provedores de internet, pedem alterações no edital, mesmo que com atrasos no seu lançamento. Segundo eles “o leilão inviabiliza novos entrantes”, o que poderia repetir problemas acontecidos no 4G, onde “por erros na concessão, fez com que a tecnologia demorasse mais de sete anos para chegar ao interior em comparação com as grandes cidades”.

Sem contar com o problema comercial e diplomático da aventada restrição aos fabricantes chineses, notadamente a Huawei, que o governo entende que conseguiu contornar com a criação de uma rede governamental sem o fabricante, mas com a permissão de sua participação no leilão na rede pública. O fato é que a Huawei, onde é banida, tem entrado na justiça alegando inobservância às leis de livre mercado internacional, e na Suécia, terra da Ericsson, suspendeu o leilão na suprema corte local. No comércio exterior com a Australia, a China impôs aumentos de taxação de produtos australianos por ter o governo australiano impedido fornecimentos da Huawei. A própria Ericsson vem repensando sua participação em iniciativas que envolvam desenvolvimentos que visem isolar os fabricantes chineses, pois tem visto suas vendas no imenso mercado chines despencarem. Mais recentemente isto passou a ocorrer também com a Nokia, ambas abandonando uma iniciativa internacional de criação de uma interface (Open Ran), que daria uma maior independência aos provedores de serviço em relação às estruturas de redes existentes que são atualmente implementadas majoritariamente com equipamentos da Huawei.

Em recente reunião com representantes da ANATEL e MCom, dentro do escopo de atuação do Clube de Engenharia no Comitê Gestor de Internet (CGI.br), tivemos oportunidade de questionar, além do já abordado tema da quantidade de blocos de frequência a serem inoportunamente adjudicados, a necessidade de se estabelecer uma política de pesquisa e desenvolvimento que venha a desembocar numa cadeia produtiva nacional que pudesse abastecer o quarto maior mercado mundial de redes móveis do mundo. Sabemos que algumas iniciativas privadas estão se formando no sentido de produção local, mas insistimos que a direção do interesse nacional deve ser instrumentalizada por uma política industrial. Uma política que capacite o país no longo prazo à sua inserção no mercado mundial por deter uma demanda considerável de participação. A resposta a estas questões quase sempre tem sido vaga e denota uma desarticulação do MCom com o fomento à pesquisa e o desenvolvimento de tecnologias que possam alavancar o país para patamares de maior ganho de conhecimento e prosperidade para nossa sociedade.

Abismo digital

Não obstante, o edital do 5G reúne características muito interessantes. Ele impõe compromissos que não só serão atendidos por implementações da tecnologia 5G, e também para recuperar as imensas desigualdades digitais introduzidas pelos leilões arrecadatórios do 4G do passado. Existe um abismo digital no Brasil: cerca de 40 milhões de pessoas não têm acesso à internet. Foram estabelecidos compromissos de beneficiar com o 4G localidades acima de 600 habitantes que não utilizam a tecnologia. Municípios receberão fibras óticas aumentando sua possibilidade de atendimento efetivo em velocidades mais altas, estradas federais poderão oferecer cobertura com o sinal e todas as escolas públicas do país poderão estar conectadas com professores e alunos desenvolvendo seus conteúdos pedagógicos. Para isso, exigências de intransigência com compromissos de metas e métricas de gestão devem ser
perseguidas. Durante bastante tempo, décadas talvez, haverá convivência complementar entre as infraestruturas atuais de sistemas móveis e o 5G. Portanto, deve-se privilegiar um olhar no sentido da universalização do acesso.

Crescem as expectativas do uso dos fundos setoriais, em especial o Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (Fust) sem o desvirtuamento de sua finalidade precípua.

Segundo estimativas, em 1° de julho de 2021 cerca de 90 países prestavam os serviços de 5G no mundo, incluído o Brasil, até apoiado por campanhas publicitárias pelos principais provedores de redes móveis. Trata-se do aproveitamento da infraestrutura do 4G, onde eventualmente existem frequências ociosas que possam compartilhar o espectro com uma infraestrutura de rádio 5G, de acordo com padronização estabelecida por especificação internacional chamada 5GDSS, do inglês “compartilhamento dinâmico de espectro”. O MCom tem implicado muito com a denominação de 5G dessa alternativa de prestação de serviço, que porventura possa vir a arranhar o charme e a importância do edital do “5G real”, que só teria todas suas características oferecidas depois do edital que o ministério promove. Implicâncias e briguinhas à parte, os prestadores de serviços precisam abrir seus olhos para a realidade de mercado que vem se apresentando nas fases iniciais da operação do 5G pelo mundo. Para o usuário final, a bem das velocidades mais altas que o 5G proporciona, existem muitas reclamações de que as aplicações de forma geral podem ser atendidas pelo 4G com custos de dispositivos e planos de operadoras mais em conta. Para muitos não se justifica uma migração pura e simples. A insatisfação já se mostra em relatórios de empresas de consultoria contratadas pelos fabricantes de equipamentos. De fato, o 5G introduz capacitações inovadoras em maiores velocidades, menores tempos de resposta e na capacidade de atendimento simultâneo de uma multiplicidade de dispositivos. Mas isto precisa ser explorado por aplicações que possam beneficiar o usuário comum, e não apenas indústrias e atividades empresariais. É claro que o 5G está na sua infância e espera-se que aplicações inovadoras surjam para dar seguimento adequado a mais uma geração de sistemas móveis por muito tempo.

Em 24 de setembro, a ANATEL, depois de mais um pedido de vistas, por um de seus conselheiros, finalmente aprovou o edital com alterações determinadas e recomendadas pelo TCU. Sem percalços no caminho, a data do leilão será dia 04 de novembro de 2021, mantendo as datas de início de operação do 5G com as novas outorgas de frequências a partir de julho de 2022. E com expectativas de que haja
possibilidade de antecipações pelos prestadores de serviços adquirentes.

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