Engenheiro e físico paulista ajudou a implementar diversos centros de pesquisa e contribuiu para vanguarda nos estudos com a luz de síncrotron
O Brasil está prestes a se tornar o primeiro país do mundo a possuir um laboratório de máxima contenção para pesquisas biológicas conectado a uma fonte de luz de síncrotron. O projeto em desenvolvimento em Campinas (SP) é um orgulho nacional, que só está sendo possível graças ao empenho realizado há décadas pelo engenheiro e físico Rogério Cerqueira Leite. O Cientista deixou a vida no último dia 1º de dezembro, mas seu legado para o país será perpétuo diante das enormes contribuições que deixou. Ele foi um dos principais responsáveis pela criação do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), ao qual está vinculado o chamado Orion (laboratório de classe NB4), bem como outras estruturas para estudos de materiais e segurança biológica.
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É gigantesca a dívida da ciência brasileira para com Cerqueira Leite. Entre seus maiores feitos, está o fato de ter sido pioneiro no país no uso do laser para pesquisas de materiais. Foi em 4 de fevereiro de 1965, que pela primeira vez no Instituto de Tecnologia da Aeronáutica (ITA) essa radiação foi utilizada para estudo de sólidos, com a ajuda do físico e professor Sergio Porto. Nessa mesma instituição, o paulista se formou em engenharia eletrônica, em 1958. Obteve seu mestrado em física pela Sorbonne, na França, quatro anos depois.
A experiência foi realizada durante um curto intervalo na carreira profissional de Cerqueira Leite, iniciada em 1962 na Bell Laboratories, de Nova Jersey (EUA). Sem apoio institucional para suas pesquisas, ele acabou voltando para a empresa americana, onde permaneceu até 1970. Nesses oito anos, tornou-se especialista em materiais semicondutores, realizando muitas pesquisas com esses sólidos cuja estrutura molecular era analisada com a ajuda do laser, através da técnica de espectroscopia Raman. Esse trabalho era estratégico para o desenvolvimento de microprocessadores.
A experiência na Bell foi fundamental para ele não só no conhecimento desses materiais, mas também no sentido de como empresas que desenvolvem pesquisas e universidades precisam atuar de forma integrada. Foi com essa visão que ele voltou ao Brasil em 1970 para trabalhar na Unicamp, a convite do então reitor Zeferino Vaz. Na instituição do interior de São Paulo, ajudou a criar o Departamento de Física da Matéria Condensada do Instituto de Física Gleb Wataghin (IFGW). A unidade foi um exemplo também de integração com diversos centros de pesquisa de ponta ao redor do mundo. Além de parcerias com empresas, se desenvolveu também com aportes feitos pelo BNDES e a FINEP.
“Ele viu que as empresas tinham papel importante nas pesquisas, mas também que as universidades continuavam sendo fundamentais para a pesquisa básica”, contou o físico Carlos Henrique de Brito Cruz, ex-reitor da Unicamp.
Essa visão, compartilhada com outros cientistas, acabou transformando a região de Campinas num grande celeiro de inovações tecnológicas. Cerqueira Leite foi o principal responsável pela criação da Companhia de Desenvolvimento Tecnológico (Codetec), incubadora de pequenas empresas que estimulava a interação entre a universidade e a iniciativa privada. A iniciativa surgiu paralelamente à fundação do Centro de Pesquisas em Desenvolvimento e Telecomunicações (CPqD), responsável, entre outras inovações, pela criação da primeira fibra ótica brasileira.
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Adotando um modelo que em muito se assemelhava ao do Vale do Silício, na Califórnia (EUA), Cerqueira Leite empreendeu e apoiou diversas outras iniciativas. Foi dele o projeto da criação da Companhia de Desenvolvimento do Polo de Alta Tecnologia de Campinas (Ciatec), também vinculada à Unicamp. Até hoje, é um dos principais polos de desenvolvimento tecnológico do país.
Cabe ressaltar que Cerqueira Leite não imprimiu em seus projetos apenas a contribuição de seus conhecimentos científicos. Suas iniciativas tinham um cunho nacionalista e o objetivo de dotar o país de maior autonomia tecnológica e potencial de desenvolvimento. Também não deixou de se posicionar politicamente, mesmo no período autoritário, a favor da independência do Brasil em diversas áreas. Por isso, foi um crítico do acordo nuclear Brasil-Alemanha, que incluiu a construção da usina de Angra 2.
A dedicação à ciência não excluiu outros interesses e áreas de estudo na trajetória do engenheiro. Assim que ingressou na Unicamp, foi um dos principais responsáveis pela criação do Departamento de Música da universidade, que se converteu posteriormente no Instituto de Artes. Era um colecionador de discos de música clássica e de obras de arte, tendo especial afinidade com trabalhos chineses, da América pré-colombiana e africanos.
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No entanto, seu maior legado à ciência brasileira começou a se delineado nos anos 1980. No período em que ocupava a vice-presidência da Companhia Paulista de Força e Luz (CPFL), teve papel decisivo na construção da primeira fonte de luz síncrotron do Hemisfério Sul, a partir do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS). Desde então, esse laboratório de última geração vem possibilitando a realização de estudos sobre a composição e estrutura da matéria em suas mais variadas formas. Pesquisadores brasileiros vêm se aprimorando e realizando descobertas em áreas como ciência dos materiais, nanotecnologia, biotecnologia, ciências ambientais e muitas outras.
É importante destacar que ao longo da carreira, Cerqueira Leite publicou sete livros sobre variados assuntos e deixou publicados 80 trabalhos em revistas especializadas. Foi editor da Solid State Communications, editada em Oxford (Inglaterra), de 1974 a 1988, e revisor de cerca de 20 revistas internacionais, além de ter sido membro do Conselho Editorial do jornal Folha de S.Paulo. Por conta de seu gabarito, recebeu mais de 3 mil citações em revistas científicas.
Seu falecimento motivou diversas homenagens, como a do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que declarou em nota: “Rogério Cerqueira Leite foi um dos nossos maiores cientistas e um dos principais responsáveis pelo desenvolvimento da pesquisa e avanços da ciência no Brasil”. Ele ainda acrescentou: “Em 93 anos de vida deixou contribuições em tantas áreas que seu legado continuará dando frutos e não será esquecido. Meus sentimentos aos familiares, amigos, alunos e admiradores de Rogério Cerqueira Leite”.
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Desde o início do programa Pró-Álcool, Cerqueira Leite foi um entusiasta do uso de biocombustíveis e se tornou um defensor ainda mais aguerrido do desenvolvimento de pesquisas em torno das fontes de energia renováveis ao longo da vida. Além de ter demonstrado grande preocupação com o planeta e a sociedade, em sua trajetória. Em vista disso, deixou registrado em entrevista ao projeto Museu da Pessoa, publicada em 2022, a seguinte frase: “[…] velhos gostam de falar do passado, porque não têm futuro, mas eu sempre olho o futuro, apesar de ter tido uma vida satisfatória etc. e tal, eu trabalho para o futuro.”.