Regime de urgência para privatizar a Eletrobras

Regime de urgência para privatizar a Eletrobras

Regime de urgência para privatizar a Eletrobras
Jornal do CE - fev/2021

A proposta da atual Medida Provisória que aponta para a privatização da Eletrobras é parecida com o Projeto de Lei no 5877, enviado pelo governo em 2019 e cuja tramitação não andou. Relembra, também, a tentativa feita durante o governo de Michel Temer. A diferença é que a MP pressupõe que o Congresso analise a proposta em até 120 dias, prazo considerado muito curto diante da dimensão da empresa. “Esse projeto é ainda pior por ser via Medida Provisória, que é um instrumento para questões urgentes e relevantes. E a privatização da maior empresa de energia elétrica da América Latina não é questão urgente. O instrumento da MP é ilegal e inconstitucional para este caso”, afirma José Drumond Saraiva, engenheiro aposentado da Eletrobras, ex-diretor da empresa entre 2003 e 2007 e ex-conselheiro do Clube de Engenharia.

“Se privatizado, o Brasil será o único país no mundo que tem base hidrelétrica a privatizar seu sistema. Será um vexame, uma vergonha”, critica Roberto Pereira D’Araújo, engenheiro eletricista, pesquisador no Centro de Pesquisas de Energia Elétrica (Cepel), da Eletrobras, e fundador do Instituto de Desenvolvimento Estratégico do Setor Elétrico (Ilumina).

Já Artur Obino, pesquisador sênior da Coppe/UFRJ, ex-assessor da diretoria da Eletrobras e também
conselheiro do Clube de Engenharia, defende que é preciso entender que o setor privado não tem expertise técnica suficiente para administrar as grandes barragens de usinas hidrelétricas. “O serviço de energia elétrica é uma concessão pública para atender a todos os brasileiros e os resultados têm que ser medidos pela sua efetividade social e não somente financeira”, argumenta.

A MP prevê que a União aumente sua oferta de ações da Eletrobras no mercado financeiro, reduzindo de 60% até se tornar acionista minoritária. Até agora, deputados e senadores já protocolaram 570 emendas à MP, boa parte tratando da manutenção do emprego dos atuais servidores. De imediato, o documento enviado pelo Governo Federal já autorizou o BNDES a iniciar estudos sobre o modelo de privatização da estatal.

Pilar do desenvolvimento nacional

Artur Obino explica que as dimensões da estatal trazem para ela uma importância única para a soberania
nacional. “A Eletrobras participa de um sistema elétrico continental dentro do Brasil. Neste sistema, a sua demanda é atendida, em mais de 95%, por um Sistema Integrado Nacional (SIN) que conecta grandes fontes de gerações hídricas das maiores bacias hidrográficas brasileiras, fontes térmicas localizadas em todas as regiões brasileiras e fontes alternativas, como as eólicas, solar e biomassa”. Atualmente, a Eletrobras possui 30% do parque de geração nacional e quase 50% da transmissão de energia, conectando as fontes energéticas no SIN. “Trata-se da principal constituinte da espinha dorsal do sistema brasileiro, inédito pela sua dimensão continental e também por integrar diversas bacias com variáveis climáticas complementares, principalmente quanto à dimensão pluviométrica”, explica Obino.

“A privatização é uma traição ao povo brasileiro, ao setor elétrico brasileiro, aos interesses nacionais. Não podemos deixar de falar de soberania. A Eletrobras não só foi a empresa indutora, junto da Petrobras e outras, da industrialização no Brasil. Ela também contribuiu para a formação do parque industrial, de bens de capital e indústria de base. Quase todos os tipos de equipamentos para fabricação de usinas hidrelétricas e linhas de transmissão eram feitos no país”, explica José Drumond Saraiva.

Já Roberto Araújo traça um paralelo do sistema brasileiro com o de outros países, informando que o Brasil desenvolveu soluções cobiçadas pelo mundo inteiro.”O Brasil tem um sistema que consegue trazer uma quantidade enorme do Sul, transferir para o Sudeste, pro Nordeste ou para o Norte. É um negócio que, na China, deixa os chineses com os olhos arregalados, porque eles não têm como fazer isso que conseguimos aqui, que é essa transferência de energia entre regiões por sermos um país de grandes latitudes, o mais comprido do planeta. A Eletrobras soube aproveitar isso”, explica.

O pesquisador argumenta, ainda, que a privatização vai contra o que outros países têm feito com seus sistemas. “O Brasil participa de um grupo muito seleto de países que têm como base da energia elétrica a hidrelétrica, junto de China, Canadá, Rússia, Índia, Suécia, Noruega e Venezuela”, esclarece Araújo, lembrando que todos são preponderantemente estatais. “Nos EUA, que também possuem grandes usinas, as maiores são administradas pelo United States Army Corps of Engineers, uma entidade do exército americano. A China está comprando usinas brasileiras. Só tem uma província no Canadá com sistema privatizado, o resto é todo estatal. A Índia é estatal. A Noruega é 99% hidrelétrica e é toda estatal. Se privatizado, o Brasil será o único país no mundo que tem base hidrelétrica a privatizar seu sistema”.

Resiliência do sistema em risco

Em novembro de 2020, o estado do Amapá viveu um apagão de quase um mês — um caos de dimensões ainda mais dramáticas diante da atual pandemia de Covid-19. A distribuição de energia local, administrada por um grupo financeiro estrangeiro, revelou-se completamente despreparada para lidar com o problema. A situação acendeu o alerta vermelho sobre as novas investidas de privatização da Eletrobras. Os especialistas ouvidos pelo Clube de Engenharia trazem diferentes preocupações sobre o tema.

“As empresas estatais que constituem a Eletrobras (Furnas, Chesf, Eletrosul, Eletronorte, Eletronuclear e 50% da Itaipu Binacional) têm uma expertise com alto grau de excelência da operação e manutenção de seus ativos elétricos. Em eventos como apagão de energia elétrica, esta expertise é utilizada para solução do problema. As empresas privadas não mantém nos seus quadros permanentes estas equipes especializadas, pois a lógica é cortes dos custos de pessoal e terceirização maciça das equipes, com objetivo de melhoria dos seus resultados financeiros”, esclarece Artur Obino.

Roberto Araújo relata que, nas últimas duas décadas e meia, a administração da Eletrobras passou por períodos de pouco investimento em expansão própria, focando em parcerias com o setor privado, além de privatizações pouco estratégicas. “A Eletrobras investiu mais em usinas privadas nas quais ela tinha participação minoritária que nas usinas próprias. Quando a imprensa fala que o setor privado é majoritário, parece que são investimentos privados, mas não é verdade. Estamos em um nível de desinformação muito grande. Os dados mostram que de 1992 a 2003 não houve expansão, por exemplo”, explica, e acrescenta que as privatizações que ocorreram nos anos 1990 não garantiram, por exemplo, um equilíbrio de atendimento entre regiões mais rentáveis e com maior infraestrutura e regiões mais vulneráveis, como estados do Norte. O setor privado, segundo Araújo, não tem capacidade hoje para, sozinho, administrar todo o sistema elétrico nacional. “O BNDES chegou a financiar 80% da construção de uma usina hidrelétrica. Então o setor privado não tem essa pungência, essa independência do Estado que se está imaginando”, explica.

A Eletrobras administra barragens de usinas hidrelétricas nas maiores bacias hidrográficas do país, e existem dúvidas se o setor privado seria capaz de realizar o mesmo trabalho de for ma segura. “São 47 barragens. Deixar que sua administração seja feita pelo mercado financeiro, por especulação financeira, é um risco para o país”, adiciona José Drumond Saraiva, lembrando que foi exatamente nas mãos de um grupo de investimento, sem expertise técnica, que foi deixada a distribuição de energia no Amapá. “Para dourar a pílula, a MP traz pontos sobre preservação de bacias hidrográficas. Mas isso é apenas para fazer com que a medida receba apoios de grupos específicos numa eventual votação em 60 ou 120 dias no Congresso”, completa ele.

“Outro absurdo é a MP garantir a existência do Centro de Pesquisas de Energia Elétrica (Cepel, criado em 1974) por quatro anos”, critica Drumond Saraiva. “Embora isso não seja muito diferente do que o governo tem feito com todos os centros de pesquisa do país, não há dúvida de que é um projeto de destruição. O Cepel é fundamental em vários aspectos para o sistema elétrico nacional: além de ser responsável por todos os softwares que fundamentam o equilíbrio tarifário e o intercâmbio de energia em um sistema interligado como o brasileiro, tem importância estratégica em termos de execução de ensaios de equipamentos em alta e extra alta tensão”.

Consequências desastrosas — e caminhos possíveis

“Podemos prever consequências econômicas seríssimas para todas as classes de consumidores”, dimensiona Drumond Saraiva. “As que são hoje concessionárias da Eletrobras, como Eletronorte e Chesf, vão virar produtores independentes de energia. Vão passar a comercializar sua energia em outros moldes e não mais em contratos de longo prazo com distribuidoras, por exemplo. Isso só vem atender aos interesses das empresas financeiras que operam na área de comercialização de energia. As tarifas vão subir, e muito, para os consumidores residenciais, comerciais e indústrias”, alerta.

“A Eletrobras, atualmente, está lucrando cerca de 20 bilhões de reais. Evidentemente que uma parte disso é pela redução dos investimentos. O Wilson Ferreira Junior (ex-presidente) foi para lá para mandar gente embora, e o resultado é que a Eletrobras hoje tem metade dos funcionários que tinha — ela tem a menor quantidade de empregados por megawatt/hora instalado. Perdeu-se muito da expertise técnica, já que
a maioria dos funcionários estavam próximos da aposentadoria”, critica Araújo, que também cita falhas no sistema de regulação e fiscalização do setor no país. “O Brasil tem uma agência reguladora, mas não fiscalizadora. Os EUA têm agência reguladora federal que é o triplo da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e os estados têm agências próprias. O estado regulador americano, ao contrário do que as pessoas pensam, é enorme. No Brasil não acontece isso”, diagnostica ele.

Além de garantir que o Congresso não aprove a Medida Provisória enviada em fevereiro, Roberto Araújo indica caminhos para o fortalecimento da Eletrobras. “Com base no lucro que a empresa tem tido nos últimos três anos, precisamos reconstruir a Eletrobras. Ela pode se endividar com juros menores e investir em expansão, já que até então estava se endividando mais do que o retorno dos investimentos realizados”. Os cortes de funcionários e a perda de expertise técnica, segundo ele, também precisam ser revertidos para que essa expansão seja responsável e segura. “O grande desafio, hoje, é a entrada de novas fontes de energia, solar e éolica. Quando ninguém falava disso, o Cepel já tinha pesquisas sobre. Então deixar o Cepel morrer à míngua, com a MP garantindo sua receita apenas por 4 anos, é perder totalmente a noção das transformações do futuro”, conclui.

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