Fim dos contratos das distribuidoras de energia provoca rediscussão do modelo do sistema elétrico

Fim dos contratos das distribuidoras de energia provoca rediscussão do modelo do sistema elétrico

Ajustes na distribuição não resolvem todos os problemas do sistema. Crédito: Copel
Fim dos contratos das distribuidoras de energia provoca rediscussão do modelo do sistema elétrico
A Luta das Mulheres

Aneel está estabelecendo novas regras para 19 grandes concessionárias, que são apenas parte do problema

A Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) iniciou um processo de renovação das concessões de 19 distribuidoras, cujos contratos vencem entre 2025 e 2031. O órgão está instituindo novas regras que servirão de parâmetro para a extensão por mais 30 anos das concessões, atendendo a novas necessidades da atualidade, principalmente devido às condições climáticas extremas, mas também proporcionando maior equilíbrio econômico-financeiro das empresas. No entanto, devido ao impacto na vida de mais de 100 milhões de brasileiros, as propostas geram grande polêmica e merecem ser mais bem debatidas. Tendo em vista as falhas na prestação de serviço e os problemas de gestão apresentados, o fim desses prazos enseja até uma rediscussão de todo o setor. 

Um exemplo da falência do modelo atual está nas principais regiões metropolitanas do país. No ano passado, em virtude dos temporais, a população da Grande São Paulo ficou diversas vezes às escuras. Na pior ocasião, em outubro, cerca de 2,1 milhões de endereços de área abrangida pela concessão da Enel, de capital italiano, tiveram o fornecimento interrompido. Com um atendimento lento, o restabelecimento demorou excessivamente em milhares de casas. No Rio de Janeiro, a Light, com dívidas de mais de R$ 11 bilhões, teve que recorrer a uma recuperação judicial para evitar a falência e problemas não faltam na prestação de serviço em sua região.

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Técnicos da Light fazem reparos no Rio de Janeiro. Crédito: Reprodução TV Globo

A agência reguladora, cujas multas não têm sido suficientes para impor às concessionárias o cumprimento de regras e a prestação de serviços de excelência, tenta agora aprimorar o modelo. A ideia é prorrogar os contratos, através da assinatura de termos aditivos, forçando a realização de investimentos com o objetivo de melhorar a qualidade do serviço, principalmente no tocante à capacidade de resposta, em casos de chuvas e ventanias. Devido à complexidade do tema e às diversas propostas de mudanças na regulação, a Aneel abriu uma consulta pública encerrada em dezembro.

A revisão vem suscitando um debate sobre a necessidade de reestruturação do setor elétrico. O Clube de Engenharia do Brasil enviou em novembro uma carta ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva, pedindo ao mandatário que tome iniciativas no sentido de corrigir distorções do setor e impor a visão da preponderância do interesse público em detrimento dos interesses de curto prazo dos lobbies.  O documento, intitulado “Diretrizes para o Sistema Elétrico Brasileiro”, recomenda a criação de um novo marco, com maior controle por parte do Governo Federal sobre o setor, que passaria a ser coordenado por uma empresa pública, apoiada por uma Câmara Consultiva. Com isso, as distribuidoras administradas pelo capital público ou privado passariam a obedecer a um controle social mais rígido e os direitos dos consumidores, sejam empresariais ou residenciais, ficariam mais resguardados.

“A reestruturação do setor é trabalho da maior urgência e de interesse dos consumidores de energia residenciais, industriais, comerciais e do setor público, que têm na energia elétrica o seu mais essencial insumo. A eletrificação, ademais, é tendência mundial para que se atinjam as metas do Acordo de Paris, do qual o Brasil é signatário”, defende o documento do Clube.

A energia elétrica precisa ter seu acesso universalizado e seu fornecimento realizado de forma praticamente ininterrupta, pois, mesmo que falhas sejam inevitáveis, o restabelecimento tem que  ocorrer o mais brevemente possível. Mas essa não é a realidade do país, sobretudo na área das concessionárias cujos contratos estão sendo revistos. São 19 empresas, que operam os estados o Rio de Janeiro, São Paulo, Espírito Santo, Rio Grande do Sul, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Bahia, Sergipe, Rio Grande do Norte, Pernambuco, Paraíba, Maranhão e Pará. Ao todo, são responsáveis por 55,6 milhões de unidades consumidoras.

O Instituto Ilumina também acompanha a questão e alerta para o risco de a revisão dos contratos servir apenas para repassar para o consumidor novos riscos econômicos, advindos das mudanças climáticas e da ampliação da geração distribuída. Enquanto o primeiro fator aumenta os custos de conserto das redes, o segundo reduz a base de clientes. Isso sem contar o repasse pelas perdas com o furto de energia. Com isso, a população, além de pagar uma das tarifas mais caras do mundo, sofre com constantes apagões. Sem energia em momentos de pico de calor, muitos idosos têm morrido no Brasil silenciosamente.

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Enel é criticada por ter cortado funcionários. Crédito: Rovena Rosa/Agência Brasil

A economista Clarice Ferraz, diretora do Instituto, explica que além de mudanças ocorridas nas últimas décadas, o país vem enfrentando as consequências de decisões erradas tomadas pelas distribuidoras após a privatização do setor elétrico. Entre os desmandos, cita a demissão de técnicos especializados, com conhecimento profundo sobre a rede, em troca de uma terceirização desenfreada. Além da dificuldade na realização de reparos toda vez que chove forte, há também por pouco investimento em manutenção. Muitas vezes, preferem deixar os equipamentos irem a colapso para depois repor do que cuidar do seu bom funcionamento.

“Temos que fazer uma análise mais adequada às necessidades do território. Cada local tem suas características próprias e na prática se trata de um monopólio. Não adianta fazer um benchmark hipotético, como se houvesse concorrência de mercado”, afirma Clarice Ferraz.

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Segundo ela, ao apenas estabelecer a tarifa e forçar a empresa a reduzir seus custos operacionais, há indiretamente um estímulo a cortes de gastos principalmente com mão de obra. Além da terceirização, as empresas reduzem o número de trabalhadores e não investem em treinamento. O resultado é a demora no atendimento a ocorrências, deixando as pessoas por muitos dias sem energia. O poder concedente tenta aprimorar o sistema, mas faltam parâmetros melhores para monitorar o serviço. Segundo ela, seria necessária a adoção de critérios mais inteligentes que visassem não só à redução dos custos operacionais como também o aumento da vida útil de transformadores e demais equipamentos. Investir na construção de linhas subterrâneas nos grandes centros também é fundamental.

“Nós vemos uma preocupação grande com a minimização apenas dos riscos da atividade de distribuição, o que de certa forma é compreensível, mas está muito pouco contemplado o consumidor. É necessário um plano de modernização efetivo, de resiliência, para lidarmos com os desafios atuais”, ressalta a economista.

A Aneel propõe a revisão dos indicadores e pretende instituir regras que melhorem o serviço prestado à população, mas com seu quadro reduzido para fiscalizar o Brasil inteiro fica impossível exercer seu poder. Caberá ao Governo Federal avaliar um novo modelo para o setor, seja com controle maior da União, ou mesmo com maior participação dos estados e das prefeituras nesse monitoramento. 

As empresas, por sua vez, lutam para terem ainda mais liberdade de ação. Segundo reportagem do jornal Valor Econômico, de 15 de dezembro, na consulta pública, a maioria das distribuidoras defendem maior flexibilidade nos contratos, previsibilidade na política tarifária a fim de alcançarem o equilíbrio econômico-financeiro e preocupação com relação à renúncia a ações judiciais. As concessionárias que operam no território fluminense, Light e Enel, manifestaram de cara as dificuldades que enfrentam em controlar os furtos em áreas dominadas pelo crime organizado. 

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Apagão na região central de São Paulo. Crédito: Paulo Pinto/ Agência Brasil

Para o engenheiro e diretor do Instituto Ilumina Roberto D’Araújo, o processo iniciado pela Aneel tende na melhor das hipóteses a evitar o pior, garantindo a continuidade dos contratos. Isso porque as distribuidoras, segundo ele, não são necessariamente as vilãs do sistema, que possui graves desequilíbrios e falhas. Na ponta, elas arcam com a responsabilidade de religar a energia quando chove, o que quase sempre ocorre diante da proximidade de galhos de árvores e fios. Enquanto os funcionários das prefeituras têm dificuldade de podar os galhos quando já estão intrincados com a fiação, por questão se segurança, os técnicos das concessionárias não podem fazer o trabalho preventivo livrando os cabos da vegetação. O jogo de empurra poderia ser substituído por um plano com responsabilidades mais claras e de preferência com o aterramento da rede, como nas grandes cidades dos países desenvolvidos. 

“A distribuição de energia elétrica é apenas uma parte do planejamento urbano”, afirma Roberto D’Araújo.

As distribuidoras também arcam com perdas de clientes que optaram pela compra de energia pelo mercado livre, o que vem se refletindo no aumento das tarifas para os consumidores cativos. Segundo o engenheiro, desde 1995 a tarifa da Light já subiu 170% acima da inflação, sem ganho de qualidade para o consumidor, que paga por custos do sistema que não são cobrados dos clientes das comercializadoras do mercado livre, como os furtos. 

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Emaranhado de fios sobre a cabeça dos pedestres na Tijuca, no Rio

O sistema também fica encarecido com o baixo aproveitamento das energias renováveis durante o dia, período em que as hidroelétricas poderiam ser poupadas para a geração à noite. São problemas que poderiam ser resolvidos com investimentos e melhorias no sistema integrado. No entanto, quem paga a conta é o consumidor brasileiro, que pelo critério de comparação por paridade de compra paga a segunda tarifa mais cara do mundo, segundo a Agência Internacional de Energia.

“Quando a solar consegue atender uma boa parte da carga, o sistema está deslocando das térmicas ou dando uma folga para as hidráulicas. Mas com o modelo mercantil adotado pelo Brasil, deixou os construtores decidirem onde construir, quando e com subsídio. Pagamos metade da interligação para subestação, por exemplo, de uma usina solar no Nordeste, mas sem o aumento da capacidade de transmissão para o Sudeste, onde estão grandes reservatórios de água, não há o devido aproveitamento dessa energia”, explica o engenheiro.

Aneel aposta em melhorias no atendimento à população com a assinatura dos novos contratos. A agência informou que não havia como acatar todas as sugestões enviadas através da consulta pública, pois isso engessaria as regras com o excesso de detalhes, mas afirma que as mudanças vêm para trazer maior equilíbrio ao setor. Segundo a assessoria de imprensa, “A ANEEL reafirma no contrato seu compromisso com a sustentabilidade econômica e financeira do segmento de distribuição, ao exigir que as distribuidoras mantenham nível adequado de geração de caixa e endividamento, permitindo que haja os investimentos necessários à melhoria da qualidade aos consumidores. O descumprimento dessas obrigações sujeita a distribuidora à limitação da distribuição de dividendos, restrição de negócios entre partes relacionadas e, no limite, a caducidade da concessão”.

“Os novos contratos também dão maior peso à opinião e satisfação dos consumidores ao prever que a ANEEL poderá definir metas objetivas que impactarão a formação das tarifas, dando o sinal econômico para o aumento da satisfação e, no limite, poderá levar à troca da distribuidora se, sistematicamente, os consumidores estiverem insatisfeitos com o serviço prestado pela distribuidora”, acrescentou a agência.

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