Seminário no Clube de Engenharia, em parceria com o IBEP e o Senado, reúne intelectuais que cobram novo projeto de país
A Independência do Brasil, cujo marco oficial é o dia 7 de setembro de 1822, não só continua sendo revisitada como questionada nos dias de hoje. Duzentos anos após a proclamação por Dom Pedro I, cabe a indagação se os acontecimentos da época, que levaram à separação de Portugal, trouxeram autonomia plena ou deixaram para depois a consolidação da soberania em todos os seus aspectos. Mais do que festejos, a conclusão de um ciclo de dois séculos exige reflexão e aprimoramentos, conforme ficou demonstrado através do seminário promovido pelo Clube de Engenharia, pelo Instituto Brasileiro de Estudos Políticos (IBEP) e pela Comissão do Bicentenário do Senado Federal. Durante dois dias, entre 3 e 4 de julho, nomes proeminentes da intelectualidade do país, como da historiadora Isabel Lustosa, do ex-ministro Roberto Amaral, do economista Márcio Pochmann e do líder do MST João Pedro Stédile, falaram de sua visão dessa conquista e das lacunas deixadas.
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O primeiro dia de debates, que teve como tema “As dependências do Brasil: Resistência e Horizontes”, foi aberto pelo ex-ministro de Ciência e Tecnologia Roberto Amaral. Ele apontou diversas fragilidades na propalada independência, a começar pela falta de legitimidade ampla das estruturas políticas. Grande parte da construção das instituições se deu através de golpes ou orquestrações em que o povo esteve normalmente ausente. Essa falta de consolidação nacional se completaria com a subordinação econômica a potências do Atlântico Norte e a falta de um projeto de desenvolvimento nacional.
“Somos dependentes da ciência, tecnologia e ideologia do Primeiro Mundo”, sentenciou Amaral, que é presidente emérito do IBEP.
Professora da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Tania Bacelar enfatizou na sua fala aspectos econômicos do processo de independência. Segundo ela, o país continua atrelado à dependência estrangeira por não conseguir construir um modelo econômico de plena soberania. Como o Brasil se manteve como fornecedor de produtos primários para a Europa e depois para os Estados Unidos, a industrialização ocorreu de forma muito atrasada e mesmo assim dependente tecnologicamente. Segundo ela, apesar do impulso dado na Era Getúlio Vargas, novos retrocessos retardaram ainda mais o processo de autonomia, que só encontra uma frente forte e real na autenticidade cultural do país.
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“A raiz na economia é de dependência e não conseguimos nos libertar disso, embora haja resistências, como a criação da Petrobras, da CSN, da Vale e da Eletrobras na Era Vargas, como no período do governo João Goulart, e também no engate no BRICS no Governo Lula”, avaliou a professora.
O seminário contou com a participação de debatedores que aprofundaram questões levantadas pelos palestrantes. O jornalista e escritor Eduardo Bueno traçou diversos paralelos entre os fatos passados e a realidade atual e lamentou o fato de o último 7 de Setembro ter sido sequestrado pela extrema-direita. Ele destacou o fato de após a independência o país já ter sofrido o primeiro golpe com a dissolução da Constituinte que elaborava a primeira Carta Magna, enquanto se discutia a liberdade de imprensa e expressão. A manutenção da escravidão foi outro legado de atraso deixado por um processo extremamente conservador de separação e construção institucional do Brasil.
“Brasileiros tinham orgulho de não cumprir tratados contra a escravidão”, lamentou o escritor.
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A historiadora e professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRS) Claudia Wassermann também destacou as lacunas e fragilidades da independência, mas avaliou que processo semelhante ocorreu em toda a América Latina. Segundo ela, em todos os países da região as elites que conduziram a autonomia institucional optaram por relações de trabalho de exploração e uma estrutura arcaica de posse da terra, o que foi combinado com a especialização na produção de produtos primários e o endividamento externo. O legado nefasto desse passado, portanto, está presente até hoje.
“Nos perguntamos o que celebrar? Estamos celebrando independências masculinas, coloniais, europeias, militares, que tiveram como protagonistas as classes dominantes coloniais racistas e autoritárias, escravagistas e senhoriais que geraram estados nacionais excluindo negros e indígenas da condição cidadã e os pobres”, afirmou a historiadora.
O debate teve também a participação da historiadora Isabel Lustosa, ex-pesquisadora da Fundação Casa de Rui Barbosa. Ela completou o panorama da independência destacando que nem todos os personagens desse passado estiveram tão comprometidos com o conservadorismo e a subordinação. Foi o caso do chamado Patriarca da Independência, José Bonifácio, que defendia a abolição da escravatura e reforma agrária e do jornalista Hipólito da Costa, que fundou o Correio Braziliense em Londres e defendia ideias iluministas.
“É preciso ver que essas elites que promoveram o reforço dessa escravidão tinham também pessoas ilustradas”, ressaltou Isabel Lustosa.
O segundo dia de seminário teve como tema “As perspectivas da Independência do Brasil na República”, em que o processo histórico de conquista da soberania foi aprofundado. O líder do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), João Pedro Stédile, vinculou a necessidade de avanços institucionais a uma melhor distribuição de renda e mais qualidade de vida para a população. Segundo ele, a democracia nunca será real com tamanha pobreza e degradação tanto no campo quanto na cidade. Ele defende melhorias na infraestrutura e aposta numa produção mais sustentável.
“Para resolver os problemas estruturais da população brasileira, só um projeto de país. E esse projeto está pendente agora da capacidade de organização da classe trabalhadora, das lutas de massa e da mobilização massiva da população brasileira e ainda estamos longe disso. Então, essas são as dificuldades de construir um projeto”, ressaltou Stédile.
Já o economista Márcio Pochmann, presidente do Instituto Lula e nome cotado para a presidir o IBGE, deu mais ênfase a fatores externos que obrigariam o país a uma transformação estrutural rumo a uma possível nova guinada desenvolvimentista. Segundo ele, apesar das dificuldades históricas do Brasil e sua constante subordinação a centros de poder mundiais, há novas condições no cenário internacional que podem favorecer uma inserção internacional mais soberana e proveitosa.
“Vejo, portanto, a possibilidade de construir um novo projeto de modernidade, de uma forma diferente, justamente quando assistimos a uma forma de transição na forma de governar o mundo unilateral, unipolar, para um mundo multipolar, de diferentes regionalistas, em que seria possível construir continente sul-americano um centro regional de desenvolvimento de novo tipo”, sintetizou o economista.
A data ensejaria, portanto, a oportunidade de uma refundação do país em novas bases, com maior justiça social e o estímulo à produção de alto valor agregado, dois dos principais desafios abandonados pelo país nesses dois séculos. A constatação foi reforçada pelos debatedores. A professora da Universidade Federal do Piauí (UFPI) Claudete Dias ressaltou que o projeto de país conduzido pela elite no pós-1822 já foi marcado pelo anacronismo e o atraso. Foi fruto não de um consenso, mas do esmagamento das lutas internas e causou mais exclusão do que desenvolvimento.
“O Grito do Ipiranga foi um arranjo político. A Independência foi feita à revelia do povo, que queria um Brasil republicano”, ressalta a historiadora.
O debate também contou com a participação do historiador Flávio Gomes, da professor da UFRJ, que também apontou o caráter forjado dos movimentos políticos das elites, que até divergiram em muitos momentos, mas se uniram na visão racista.
“Com relação a essa ideia da existência de um projeto de modernidade como nação ocidental, nas primeiras décadas do século XIX não se tratava de um projeto pronto e acabado. Foi exatamente no século XX que foi inventada a ideia de uma modernidade, mas excludente e racista”, comentou o historiador.