Empresa propõe devolução de maior parte de sua rede, sem a devida manutenção, e escolhe trechos de seu agrado para gerir por mais 30 anos
A malha ferroviária do país é um patrimônio do povo brasileiro que deveria estar a serviço do desenvolvimento socioeconômico, mas a gestão desses bens vem sendo tratada nas últimas décadas de forma desastrosa. Um exemplo de descaso é a situação da rede sob responsabilidade da Ferrovia Centro-Atlântica (FCA), que depois de ter devolvido 2.800 quilômetros da rede recebida em 1996, tenta agora renovar sua concessão por mais 30 anos, largando mão de mais de 2 mil quilômetros de trechos. A situação de abandono desse modal de transporte e os prejuízos que traz principalmente para o Estado do Rio de Janeiro foram tema de um debate no Clube de Engenharia, com a presença de especialistas que clamaram por maior controle por parte do poder público sobre os trilhos e meios rodantes existentes e o investimento na expansão dos trens para carga e passageiros.
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O evento intitulado “O futuro de nossa malha ferroviária”, realizado pela Divisão Técnica de Transportes e Logística (DTRL), contou na abertura com a participação do presidente do Clube, Francis Bogossian, que defendeu a realização de investimentos na renovação e reestruturação da rede nacional por parte do poder público, que deveria buscar soluções que incluíssem o controle e gestão desse patrimônio. Recentemente, o presidente enviou carta ao ministro dos Transportes, Renan Filho, criticando a renovação.
“O nosso Clube, sempre comprometido com o progresso técnico e o desenvolvimento do país, tem acumulado uma vasta discussão sobre o assunto. Temos participado ativamente de todos os fóruns que discutem essa questão vital para o futuro da mobilidade urbana e ferroviária”, declarou Bogossian.
A Rede Ferroviária Federal (RFFSA) foi concedida à iniciativa privada em 1996, sendo que coube à FCA a gestão por 30 anos de 7.860 quilômetros em boas condições de operação. No entanto, parte dessa malha foi sendo abandonada pela concessionária, que em 2013 ratificou junto à Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) a devolução de 36% de sua rede, acordando o pagamento de uma multa de R$ 1,2 bilhão, parcelada em 60 vezes.
Mas, mesmo tendo demonstrado incompetência na manutenção e gestão desse patrimônio público, a FCA procura agora antecipadamente renovar sua concessão por mais 30 anos. A proposta é de devolução de mais 2.132 quilômetros de trilhos e o pagamento de R$ 3,6 bilhões. Para um leigo, pode até parecer vantajoso para o Estado o negócio, mas na realidade a jogada pode sair cara para a população e o interesse público. A empresa ficaria com cerca de 3 mil quilômetros dos trechos mais rentáveis por três décadas a mais e deixaria para o Erário o custo de recuperação dessa infraestrutura. A União receberia R$ 1,7 milhão por quilômetro devolvido, sem uma avaliação técnica de suas condições, enquanto a construção de novas ferrovias podem custar até R$ 20 milhões por quilômetro.
Há que se levar em conta também as responsabilidades contratuais da concessionária, que tem por obrigação garantir a manutenção da malha e dos demais equipamentos que recebeu, garantindo as condições de segurança operacional. A falta de atenção da empresa para com mais da metade dos trechos que abocanhou há 28 anos já é suficiente para uma revisão do modelo de privatizações adotado pelo país e a simples renovação de contrato, sem a discussão e análise devida, só agrava os equívocos cometidos.
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Para o Rio de Janeiro as consequências são graves. O Estado deveria estar recebendo 25% da multa paga pela empresa, mas o dinheiro está retido no caixa da União. Da rede concedida à FCA, apenas 41 quilômetros estão em operação no território fluminense (trecho entre Quatis e Barra Mansa). Ainda por cima, há projetos prioritários que custam a sair do papel.
O deputado estadual Luiz Paulo Corrêa da Rocha (PSD), que preside a Frente Parlamentar Pró-Ferrovias, participou do debate e ressaltou a necessidade da ampliação da rede que corta o estado. Ele citou o projeto da ferrovia Rio-Vitória, necessária não só para a conexão das duas regiões metropolitanas, como para a ligação com portos ao longo do trajeto, como o do Açu.
“De tudo que nós discutimos na frente, nas diversas audiências públicas, e com os pontos de vista os mais diversos de tantos engenheiros ferroviários, me parece que no Estado do Rio de Janeiro, o projeto mais estruturador é a Estrada de Ferro 118, na sua integralidade. E não somente no trecho do Espírito Santo ao Porto do Açu. Em Itaboraí, se integraria ao Comperj, iria até a Baixada, e integraríamos tanto ao Porto do Rio de Janeiro quanto ao Porto de Itaguaí. É uma obrigação implantá-la”, afirmou Luiz Paulo.
O economista Antonio Pastori ressaltou o fato de o Estado do Rio já ter tido no passado estradas de ferro que atendiam a quase totalidade dos municípios. Segundo dados do IBGE, de 1955 o território fluminense, com a inclusão do então Distrito Federal, tinha 2.828 quilômetros de linhas férreas que serviam a 92% das cidades. Essa rede foi quase todas desmantelada.
“Outro trecho bastante estratégico é o que vai de Angra dos Reis até o porto do Rio de Janeiro, trazendo café de Varginha. Quarenta por cento da produção mineira é embarcada em Varginha e vai para o Porto de Santos, em containers, porque não tem espaço no Porto do Rio nem ferrovia que queira transportá-lo”, defendeu Pastori.
Membro da DTRL e coordenador do Fórum de Mobilidade Urbana da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, Licinio Rogério destacou no debate não só o abandono do patrimônio concedido como o fato de a FCA estar devolvendo ao Estado uma infraestrutura em condições bem piores do que as encontradas na época da privatização.
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“Se alguém recebe um bem, tem que devolvê-lo ao dono no mesmo estado”, frisou Licinio.
Após o debate, os participantes do evento assinaram um manifesto a ser entregue às autoridades.