Sistema de software livre desenvolvido em projeto de extensão fortalece a agricultura familiar

Ferramentas digitais desenvolvidas na UFRJ se transformam em apoio direto para agricultores familiares, fortalecendo a logística, produção e autonomia de agricultores Brasil afora

Em um país onde a comida que chega à mesa passa, quase sempre, por longas cadeias de intermediação, a agricultura familiar continua lutando para se manter viva, sustentável e capaz de abastecer comunidades inteiras. No entanto, entre o plantio e o prato, existe um desafio silencioso: a gestão. Organizar pedidos, prever colheitas, evitar desperdícios, garantir logística, são tarefas complexas que, sem apoio tecnológico, roubam tempo e a energia de agricultores que já trabalham em jornadas exaustivas. É justamente nesse ponto que entra o projeto de extensão Tecnologias da Informação e Comunicação, Democracia e Movimentos Sociais (Ticdemos) da UFRJ vinculado ao Núcleo de Solidariedade Técnica (Soltec/Nides/UFRJ), que desde 2018 desenvolve e adapta ferramentas digitais de código aberto para fortalecer grupos de agricultura familiar, movimentos agroecológicos e iniciativas do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). 

A ponte entre universidade e território vai além da tecnologia: nasce de uma visão política de democratização do conhecimento. “Meu primeiro contato com computação aplicada a movimentos sociais foi em 2006. Na época, comecei a perceber que a tecnologia também pode — e deve — servir a outros públicos”, conta Celso Alexandre Alvear, professor do Programa de Pós-Graduação de Tecnologia para o Desenvolvimento Social (PPGTDS) e coordenador do projeto. Ele relembra o trabalho inicial em um portal comunitário na Cidade de Deus, no Rio de Janeiro, experiência que o levou a repensar o papel social de sua área de estudos: a engenharia. A partir dessa trajetória, o Soltec identificou uma demanda urgente: sistemas digitais que organizassem pedidos de cestas agroecológicas — que permite ao agricultor colher apenas aquilo que o consumidor já encomendou, evitando perdas e garantindo renda justa.

O projeto vai na contramão do que geralmente é desempenhado pela Engenharia. Sua lógica é social e política, não mercadológica. “A engenharia sempre foi ensinada a desenvolver software para atender ao gerente, ao dono da empresa. Nosso foco são os trabalhadores. São os agricultores. Eles são o centro da tecnologia que produzimos”, afirma Celso. 

Da teoria ao campo: soluções práticas

Explicar tecnologia para quem não é da área nem sempre é simples e foi justamente pensando na clareza que o professor recorreu a um exemplo que desarma qualquer dificuldade: cozinha. “A forma mais simples de pensar um software é imaginá-lo como uma receita de bolo”, diz ele. “No lugar dos ingredientes e do modo de preparo, temos listas de comandos que dizem ao computador o que fazer passo a passo”, completa. Ao lado do professor, está Larissa Bral, estudante de Engenharia Eletrônica e Computação e uma das programadoras do projeto, elo essencial entre a linguagem técnica e a realidade dos agricultores. Para ela, tecnologia é uma ferramenta que precisa caber na vida real. “Nós sempre pensamos o software como ferramenta tecnológica. Pode ser um aplicativo, pode ser um site, mas, acima de tudo, tem que ser simples de usar e atender à lógica da agricultura familiar”, detalha a estudante.

Foi com essa filosofia que surgiu o Sementes, plugin (componente de software que adiciona uma funcionalidade específica a um programa maior, como um navegador web ou um aplicativo de desktop, sem alterar o código principal do programa original) desenvolvido para adaptar o WordPress (plataforma que permite abrigar sites) e permitir que lojas virtuais funcionem em ciclos, como exige o calendário agrícola.

Do cultivo ao clique

Celso explica que a lógica industrial não se aplica ao mundo rural. “Quando você compra um celular pela internet tem mil unidades em estoque na loja. Mas um alface não funciona assim. Ele precisa ser colhido no mesmo dia em que vai ser vendido”, afirma o professor. “Se ficar 24 horas parado, resseca, perde qualidade e vira prejuízo”. Por isso, o Sementes organiza o sistema de encomendas de forma a abrir pedidos por poucos dias, calcular automaticamente o total solicitado de cada produto, gerar relatórios individuais por agricultor e minimizar perdas, otimizando a colheita. “Nossa ferramenta garante que o agricultor só colha o que de fato já está vendido. Isso evita desperdício e trabalho dobrado”, detalha o professor.O projeto conta com recursos acessíveis. Larissa destaca que não há a necessidade de ter formação ou entendimento técnico em tecnologia para utilizar o sistema, o que democratiza as soluções. A meta é reduzir o medo da tecnologia e fazer com que todos consigam operar o sistema sem depender de especialistas.

O Sementes é um software livre, o que faz com que todos os usuários possam não apenas baixar mas também modificar e aprimorar a ferramenta. Segundo Celso, nesse modelo, o conhecimento é público, como a ciência deve ser. O plugin já está em uso em iniciativas do Pará, Goiás, Rio Grande do Sul e São Paulo, além de coletivos do MST no Rio de Janeiro.

Trabalhar na ponta da comercialização revelou um novo obstáculo: a produção. “Percebemos que não adiantava ter um site perfeito se a escala e a variedade de produção eram limitadas”, explica o professor. Sendo assim, eles começaram a produção de um aplicativo de planejamento e controle da produção. A nova ferramenta, um aplicativo chamado Roça, permite que agricultores registrem o que plantam, o que colhem, para quem entregam, assim como ciclos de produção e previsões de disponibilidade. É uma solução integrada, pensada para fortalecer a cadeia do campo ao consumidor.

Resultados colhidos 

A adoção de sistemas digitais em feiras agroecológicas pelo país tem produzido resultados consistentes. Experiências como os sites da Terra Crioula — nome que o coletivo Alaíde Reis (Piraí/RJ) do MST-RJ dá para sua comercialização própria de cestas agroecológicas — e da Feira Interinstitucional Agroecológica de Goiás mostram que ferramentas de gestão aumentam vendas e fortalecem redes de consumidores conscientes. Antes do sistema, o faturamento médio mensal de uma das feiras de Goiás acompanhadas era de R$ 3.860,83. Com o sistema, saltou para R$ 5.566,00 por edição, indicando maior procura por alimentos ecológicos e regionais.

O crescimento também aparece no número de pedidos: em aproximadamente seis meses, o Grupo de Consumo Responsável Gruca (PA) dobrou sua média, passando de 40 para 80 pedidos por ciclo. O dado, mais do que expressivo, evidencia que a tecnologia aproxima consumidores e produtores, e amplia o acesso a alimentos saudáveis, o que hoje é o elemento central nas políticas de soberania alimentar. “Esse tipo de mudança não é só organizacional”, explica Celso. “É econômica, social e política. Quando o agricultor vende mais e perde menos, isso fortalece todo o território.”

A tecnologia não só facilita pedidos, ela também transforma a rotina de quem trabalha no campo. Um exemplo marcante é o de Noel Gonzaga, responsável pela organização do Gruca no Pará. Antes da automação, ele passava horas da madrugada somando manualmente produtos, editando planilhas e separando listas por agricultor. Hoje, o sistema gera tudo em segundos. Ao ser questionado sobre o que faz com o tempo que passou a economizar, Noel respondeu, sem hesitar: “Eu tenho dormido mais cedo”. A frase sintetiza o que o Ticdemos defende como princípio: tecnologia deve ser qualidade de vida e não algo que sobrecarregue o trabalhador, o que facilmente acontece em modelos convencionais de gestão. Além disso, como o sistema organiza dados por agricultor, facilita a prestação de contas, o planejamento de colheita e o repasse financeiro a cada família produtora.

Organizando entregas de políticas públicas

Outra frente em expansão é o desenvolvimento de ferramentas que facilitem o acesso dos agricultores a políticas como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), que garantem compras institucionais para doação ou alimentação escolar. “Esses programas pagam preços acima do mercado e são fundamentais para a agricultura familiar. Estamos criando aplicações que ajudem na gestão das entregas, no cumprimento dos editais e no recebimento dos pagamentos”, explica Celso. 

Além dos softwares, o grupo produz manuais detalhados, tanto de instalação quanto de uso. Para Larissa, isso é parte essencial do processo.“Queremos democratizar a tecnologia. Nosso objetivo é que agricultores tenham autonomia para criar e gerenciar seus próprios sites”, afirma a estudante. “Não queremos que eles dependam de nós ou de empresas externas.”

O objetivo do grupo inclui integrar todas as ferramentas (produção, comercialização, compras institucionais) e, principalmente, abrir caminho para que estudantes criem cooperativas e negócios próprios. “A universidade não dá conta de todas as demandas. Precisamos que estudantes formem cooperativas e possam viver disso, receber de forma justa, prestar serviço a coletivos agroecológicos”, projeta o professor. “Nosso papel é dar o pontapé inicial.”

Ao unir tecnologia acessível, trabalho colaborativo e o compromisso político de fortalecer a agricultura familiar, o Ticdemos coloca a UFRJ dentro dos assentamentos, das feiras, das cozinhas comunitárias e das redes de consumo responsável.

Mais do que softwares, o projeto produz autonomia. E, nesse processo, forma profissionais que entendem que tecnologia não é um fim, mas sim, um meio para fortalecer vidas, territórios e modos de existir. Se a agricultura familiar é responsável por 70% dos alimentos que chegam às mesas brasileiras, iniciativas como essa mostram que o futuro do país passa, inevitavelmente, pela terra.

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