Introdução
Medida é contestada pelas big techs e pelos provedores, que entregaram estudos à ANATEL apontando riscos econômicos e de quebra da neutralidade da rede
Técnicos da Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL) terão que se debruçar sobre longos estudos e pareceres que tratam da eventual cobrança de uma taxa extra para big techs que concentram a maior parte do tráfego na infraestrutura dos serviços de telecomunicações. Depois de quatro meses e meio de uma controversa tomada de subsídios, o órgão regulador recebeu um grande volume de informações, que vão orientá-lo para propor possíveis alterações nas relações entre as teles e provedores de acesso à internet e provedores de conteúdo. Ao todo, foram 62 perguntas em consulta pública encerrada no fim de maio, mas a questão central é se mídias sociais e plataformas de Streaming devem pagar pelo uso das redes conforme ultrapassarem limites de transferências de dados.
A discussão sobre a cobrança da chamada fair share (participação justa) já vem sendo travada no exterior, principalmente na União Europeia. Empresas de telecomunicações alegam que as big techs faturam alto com o tráfego de dados, sendo majoritárias em uso de redes, sem contribuírem com a sua manutenção. As estimativas são de que no Brasil e em muitos outros países, a Meta, Alphabet (Google) e a Netflix sozinhas respondam por mais de 50% da taxa. Se nessa conta for incluída a empresa de nuvem Akamai e a rede social TikTok, o volume chegaria a 66%, no caso brasileiro.
A proposta da ANATEL é verificar em que medida não só há uma distribuição injusta dos encargos para a manutenção do sistema, como avaliar uma eventual “competição desiquilibrada”, que beneficiaria os “grandes usuários”.
As empresas de telecomunicações, representadas pela Conexis Brasil Digital, elaboraram uma proposta de taxação em que passariam a contribuir os usuários cuja participação no tráfego ultrapasse individualmente os 5%. A entidade encomendou um estudo à consultoria Alvarez & Marsal, dos EUA, que apontou para a “relevância e a viabilidade de se estabelecer uma cobrança pelo uso intensivo das redes e serviços de telecomunicações, a ser arcada pelos maiores usuários industriais desses recursos que de fato originam essa falha e, no limite, corrompem a sustentabilidade das redes”.
A proposta é de criação de uma pactuação entre usuários e teles e, em caso de conflitos, a ANATEL exerceria o poder arbitragem. O estudo apontou como principais impactados pela cobrança a Meta (dona do Facebook, Instagram e WhatsApp) e a Alphabet (Google), que responderiam por 20% e 19% respectivamente do tráfego na rede fixa, estrutura também muito demandada pela Netflix (11%) e Akamai (13%). Já no caso da rede móvel, a Meta concentraria segundo o relatório 48% do uso, a Alphabet 15%, deixando outras três com participação próxima a 5%.
A proposta da fair share, no entanto, não é vista como justa por outras entidades. O Instituto Tecnologia e Sociedade (ITS Rio) e a ISOC Brasil classificam a eventual medida como um “pedágio na Internet“. Segundo elas, a cobrança pode trazer riscos para o ecossistema digital, tendo em vista a possibilidade de encarecimento dos serviços e transferência de custos para os usuários. De acordo com as entidades, quem mais seria penalizada seria a parcela da população já marginalizada no acesso à rede. Elas também acreditam que a medida vai tornar a internet no Brasil mais lenta e afetar a liberdade de conteúdo.
Segundo o ITS Rio e a ISOC, “Pela proposta, as grandes operadoras de telecomunicação passam a ganhar duas vezes; tanto no acesso à Internet (nós, os usuários finais, quando pagamos por nossos planos de acesso), como pelos agentes que distribuem serviços e conteúdos pela Internet (aquilo que nós, usuários, queremos de fato consumir)”.
A proposta das teles também foi atacada por outras entidades, que apresentaram estudos condenando a taxação. A Aliança pela Internet Aberta, que reúne big techs como Google, Meta, Amazon, Tik Tok e Netflix, ao lado de pequenos provedores da Abranet e Abrint, é contra a proposta de fair share. Eles também consideram a cobrança uma forma de “pedágio” e apontam para riscos de quebra da neutralidade da internet no Brasil.
A entidade encomendou estudos sobre o tema a economistas e os entregou à ANATEL. Entre os relatórios, um avalia que não há risco de ocorrer nos próximos anos uma exploração no tráfego de dados nas redes de telecomunicações, o que descartaria uma hipótese de colapso por excesso de demanda, que cresceria no máximo a 11,2% ao ano.
Outro estudo trata do desempenho econômico das teles para fazerem frente aos investimentos necessários em infraestrutura. Segundo esse relatório, o retorno médio dos investimentos (ROIC) das três maiores operadoras do Brasil (Vivo, Claro e TIM) foi de 7,09% em 2023 e apresentou média de 6,56% nos últimos dez anos. Esses dados comprovariam a capacidade financeira das empresas, diante também do seu potencial de crescimento.
Um terceiro estudo, assinado pelos economistas José Guilherme Reis, Marcelo Guaranys e pelo professor Lisandro Granville, do Instituto de Informática da UFRGS e ex-presidente da Sociedade Brasileira de Computação, aponta que os provedores de conteúdo já participam dos investimentos em infraestrutura de redes. O documento cita o exemplo dos cabos submarinos da Google, que gerariam um potencial econômico de US$ 124 bilhões no país até 2027.
“Não é verdade que três grandes operadoras carregam o ecossistema de infraestrutura digital nas costas. Atores públicos e privados contribuem com pontos de troca de tráfego, CDNs, cabos submarinos, datacenters”, ressalta o diretor executivo da Aliança pela Internet Aberta, Alessandro Molon.
Fair share em outros países
No entanto, no calor dessa discussão, algumas iniciativas já começam a ser esboçadas no sentido abrir caminho para a contribuição na melhoria da infraestrutura de telecomunicações através da participação financeira por parte das big techs. No Canadá, a lei Online Streaming Act pretende destinar 5% da arrecadação local das plataformas de Streaming para melhoria da transmissão de conteúdo no país, com uma arrecadação anual estimada de cerca de 200 milhões de dólares canadenses. Na Alemanha, após uma disputa judicial, a operadora de telecomunicações Deutsche Telecom ganhará da Meta, por utilização de suas redes para transporte de dados, o equivalente a cerca de 20 milhões de euros, por um período retroativo a três anos, abrindo um importante precedente nas disputas do fair share na comunidade europeia.
Como se pode perceber, o debate em torno do tema está em andamento levando a argumentações de ambos os lados, com a preocupação de não imputar ao usuário final encargos de qualquer natureza, que possam vir a eventualmente restringir a demanda pelos serviços.