Sistemas de transportes metropolitanos passam por crise, mas solução está na união de esforços das três esferas do Poder Público
A pandemia comprovou o quanto foi importante o Brasil ter criado o Sistema Único de Saúde (SUS), que permitiu a vacinação em grande escala da população contra a Covid-19. Tanto que o modelo, que prevê a conjugação de esforços das três esferas da administração pública (federal, estadual e municipal), está inspirando soluções em outros tipos de serviços, como o de transportes. Diante da crise atual, com várias concessionárias ameaçando interromper a circulação de trens e barcas, principalmente, a responsabilidade compartilhada entre as instâncias do Poder Público surge como o caminho mais viável para financiar subsídios, garantir a qualidade e o equilíbrio econômico das operações.
A precarização do transporte público nas regiões metropolitanas brasileiras vem sendo debatida no âmbito do Clube de Engenharia e de outras entidades da sociedade civil preocupadas com a qualidade de vida dos cidadãos e com a retomada do desenvolvimento. Após um longo ciclo de debates, o Fórum de Mobilidade Urbana do Rio de Janeiro, em parceria com a Divisão Técnica de Transporte e Logística (DTRL), elaborou um documento com premissas básicas para os governos nortearem suas políticas para o setor. O texto foi também aprovado pelo Conselho Diretor do Clube.
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O documento apresenta dez recomendações para a recuperação do sistema de transportes. Entre elas, está a de “Que os novos contratos de prestação de serviços de Transporte Público sejam custeados pelo Poder Público através de Fundos de Mobilidade Municipal, Estadual e Federal, os quais também estarão disponíveis para o financiamento da implantação e da renovação da infraestrutura e veículos, assim como para o gerenciamento de todo o sistema”.
O chefe da DTRL, Itamar Marques da Silva Junior, argumenta que a modelagem de concessão adotada nas últimas décadas tem tido muita ênfase na tarifa e pouca atenção nos investimentos, na fiscalização pela qualidade dos serviços prestados e na integração entre os modais. Os avanços tecnológicos já permitem melhor monitoramento de trajetos e horários, possibilitando o aprimoramento do controle por parte do poder público das concessões, através de cobrança por quilômetro rodado. Uma abordagem mais humana para o sistema também é preconizada pelo engenheiro.
“O importante é garantir o direito de ir e vir do usuário, que não é só o trabalhador, mas também o estudante, a pessoa que vai ao médico, que vai ao lazer ou visitar os amigos. Temos que pensar não só na pauta não da mobilidade urbana mas da mobilidade humana. É preciso colocar o ser humano no foco”, defende Silva Junior.
O coordenador do FMU, Licínio M. Rogério, ressalta a necessidade de maior subsídio para os passageiros dos transportes públicos e de mais investimentos nos modais, tendo em vista a histórica canalização de recursos destinados ao transporte individual.
“O Asfalto Liso gasta R$ 580 milhões no Rio de Janeiro para a passagem dos carros na metade da pista. Ao mesmo tempo em que a Prefeitura reduz o subsídio para os ônibus. Não podemos só investir no transporte individual e deixar para de lado o transporte público”, afirmou ele.
A proposta de um sistema único foi bastante elogiada durante evento promovido pela DTRL pelo Fórum de Mobilidade Urbana, no último dia 9 de fevereiro. Foi convidado o engenheiro civil e deputado estadual Luiz Paulo Corrêa da Rocha (PSD) para falar sobre “Mobilidade urbana na Região Metropolitana do Rio de Janeiro”. Apesar da crise vivida pela SuperVia, que administra o sistema de trens do Grande Rio, o financiamento da tarifa tende a ser uma solução que inclusive pode voltar a elevar o número de passageiros.
Com mestrado em Engenharia de Transportes pela COPPE/UFRJ e tendo ocupado vários cargos na administração pública, o deputado Luiz Paulo argumenta que salvar o sistema de trens do Rio é vital não só para evitar um colapso dos transportes públicos da Região Metropolitana como uma alternativa para a retomada do crescimento econômico. Por seu traçado e pela capacidade de levar centenas de milhares de pessoas com velocidade, esse modal é estruturante e permite aos passageiros chegarem ao trabalho através da interligação com outros meios de locomoção.
Segundo ele, a redução das tarifas ou até mesmo a tarifa zero tendem a liberar mais recursos dos trabalhadores para o consumo e desonera os patrões do pagamento desses bilhetes através do vale transporte. São benefícios que ajudam a movimentar a economia e elevariam a arrecadação de impostos. Subsidiar as passagens de trens, evitando a falência do sistema, teria um custo que poderia chegar até a R$ 1 bilhão por ano, mas através da divisão desse montante entre os diversos entes federados e a União, o impacto orçamentário não seria tão alto. Outros cenários também são possíveis com menor impacto orçamentário, de acordo com o valor a ser subsidiado.
“Na modelagem da parceria público-privada, o Estado e as empresas entram com recursos mediante metas que precisam ser fiscalizadas e cumpridas. Cabe ao poder público financiar o transporte público sim. Tanto que o Estado do Rio criou o Fundo Estadual de Transportes que subsidia o Bilhete Único”, ressaltou Luiz Paulo.
A equação depende da disponibilidade de caixa, o que gera preocupação principalmente pelo fato de o estado estar em Regime de Recuperação Fiscal, mas ele apronta a receita do IPVA como uma alternativa.
Além da questão tarifária, o Rio se depara com o desafio de resolver a situação das concessões e a dos trens é um dos impasses a serem resolvidos. Apesar dos problemas e da crise, o momento é de oportunidade para uma reformulação do modelo, tendo em vista que todo o investimento no setor traz benefícios inquestionáveis sociais, econômicos e ambientais.
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Leia abaixo os dez princípios do documento:
1. Que sejam criadas e/ou fortalecidas unidades administrativas e empresas públicas voltadas à Mobilidade Urbana, isto é, dedicadas ao planejamento, gerenciamento, contratação, fiscalização e, se necessário, à operação dos serviços de Transportes Públicos Urbanos, equipando-as com pessoal capacitado e suficiente para, ao menor custo, assessorar os tomadores de decisão e atender à população com presteza e competência;
2. Que seja efetivada a contribuição do cidadão às Políticas Públicas de Mobilidade, direito assegurado pelos Artigos 14º e 15° da Lei Federal de Mobilidade (nº 12.587 de 2012), através da participação paritária e permanente da sociedade civil organizada nos Conselhos dos órgãos públicos encarregados do gerenciamento da mobilidade;
3. Que sejam especificados, com efetiva participação da sociedade civil, padrões mínimos de atendimento das empresas operadoras, incluindo redução da emissão de poluentes, acessibilidade total, informação abrangente, layout, ordenação, conforto, manutenção, limpeza, segurança, intervalo (ou tempo de espera) e lotação máxima em veículos e em instalações fixas de Transporte Público;
4. Que a tarifa máxima a ser paga pelos usuários não ultrapasse a uma despesa mensal de 6% do salário mínimo local, avaliando-se a viabilidade de adoção de Tarifa Zero;
5. Que sejam realizadas novas licitações e firmados novos contratos de prestação de serviços de Transporte Público, onde se declare vencedor o concorrente que requerer o menor valor mensal para prestar os serviços de transporte especificados pelo Poder Público, observados os padrões mínimos de atendimento;
6. Que os novos contratos de prestação de serviços de Transporte Público sejam custeados pelo Poder Público através de Fundos de Mobilidade Municipal, Estadual e Federal, os quais também estarão disponíveis para o financiamento da implantação e da renovação da infraestrutura e veículos, assim como para o gerenciamento de todo o sistema;
7. Que os Fundos de Mobilidade Municipal, Estadual e Federal venham a ser compostos não apenas pela arrecadação tarifária, mas também por novas fontes permanentes de receita, como os Orçamentos Públicos das três esferas de poder, as Contribuições de Intervenção no Domínio Econômico (CIDE), a cobrança de estacionamento em vias públicas, as multas de trânsito, o Imposto Sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA), as taxas de licenciamento, o pedágio urbano, os impostos sobre a valorização de imóveis vizinhos ao sistema de Transporte Público e as receitas acessórias das empresas operadoras de Transporte Público;
8. Que os novos contratos de prestação de serviços de Transporte Público sejam amplamente divulgados para a população e rigorosamente fiscalizados por esta e pelo Poder Público;
9. Que seja garantido ao cidadão o direito de realizar no espaço metropolitano viagens plenamente integradas, em termos físicos, operacionais e tarifários, sem impedâncias e sobretaxas, independentemente da quantidade e da diversidade dos serviços de Transportes Públicos Urbanos utilizados;
10. Que sejam estabelecidos acordos institucionais e operacionais entre empresas gerenciadoras de transporte e trânsito de municípios vizinhos, evoluindo até a implantação do gerenciamento metropolitano da mobilidade.