Recuperação judicial da SuperVia chama a atenção para a falta de equilíbrio financeiro da operação e para a má qualidade do serviço
Há quase dois anos, a SuperVia, empresa que administra a rede de transporte ferroviário de passageiros do Grande Rio, está em recuperação judicial. Contribuiu em grande parte para a crise financeira a perda de passageiros do sistema em virtude da pandemia, mas o declínio da demanda já vinha ocorrendo anteriormente. A situação é agravada pelos constantes furtos, depredações e por uma manutenção deficiente. Todo esse quadro afeta a qualidade do serviço prestado à população. A situação tem levado especialistas em transportes a discutirem o modelo de concessão e a buscarem soluções para a crise.
À época do pedido de recuperação judicial, cujo processo corre na 6ª Vara Empresarial do Rio, a empresa apresentava dívidas no montante de R$ 1,2 bilhão. O principal credor da concessionária era o BNDES, que respondia por 69% do passivo total, enquanto que a Light figurava em segundo, com 13% da soma. Para justificar a medida, foi usado o argumento de que no período de isolamento social pela Covid-19, o sistema perdeu 102 milhões de passageiros, acarretando um prejuízo de R$ 472 milhões.
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O sistema ferroviário, como todos os modais de transporte público, sofreu drasticamente com a pandemia. No entanto, esse não foi o único motivo para o recurso à Justiça. Nos últimos anos, a rede vem sendo depredada com furto de cabos, ocupação de estações pelo tráfico de drogas e outros tipos de crimes que poderiam ser coibidos com a volta da operação do Batalhão Ferroviário da Polícia Militar. A proposta faz parte das conclusões de uma CPI realizada pela Alerj, que também constatou o péssimo estado de trilhos e dormentes, bem como das estações, fruto da antiga falta de manutenção.
Para o coordenador do Fórum de Mobilidade Urbana (FMU) e membro da Divisão Técnica de Transporte e Logística (DTRL) do Clube de Engenharia, Licinio M. Rogério, apesar dos sucessivos termos aditivos de prorrogação da concessão, a relação contratual entre o estado e a empresa sempre foi problemática. Ambas as partes descumpriram suas obrigações ao longo dos anos. O principal motivo para isso, segundo ele, é a inviabilidade do modelo de concessão, calcado sobretudo na remuneração pelo número de passageiros transportados. Para ele, é preciso realizar uma nova licitação em novos moldes a fim de se alcançar um equilíbrio e a melhoria do sistema.
“O correto é a concessionária ser remunerada pelo estado pela operação, ou seja, por trecho percorrido e não pelo número de passageiros que passam pela catraca”, defende Licinio. “É importante também que o estado e os municípios se articulem para criar uma integração física e tarifária entre todos os modos de transporte, priorizando os trilhos para as maiores quantidades de passageiros e ficando os ônibus e vans como alimentadores”, acrescentou o coordenador do FMU.
Ele também aponta para a necessidade de ser cumprida a legislação que protege os direitos dos usuários, que precisam ser representados por um conselho. Com isso, a concessionária, em vez de impor suas condições, teria que cumprir critérios de qualidade propostos por esse órgão. Isso implicaria maior pontualidade, adoção de linhas expressas e maior acessibilidade, por exemplo.
“Faltam pesquisas de satisfação realizadas de forma independente e maior fiscalização por parte do poder público”, afirma o especialista.
Arquiteto urbanista e conselheiro da Agetransp (Agência Reguladora de Serviços Públicos Concedidos de Transportes Aquaviários, Ferroviários, Metroviários e de Rodovias do Estado do Rio de Janeiro), Vicente Loureiro acredita que a gravidade da crise exige uma saída negociada entre o governo do estado e a SuperVia para ser evitado que os problemas se agravem. Segundo ele, um novo termo aditivo poderia corrigir passivos deixados pelos dois lados a fim de se modelar uma concessão mais sustentável.
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Ele aponta uma redução de 33% dos passageiros dos trens metropolitanos entre 2012 e 2022 e vê nesse fenômeno também o efeito de mudanças econômicas e urbanas, principalmente na capital, que tem tido seu Centro esvaziado. Para ele, o trem representa um enorme potencial que poderia ser explorado em conjugação com empreendimentos imobiliários e comerciais. Isso ajudaria a gerar receita e reduzir o subsídio dado pelo governo.
“É preciso pensar os trens, olhando também para as mudanças comportamentais da população, que hoje procura serviços mais perto de casa. Isso só reforça o potencial imobiliário das áreas próximas às estações e a necessidade de uma maior integração entre os modais. O desafio de governança é enorme, mas há soluções a exemplo do que fazem outros países e que podem levar a uma melhor modulação tarifária”, avalia Loureiro.
A companhia, que já foi administrada pela Odebrecht, é controlada atualmente pela Gumi Brasil, subsidiária de um consórcio liderado pela japonesa Mitsui. A concessionária administra uma malha viária de 270 km em oito ramais e 104 estações distribuídas em 12 municípios. Atualmente, cerca de 300 mil passageiros são transportados diariamente por essa rede, mas esse volume já foi maior no passado. Recuperar esse patrimônio é fundamental para a retomada da economia fluminense, com respeito aos cidadãos.
Segundo Fábio Paixão, coordenador do Movimento em Defesa dos Trens (MDT), moradores de Magé, como ele, precisam hoje fazer baldeação em Saracuruna e Gramacho para se dirigir à Central, sem pontualidade e sincronicidade entre os trechos. Os usuários do ramal de Santa Cruz, por exemplo, que já contaram com trem expresso para a Central, perdem muito tempo em trajetos número muito maior de paradas. O mesmo acontece nos demais ramais.
“O estado precisa assumir a gestão dos trens. Mesmo que a operação continue com a SuperVia, é preciso um controle maior do poder público. Hoje as obrigações das concessionárias são nebulosas. Por isso, é preciso uma redefinição das atribuições de cada parte e que sejam cumpridas para que o usuário seja beneficiado“, defende Paixão.