O câmbio e a tecnologia brasileira

A lei do câmbio contra a tecnologia nacional

Proposta pelo governo anterior, a Lei nº 14.286/2021 aumenta a assimetria tecnológica do País vis a vis os países centrais. Sob o pretexto de modernização e alinhamento internacional,  ela redefine o marco legal do câmbio no Brasil, mas de fato representa, na prática, um passo em direção ao aprofundamento de nossa dependência estrutural. Trata-se de uma reforma feita sob medida para os interesses do sistema financeiro e das corporações multinacionais, que podem transitar com ainda mais liberdade por um país sem essas defesas tecnológicas em relação ao cambio.

A nova lei liberou a remessa para despesas relacionadas a royalties, assistência técnica, licenciamento de softwares, know-how e serviços vinculados à tecnologia.  Antes era limitada de 1% a 5% da receita liquida (Portaria 436/58). Quando se trata despesa paga por filial a matriz no exterior, há um duplo impacto contra o país: o da redução do lucro tributável pois tais despesas são dedutíveis dele,  e saída de divisas em moeda forte. Ou seja, remessa de lucros disfarçada de royaties. Esse tipo de flexibilização, quando ocorre em países com uma base tecnológica consolidada e políticas industriais ativas, pode até fazer sentido. Mas no Brasil — 50º colocado no Índice Global de Inovação, com ainda baixa transformação do conhecimento científico em produtos e serviços — ela significa abrir as portas da soberania para que o capital estrangeiro leve embora o que temos de mais valioso: o conhecimento, afinal somos a 14ª nação em produção científica no mundo.

Embora a Nova Industria Brasil almeje um desenvolvimento autônomo, ainda estamos pagando o preço de políticas liberais do governo anterior. Trata-se de uma assimetria brutal. Enquanto os países centrais — como Estados Unidos, China, Alemanha ou Coreia — mantêm barreiras estratégicas para proteger setores tecnológicos sensíveis, o Brasil segue desregulando, liberalizando e terceirizando sua política  cambial afetando dramaticamente o conhecido déficit comercial/ A nova legislação cambial em vigor desde dezembro de 2022 escancara a economia brasileira a remessas bilionárias sem exigir qualquer contrapartida de conteúdo local, transferência de tecnologia ou investimento produtivo em território nacional.

Na prática, nossas startups deeptech — aquelas que nascem de pesquisa científica intensiva — correm o risco de se tornarem trampolins para conglomerados estrangeiros. Após se associarem a grandes grupos globais, muitas vezes por necessidade de capital, veem seu conhecimento patenteado fora do país, sua operação vendida via fusões e aquisições (M&A), e seus lucros remetidos disfarçados como royalties para as matrizes. A nova lei não apenas permite, como naturaliza esse processo.

Tudo isso ocorre enquanto a balança de pagamentos em tecnologia do Brasil é cada vez mais negativa.  O que poderia ser aquisição de tecnologia necessária. Mas dados do Banco Central apontam que as despesas com royalties, licenças e serviços técnicos vêm crescendo de forma acelerada nos últimos anos, sem que haja um movimento equivalente de receitas. O déficit tecnológico brasileiro só cresce, e a Lei 14.286 já está contribuindo para ampliá-lo. A remessa por pagamento de royalties pulou de US$ 8 bilhões em 2020 para US$ 10 bilhões em 2024, indicando dependência persistente.

O Brasil que almeja industrializar-se com base em ciência, tecnologia e sustentabilidade — como propõe a Nova Indústria Brasil — necessita condicionar remessas a investimentos reais, proteger empresas inovadoras em áreas estratégicas, como as startups deep techs e criar exigências regulatórias como fazem os países que não abriram mão da soberania.

É imperioso quebrar o círculo vicioso de um pais periférico: exportador de commodities e importador de conhecimento. Um país onde inovação não pode ser sinônimo de dependência bem remunerada como propõe a Lei 14.286/21. Essa nova lei cambial não é apenas um erro técnico — é uma rendição política disfarçada de reforma que fo herdada de um governo sabidamente submisso ao capital financeiro e inimigo de uma indústria tecnológica e de seu ecossistema.

Dai a necessidade de uma politica nacional de apoio às startups deep tech,  não apenas com financiamento, mas com salvaguardas para defende-las de aquisições predatórias ao País.

Publicado na Tribuna da Imprensa

Sobre o Autor

Fernando Peregrino

Fernando Peregrino

Bio: Fernando Otavio De Freitas Peregrino (Belém, PA, 22 de abril de 1950)[1] é engenheiro e político brasileiro. É Mestre e Doutor em Engenharia de Produção pela COPPE/UFRJ. Foi presidente da FAPERJ em duas ocasiões e Secretário de Ciência, Tecnologia e Inovação do governo do Rio entre 2003 e 2007. Atualmente é Assessor da FINEP e vice-presidente do Clube de Engenharia do Brasil.

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