Por Estellito Rangel Junior

Chefe da DEI – Divisão Técnica de Engenharia Industrial

 

            Numa época em que a mídia propala que “não há engenheiros no mercado” e que “a importação de mão-de-obra especializada é a única saída”, cabe uma reflexão sobre as responsabilidades dos empregadores, uma vez que eles já deveriam ter entendido que não se encontram profissionais prontos nas universidades.

            É evidente que existe uma limitação na oferta, porém apenas em alguns segmentos muito específicos, como a engenharia naval voltada ao segmento de exploração de petróleo offshore; nas demais áreas o Brasil tem condições de formar mão de obra acima da demanda, e com qualidade.

            Porém cabe a cada empresa, de acordo com as especificidades de seu negócio, investir na formação e na adequação dos seus profissionais. E esta formação, mesmo que em certas áreas necessite incluir o aprendizado de técnicas empregadas no exterior, não poderá simplesmente ficar baseada no “copiar e colar” da tecnologia, pois será imprescindível a adequação da mesma para nossas necessidades. Esta é a função primordial do engenheiro: equacionar um dado problema e oferecer a melhor solução, harmonizada com os recursos disponíveis.

            Podemos dizer que o processo de industrialização no Brasil impossibilitou a criação de uma demanda técnico-científica interna por parte das empresas privadas, visto que, historicamente, sempre pareceu mais vantajoso ao setor produtivo importar tecnologias que já foram testadas e deram bons resultados nos países mais industrializados.

            E uma ferramenta importantíssima para o engenheiro cumprir sua missão são as normas técnicas. Elas estabelecem os requisitos mínimos para que a solução apresentada tenha o desempenho esperado.

 

Voluntárias ou compulsórias?

            Até algum tempo atrás as normas técnicas eram consideradas voluntárias, porém como passaram a ser chamadas por dispositivos legais, como a Lei de Defesa do Consumidor e a Norma Regulamentadora NR-10 do Ministério do Trabalho e Emprego, nesta condição mudaram seu “status” para compulsórias.

            Com este novo enquadramento, aumentou a responsabilidade não só dos usuários, mas também dos responsáveis pela elaboração dos textos normativos.

 

As normas “jabuticabas”

            Muitas vezes ouvimos críticas que nossas normas técnicas são “jabuticabas”, ou seja, definem requisitos que só existem aqui, “exóticos” ou mesmo em “descompasso com o que há no mundo”. Na verdade, quem emite tais comentários não sabe o que é uma norma Nacional, pois ela tem que estar alinhada com a capacidade produtiva do país e as necessidades da sociedade.

            Por que estas pessoas não criticam, por exemplo, a Inglaterra por usar plugues e tomadas que possuem um padrão específico? Elas deveriam também saber que a OMC – Organização Mundial do Comércio - não impôs sanções à Inglaterra por ela insistir que seus carros tenham o volante do lado direito. Não seriam exemplos de “jabuticabas inglesas”?

            Ora, as nações desenvolvidas não abrem mão de sua soberania para definir o que pode ser vendido em seus territórios, e entendem claramente que as normas IEC (International Electrotechnical Commission), e ISO (International Organization for Standardization), são apenas sugestões para elaborar suas normas nacionais, como aliás encontra-se explícito no terceiro parágrafo da introdução de toda e qualquer norma IEC.

            Não poderia ser de outra forma, já que uma norma IEC é elaborada em um ambiente com pessoas que não conhecem as características e necessidades de todos os países, e portanto, não há condições de seu texto estar “pronto para uso por todos” mediante simples tradução ao pé-da-letra.

 

A lei ou a norma técnica?

            As normas técnicas são ferramentas referenciadas pelas leis e desta forma, elas não podem conter disposições contrárias àquelas.

            Este cuidado estava expresso nas Diretivas ABNT Parte 2: 2007, que estabeleciam a exigência que as normas brasileiras contivessem na seção "Referências Normativas" os documentos indispensáveis à aplicação da norma, sendo que prioritariamente deveriam ser relacionados as Leis, Decretos, Portarias e Regulamentos.

            Inexplicavelmente, as Diretivas ABNT Parte 2 foram revisadas em 2011, quando passou a ser proibida (?!) a citação às Leis, Decretos, Portarias e Regulamentos.

            A consequência desta decisão unilateral tomada pelo Conselho Deliberativo da ABNT é que as normas ABNT passaram a ser emitidas como traduções integrais das normas IEC e ISO, as quais não se limitam a estabelecer requisitos de ensaios, mas também muitas vezes estabelecem ações administrativas que em muitos casos conflitam com as disposições legais brasileiras.

            Seguir a norma técnica ABNT e depois receber uma notificação por descumprir a legislação é uma experiência desagradável que lamentavelmente é provável ocorrrer aos profissionais que utilizam normas brasileiras emitidas sob a atual edição das Diretivas ABNT Parte 2.

 

Temos capacitação técnica, ou apenas estrangeiros a possuem?

            A “adoção” de norma ‘internacional” elaborada no exterior mediante tradução ao pé-da-letra parece sinalizar que não temos competência para fazer nossas normas técnicas. Porém podemos citar dois dentre vários exemplos que demonstram nossa capacitação.

Na década de 80 a “moderna tecnologia” era o para-raios radioativo, que tinha seu campo de proteção independente da altura da instalação. Porém o pesquisador brasileiro Duílio Moreira Leite efetuou testes em laboratório e os resultados não comprovaram a propaganda. O fato mereceu matéria no programa dominical Fantástico e mais tarde, tal tipo de para-raios foi proibido aqui e em vários países.

            Um segundo exemplo foi a realização em 2012 de um ensaio no Cepel – Centro de Pesquisas da Eletrobrás - com uma “fita com graxa de rolamento” aplicada sobre uma junta de caixa à prova de explosão, uma discutível possibilidade citada na norma ABNT NBR IEC 60079-14, elaborada sob tradução ao pé-da-letra da original IEC. O resultado do ensaio apontou que o uso de tal fita é inseguro. O CB-03 - Comitê Brasileiro de Eletricidade da ABNT, ao receber o relatório de ensaio não emitiu uma errata da norma brasileira; ele se limitou a apresentar o fato como sugestão para o Maintenance Team que cuidará da próxima edição da norma IEC.

            Aparentemente, no entender da ABNT, os usuários podem ficar expostos ao risco introduzido pela norma emitida por ela. Apenas lembrando, o risco que os usuários estão correndo neste exemplo é de explosão, incêndios e mortes!

Estes exemplos são suficientes para comprovar que a política de reproduzir integralmente o texto IEC ou ISO mantendo eventuais erros, traz elevados prejuízos ao país, sendo pois, inadmissível.

 

O futuro do país

            Há 50 anos o lema "o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil", causou um impacto interessante em um primeiro momento, mas em pouco tempo revelou-se descabido, pelas diversas particularidades envolvidas. Portanto, não podemos nos iludir que mudando o lema para "o que é bom para a IEC basta ser copiado para o Brasil", garantirá sucesso.

            É importante participarmos dos fóruns internacionais, mas temos que conhecer detalhadamente como eles funcionam e suas limitações.

            Apenas como exemplo, as Comissões de Estudo da ABNT devem ser compostas com equilíbrio entre os representantes dos usuários, dos fabricantes e dos organismos neutros. As normas IEC não possuem tal exigência e via-de-regra as delegações são compostas por empregados dos grandes fabricantes, que assumem seus custos de viagens e estadias. Desta forma, os textos não necessariamente refletem os interesses dos usuários.

Podemos ilustrar com o exemplo da norma para as lâmpadas mini-fluorescentes, cujas embalagens apregoam durabilidade de 6 ou mesmo 8 anos. Só que esta “vida” se baseia que a lâmpada apenas seja ligada e desligada uma vez por dia e por um período de 2,7 horas. Esta é a forma que usamos a iluminação em nossas casas? Não se admire portanto, se você leitor, constatar que pagou por lâmpadas que durarão menos de um ano.

            Apenas pessoas desinformadas podem pensar que se uma norma ISO ou IEC não estiver de acordo com o que o Brasil espera ou necessita, seria porque “o país não foi devidamente representado” (pois tal pensamento desconsidera que somos apenas um voto entre vários outros), ou que “não foram enviados representantes para debater a norma IEC”, cabendo ressaltar que não temos que viajar ao exterior para defender o que desejamos aqui em nossa norma, no ambiente ABNT.

            Portanto, o caminho para o desenvolvimento sustentável passa pela valorização de nossa Engenharia e pelo cuidado na elaboração das nossas normas técnicas, de forma que reflitam nossas necessidades e apoiem o desenvolvimento de inovações tecnológicas.

            Pode parecer paradoxal a associação da inovação com a normalização, uma vez que “inovação” estaria associada com “novidade”, enquanto “normalização” seria a consolidação técnica do “conhecido”. No entanto, esta é uma visão ultrapassada. Um estudo coordenado pelo Instituto Alemão de Normalização (DIN), realizado em mais de 4.000 empresas na Alemanha, na Áustria e na Suíça, constatou que a participação no processo de elaboração de normas técnicas reduz os riscos e os custos nos processos de inovação, e que as normas são instrumentos tão importantes para o crescimento econômico quanto as patentes.

            As normas técnicas servem de base para a engenharia, o vetor propulsor do progresso. Neste contexto, copiar mecânicamente algo desenvolvido sem compromisso com nossa realidade, sem uma análise crítica, apenas nos fará perder o bonde da história.

            Renegar nossa engenharia é o passaporte para o sucateamento do país e a manutenção de seu status de dependente tecnológico. 

 

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