As infraestruturas logística e tecnológica do Brasil foram construídas, desde os tempos do Império, pela prestigiada Engenharia Brasileira, cantada em verso e prosa pelo mundo afora, e pela história dos grandes desafios tecnológicos de um país continental. As nossas soluções de engenharia sempre foram projetadas e executadas por empresas brasileiras, conduzidas, na gestão e na técnica, por engenheiros brasileiros formados nas suas próprias escolas de engenharia. Essa é uma particularidade e um privilégio que poucos países em desenvolvimento puderam gozar desde sua independência.
Essa performance de sucesso em muito se deve à garantia de um padrão de qualidade, mínimo e obrigatório, na formação de engenharia no país, através das Diretrizes Curriculares Nacionais, do registro compulsório dos currículos, da fiscalização do exercício da profissão (prevista por lei), e pela governança dos conselhos regionais de Engenharia – Sistema CREA/CONFEA. Esse é um modelo único no mundo, que, por mais que seja criticado, nos trouxe até aqui com todas as vantagens de uma Engenharia Nacional e nos poupou da dependência estrangeira — que se percebe em outros países da América Latina, África, alguns países europeus e em outros cantos do mundo que não possuem um sistema de Engenharia própria, independente. Não há dúvida que o modelo brasileiro necessita de aperfeiçoamento, mas, se comparado com outros países em desenvolvimento, ele nos levou a alcançar a posição de oitava economia no mundo mesmo com os graves problemas sociais que possuímos. Portanto, há que desenvolver, inovar, avaliar e redirecionar para novos caminhos a formação em engenharia, sem perder de vista que as bases da boa Engenharia brasileira estão consolidadas e não cabem reformas radicais e desconstruções curriculares precipitadas sem fundamento científico num mundo cada vez mais intensivo em conhecimento.
As novas Diretrizes Curriculares Nacionais dos Cursos de Graduação em Engenharia (DCN-Engenharia) foram homologadas pelo Ministério da Educação (MEC) através da Resolução CES/CNE no 2 de 24/04/2019, com fundamento no Parecer CES/CNE no 1/2019 de 23/01/20191, após uma controversa discussão sobre os conteúdos mínimos que deveriam constar nelas. Os dirigentes de instituições de ensino, sindicatos e associações de profissionais, os Conselhos Regionais de Engenharia e Arquitetura (CREAs), a Associação Nacional de Engenharia (ANE) e a presidência do Clube de Engenharia constataram com surpresa que o texto de referência2, colocado em Consulta Pública3 em 24/08/2018, não propunha qualquer conteúdo básico mínimo curricular, como matemática, física, química, computação e outros. Conteúdos assim sempre são definidos, de forma explícita, em qualquer Diretriz Curricular Nacional ou internacional, de forma que essa situação esdrúxula de supressão dos conteúdos curriculares ocorreu somente na proposta das DCN-Engenharia, o CNE não propôs condições semelhante às diretrizes curriculares de outros cursos. As entidades de Engenharia resolveram se unir e buscar sensibilizar o Conselho Nacional de Educação (CNE) da importância de se manter os conteúdos mínimos para garantir o padrão de qualidade de formação de engenheiros no país.
A única Audiência Pública sobre o tema ocorreu no Clube de Engenharia em 21 de novembro de 2018, atraindo, surpreendentemente, mais de 200 participantes de todo o país, com destaque para a afluência de muitos dirigentes de escolas de engenharia, de instituições públicas e privadas. Foi quando se instituiu o Fórum Nacional de Dirigentes de Instituições de Ensino em Engenharia (Fordirenge), por estarem todos com a mesma preocupação: garantir um currículo mínimo para os cursos de engenharia. Após algumas ações, antes e depois da Audiência Pública, a Fordirenge interagiu com uma Comissão assessora do Relator, o que resultou no consenso prescrito no Art. 9o, § 1o da Resolução CNE 02/2019. O parágrafo diz que os conteúdos básicos mínimos que todas as habilitações do curso de Engenharia devem contemplar: Administração e Economia, Algoritmos e Programação, Ciência dos Materiais, Ciências do Ambiente, Eletricidade, Estatística, Expressão Gráfica, Fenômenos de Transporte, Física, Informática, Matemática, Mecânica dos Sólidos, Metodologia Científica e Tecnológica, e Química.
“Há que desenvolver, inovar, avaliar e redirecionar para novos caminhos a formação em engenharia, sem perder de vista que as bases da boa Engenharia brasileira estão consolidadas e não cabem reformas radicais e desconstruções curriculares precipitadas sem fundamento científico”.
A Resolução CES/CNE no 7/2018, que estabelece as Diretrizes de Extensão para a Educação Superior Brasileira4, também foi aprovada em 18 de dezembro de 2018 e instituiu “a previsão institucional e o cumprimento de, no mínimo, 10% (dez por cento) do total da carga horária curricular estudantil dos cursos de graduação para as atividades de extensão”. Este é um novo componente curricular na configuração do Projeto Pedagógico que se associa às novas DCN-Engenharia. Pode ser um fator positivo na construção das competências do perfil do engenheiro ou um ponto de fragilidade curricular, se não se compreender o conceito de extensão e sua indissociabilidade entre o Ensino e a Pesquisa, como previsto no dispositivo Constitucional do Art. 207 — principalmente se as instituições de ensino superior (IES) pretendem realizar as atividades de extensão sem um programa de pesquisa e um corpo docente contratado com dedicação compatível com tal atividade.
Recentemente, o MEC, através da Portaria no 2117, de 06 de dezembro de 20195, dispôs sobre a oferta de carga horária na modalidade de Ensino a Distância (EaD), em cursos de graduação presenciais, elevando de 20% para até 40% da carga horária total do curso. Isso causou muita preocupação à comunidade acadêmica e profissional, uma vez que cursos de Engenharia totalmente em EaD não são regulamentados pelo CREA.
O conceito de curso presencial, pode-se ponderar, tornou-se muito mais flexível considerando as obrigações mínimas de carga horária da Resolução CNE/ CES no 2/2019 (DCN-Engenharia), da Resolução CNE/CES no 07/2018 (Diretrizes de Extensão) e da Portaria no 2117, de 06/12/2019 (40% EaD em cursos presenciais). Ou seja, teremos um currículo mínimo de 3.600 horas em que 160 horas, no mínimo, são de estágio obrigatório, 10% são atividades de extensão (equivalente a, no mínimo, 360 horas-aula), até 40% em EaD (até 1.440 horas-aula). Essas atividades totalizam 1.960 horas-aula, restando 1.640 horas-aula (45,6% do curso) em aulas/atividades do curso presenciais (isso se forem limitadas ao máximo de 10% as atividades de Extensão). Considera-se, por outro lado, que a Portaria do MEC pode ser uma oportunidade de elevar as atividades presenciais a uma hierarquia de maior interação docente-discente, e automatizar o que é rotina na atividade de ensino. No entanto, para que esse empreendimento seja realizado com qualidade, é preciso investimento em ensino de graduação, em ferramentas de computação, em tutoria. A qualidade do ensino poderia ser muito melhor, mas a percepção geral é que o real objetivo é reduzir custos com docentes. Assim, a qualidade deixa de ser comparável aos melhores centros de ensino de engenharia do mundo.
“O desenvolvimento econômico sustentável e socialmente justo de um país depende do desenvolvimento da Engenharia Nacional, fundamentada na formação de engenheiros inovadores, empreendedores de alta tecnologia, líderes dos grandes projetos de desenvolvimento, maestros das diversas expertises necessárias para atender às necessidades humanas e sociais prioritárias do povo de seu país. Este é o futuro que se almeja forjar nas escolas de engenharia brasileiras”.
A existência de uma estrutura curricular mínima norteia o desenho curricular mínimo aceitável, podendo-se replicá-lo institucionalmente e guardando algumas linhas de semelhança. Foi assim que se construiu ao longo das décadas, similarmente, os currículos internacionais de sucesso das escolas de engenharia de excelência nos grandes centros de inovação no mundo, como as melhores escolas do Ranking Norte-americano (Best Engineering Schools6). Essa parametrização preserva um alto padrão de qualidade na formação e proporciona entre os cursos de engenharia a facilidade de revalidação de créditos no intercâmbio de estudantes, além de transferências de curso com o reaproveitamento de créditos.
Por outro lado, percebe-se um movimento no país, e que vem contagiando algumas escolas, de copiar experiências prematuras, como a do Franklin W. Olin College of Engineering, que apontam para a desconstrução de currículos. A alegação é de que se trata de uma proposta inovadora a simplificação curricular e a busca de melhor desempenho, menor evasão e retenção, subtraindo conteúdos mais hard do aprendizado de engenharia. Na verdade, trata-se de uma extremada simplificação curricular, caminhando na contramão do desenvolvimento tecnológico e dos negócios de inovação — uma fragilidade que é permitida numa leitura limite das alterações da regulamentação recente do CNE e MEC.
Os avanços das DCN-Engenharia 2019 ficaram, portanto, nas propostas inovadoras do Projeto Pedagógico, onde destacam-se: o estímulo ao uso de metodologias para aprendizagem ativa como forma de promover uma educação mais centrada no aluno, a articulação do ensino com a pesquisa e a extensão, a previsão de sistemas de acolhimento e nivelamento, e o desenvolvimento de mecanismos de
integração da universidade com as empresas.
O desenvolvimento econômico sustentável e socialmente justo de um país depende do desenvolvimento da Engenharia Nacional, fundamentada na formação de engenheiros inovadores, empreendedores de alta tecnologia, líderes dos grandes projetos de desenvolvimento, maestros das diversas expertises necessárias para atender às necessidades humanas e sociais prioritárias do povo de seu país. Este é o futuro que se almeja forjar nas escolas de engenharia brasileiras.
Referências
1 Resolução CNE/CES No. 2/2019
2 Texto de Referência da Proposta das DCNs Consulta Pública
4 Resolução CNE/CES no. 7/2018 –Diretrizes de Extensão