Martírio de Rubens Paiva volta a inspirar repúdio à violência da ditadura

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Química em Questão


Filme “Ainda Estou Aqui” levou milhões de pessoas ao cinema ao retratar drama do engenheiro e político e sua família

O cinema colocou em evidência a história do engenheiro civil e político Rubens Beyrodt Paiva (1929-1971), preso, torturado e morto pela ditadura militar. O filme “Ainda Estou Aqui”, obra brilhante do cineasta Walter Salles em cartaz desde novembro, teve o mérito não só de levar milhões de pessoas para as salas de exibição, mas também de sintetizar através da história de uma família os danos causados pelo regime autoritário. Como seu corpo nunca foi encontrado, a dor e a luta da esposa Eunice pelo reconhecimento da morte se perpetuaram por décadas, drama que emocionou as plateias e lançou luzes sobre desmandos que não podem se repetir no Brasil.

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Cartaz do filme em rua de Paris. Crédito: Reprodução

O filme é grande em parte baseado no livro homônimo do escritor Marcelo Rubens Paiva, filho do engenheiro, que recontou a história da família dando maior protagonismo à mãe. A obra cinematográfica, estrelada pela atriz Fernanda Torres, que recebeu diversos prêmios, entre eles o de melhor atriz dramática no Globo de Ouro e está concorrendo a duas estatuetas do Oscar, se concentra no período em que o grupo, natural de São Paulo, viveu no Rio de Janeiro. Depois de ter sido cassado pelo regime militar, Rubens Paiva tentava criar os cinco filhos numa casa no Leblon tocando uma empresa de engenharia. Seu “crime” foi ter ajudado exilados políticos a manterem contato com seus parentes no Brasil, o que levantou suspeitas sobre suposto envolvimento com a luta armada.

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Rubens Paiva era bem sucedido na profissão mas nunca abandonou suas ideias políticas

Natural de Santos, onde passou a infância, Rubens Paiva se formou em engenharia pela Universidade Mackenzie, da capital paulista, em 1954. Seu período como estudante foi de intenso engajamento político, tendo sido presidente do Centro Acadêmico e vice-presidente da União Estadual dos Estudantes. No período, também participou da campanha “O Petróleo Nosso”, que resultou na criação da Petrobras, mas outras preocupações com o desenvolvimento do país e com a construção de uma sociedade mais justa estavam em mente. Como aluno ainda da Mackenzie, ajudou a organizar o  IV Congresso da União Estadual dos Estudantes em São Paulo, em março de 1951. Na época, travou contato com o advogado Almino Affonso e sugeriu a criação do Salário Mínimo Profissional, que virou lei em 1966. Através de sua atuação na UEE-SP, Rubens Paiva também ajudou a organizar a Semana de Energia Elétrica, em que foi discutido o monopólio estatal sobre o setor. 

Apesar de suas preocupações sociais e o pendor para a política, o engenheiro teve que batalhar desde cedo pelo seu sustento. Retornou ao Litoral Paulista, onde fundou a Paiva Construtora, tendo sido responsável pela construção de alguns edifícios em Santos. Segundo relato de seu filho no livro “Ainda Estou Aqui”, ele passou bons períodos em Brasília na segunda metade da década de 1950, onde atuou em obras púbicas na capital.

“Meu pai conhecia Brasília. O Plano Piloto estava entalhado na palma da sua mão. Como jovem engenheiro, foi um dos seus construtores. Montou uma lona de circo para abrigar a peãozada e construiu pontes e viadutos, sua especialidade. Quantas vezes não passei debaixo de pontes dos acessos ao Eixo Monumental e imaginei se ali não estava uma obra do meu pai. Existe uma foto dele, anônimo, com JK e trabalhadores. Está sujo dos pés à cabeça, com um chapéu de palha e um sorriso que demonstrava o orgulho de fazer parte daquela grande empreitada”, contou Marcelo.

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Grupo de exilados na Embaixada da Iugoslávia, em 1964; entre eles, Rubens Paiva. Crédito: Memorial da Democracia

Nos primeiros anos da vida profissional, também se dedicou ao jornalismo. Fez parte da equipe que reformulou o Jornal de Debates e atuou como diretor do jornal Última Hora de São Paulo. Apesar de seu pai Jaime ter uma visão política conservadora e de ter sido eleito prefeito da cidade de Eldorado Paulista, sendo que na segunda vez pela Arena (partido governista do regime militar), Rubens Paiva manteve sua militância nacionalista e de esquerda e se elegeu deputado federal em 1962, pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), de João Goulart.

Exerceu o mandato por apenas pouco mais de um ano, até ser cassado após o golpe de 1º de abril de 1964. Mas foi tempo suficiente para uma atuação parlamentar intensa, em que se destacou pela participação da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investigou as atividades do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais – Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IPES-IBAD), que financiava autores que escreviam artigos alarmistas sobre uma suporta ameaça comunista, representada principalmente por Goulart. 

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Rubens Paiva e Eunice, casal separado tragicamente pela violência do regime

Em grande parte em virtude de sua participação na CPI, Rubens Paiva teve seu mandato cassado e seus direitos políticos suspensos por dez anos. Antes disso, ainda proferiu discurso conclamando a população a resistir ao golpe. Ele teve que se exilar na Europa, primeiro na Iugoslávia e depois na França. Mas decidiu voltar ao Brasil, para surpresa de sua família, no fim de 64. 

Depois de algum tempo em São Paulo, ele resolveu se mudar para o Rio com a esposa e os filhos e viver numa casa alugada de frente para a praia do Leblon, um bairro que na época ainda não tinha a valorização imobiliária de hoje. No imóvel espaçoso, ele recebia clientes de seu novo empreendimento, uma empresa de engenharia de fundações, que teve grande demanda com o início da ocupação da Barra da Tijuca. O endereço também era frequentado por amigos, jornalistas e políticos. Na prática, Rubens Paiva acabou atuando secretamente como ponte entre exilados e amigos e parentes e também ajudou perseguidos a saírem do país. 

A família de classe média vivia uma fase feliz e Rubens Paiva um momento profissional mais promissor, tanto que chegou a comprar um terreno no Jardim Botânico para construir sua própria casa. O próprio país vivia um período de milagre econômico e pouco se sabia sobre os chamados “porões da ditadura”, locais onde presos políticos eram torturados para se obter alguma informação que se levasse a desbaratar grupos da luta armada. Como tudo ocorria de forma clandestina, na prática pouco importava se o suspeito tinha envolvimento ou não. 

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Rubens Paiva e Eunice na Praia do Leblon

Conforme mostra o filme, no dia 20 de janeiro de 1971, agentes da Aeronáutica entraram armados na casa de Rubens Paiva e o levaram para prestar depoimento. A ação, em pleno feriado, ocorreu no bojo da prisão da professora Cecília Viveiros de Castro, que retornava com Chile com uma carta destinada ao engenheiro. Não há como negar uma certa imprudência dos Viveiros de Castro, mas a emoção pode ser traiçoeira, quando se está sob o domínio da angústia. Tanto ela quanto Rubens Paiva foram levados para o 1º Batalhão de Polícia de Exército, a sede do DOI-CODI, na Tijuca. Uma verdade que foi ocultada pelas autoridades durante muitos anos. Uma versão forjada, que chegou a ser veiculada na imprensa, dava conta de que o ex-deputado teria sido resgatado por guerrilheiros, que teriam interceptado o comboio militar. A própria Cecília testemunhou a chegada de Rubens no Batalhão e sua tortura, desmentindo a farsa oficial. O médico Amilcar Lobo, que atendeu Rubens Paiva, agonizando numa cela, foi outra testemunha chave do episódio. 

Para a família Paiva, o assassinato causou uma dor perpétua, que extrapolou a ausência física do pai e marido, pois nunca puderam sepultar o corpo do engenheiro, até hoje desaparecido. Entre as diversas versões existentes, a tida como mais provável é de que seus restos mortais tenham sido jogados em alto mar. Além da perda irreparável do ente querido, os parentes tiveram muitos transtornos pelo não reconhecimento da morte. Entre outros, não puderam ter acesso à conta bancária nem a seguro de vida. Seu atestado de óbito só foi emitido no dia  23 de fevereiro de 1996, 25 anos após a morte, já no período democrático, no governo Fernando Henrique.

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Mesmo com pai desaparecido, família exibia resistência

Quem assiste ao filme e se comove tende a se colocar na situação de Eunice e dos filhos, que  tiveram que reunir forças extraordinárias para continuar tocando a vida. Há um apelo universal que contagia plateias no mundo inteiro que também arrebatou o público que há mais de 2 mil anos assistia à peça “Antígona”, de Sófocles. Quando um parente não consegue sepultar seu ente querido, é como seu uma lei divina esteja sendo violada, como mostra a tragédia grega. É um drama que também foi vivido por familiares de outros presos políticos da ditadura, como o estudante Stuart Angel Jones, entre outros. 

Apesar dessas violências intoleráveis, mesmo nos dias de hoje há facções na sociedade que desdenham desses sofrimentos e até pregam a volta do autoritarismo, um retrocesso descabido para o país.

“Quando a extrema direita começou a ganhar força no país, ficou claro o quanto nossa memória dos anos de ditadura militar era frágil. Propor mais reflexos desse período parecia vital para entender melhor o trauma vivido, e não repetir os mesmos erros do passado. Em “Ainda Estou Aqui”, o Estado invade o coração de uma família, decide quem vai viver ou morrer, faz um corpo desaparecer”, sintetizou o diretor Walter Salles, em entrevista à Folha de S.Paulo.

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Rubens Paiva e Selton Mello, ator que o interpreta no filme

Independentemente de outras premiações que venha a conquistar, o filme já teve o mérito de expor feridas do passado e de fortalecer o sentimento democrático na sociedade brasileira. Mesmo tendo perdido a vida aos 41 anos, de forma precoce e muito sofrida, Rubens Paiva não teve assim uma morte em vão. 

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