Muito se fala sobre racismo ambiental, mas poucos conhecem sua origem. O termo surgiu nos Estados Unidos, no início da década de 1980, durante protestos em Warren County, Carolina do Norte, liderados por movimentos negros contra a concentração de lixo tóxico e indústrias poluentes em áreas majoritariamente ocupadas por pessoas negras. A expressão foi cunhada pelo Dr. Benjamin Franklin Chavis Jr., pastor batista, ativista político e ganhador do Prêmio Nobel da Paz, que a definiu como a distribuição desproporcional dos impactos ambientais, direcionados na maioria das vezes às populações étnicas, racializadas e vulneráveis.
No Brasil, país que foi o último das Américas a abolir a escravidão, o racismo ambiental tem raízes profundas. No período colonial, antes do saneamento urbano, os chamados “tigres”, escravizados que transportavam barris de urina e fezes das casas senhoriais até os locais de despejo, tinham suas peles queimadas pela amônia, enquanto a elite se isentava do contato com a insalubridade. Com a reforma urbana de Pereira Passos (1902-1906), essa lógica se consolidou: milhares de famílias pobres e negras foram expulsas do Centro e da Zona Sul, inaugurando um padrão de segregação urbana que persiste até hoje. Esse deslocamento compulsório expôs essas populações a condições ambientais precárias e vulnerabilidades sociais profundas, mostrando como políticas urbanísticas aparentemente neutras podem reproduzir e aprofundar desigualdades raciais e sociais — um dos pilares do que hoje entendemos como racismo ambiental.
Exemplos contemporâneos mostram a continuidade desse modelo de planejamento urbano. O Complexo de Favelas da Maré foi cercado pelas três principais vias expressas da cidade, com o objetivo de facilitar a mobilidade de mercadorias e veículos particulares. Santa Cruz, bairro com a maior porcentagem de população negra do Rio, convive com altos índices de poluição do ar, oriundos de siderúrgicas na região, que são associados a doenças respiratórias e cardiovasculares, especialmente entre crianças e idosos do local. Esses casos não são coincidência: refletem escolhas históricas de planejamento urbano e licenciamento ambiental que destinam a territórios periféricos — e majoritariamente negros — os maiores riscos ambientais, enquanto áreas valorizadas permanecem livres de tais impactos. É dessa forma que o racismo ambiental se manifesta, transformando comunidades inteiras em zonas de sacrifício em nome do desenvolvimento econômico.
Um exemplo cotidiano que qualquer carioca conhece é a diferença de temperatura ao atravessar os túneis Rebouças e Santa Bárbara, que ligam a Zona Sul à Zona Norte da cidade. De um lado, áreas com verde e ventilação; do outro, regiões densamente construídas, com muito concreto e pouco ar circulando, tornando o calor muito mais intenso. Essa experiência mostra como o planejamento urbano distribui de forma desigual os impactos ambientais, reforçando a injustiça climática e o racismo ambiental na cidade.
Assim, do estigma dos tigres, passando pelas remoções forçadas de Pereira Passos, até os impactos da urbanização sobre a Maré e a poluição em Santa Cruz, percebe-se a continuidade de um modelo urbano que privilegia alguns enquanto sacrifica muitos. Enquanto alguns recebem proteção e infraestrutura, outros têm seu direito fundamental a um ambiente ecologicamente equilibrado sumariamente negado.
Enfrentar o racismo ambiental é um chamado à engenharia: projetar com justiça social e participação, transforma nossa profissão num instrumento efetivo de reparação. Engenheiros e engenheiras, façamos da técnica um gesto político: projetando com quem vive a cidade, priorizando vidas sobre interesses imediatos e exigindo transparência e compromisso nas escolhas. Que a engenharia não seja espetáculo, mas compromisso com a justiça ambiental, a transformação social e o progresso.
Júlia Matos
Estudante de Engenharia Ambiental (UFRJ),
Diretora da Assessoria Técnica do Coletivo Força Motriz,
educadora popular ambiental.