Ensino Médio voltado para a profissionalização só atinge 9% das matrículas, ficando abaixo até de países latino-americanos
Setores empresariais se queixam constantemente da falta de trabalhadores técnicos qualificados. O problema também afeta até as famílias de classe média quando necessitam executar um serviço em casa. Não faltam sinais de que o Brasil precisa investir na formação técnica, mas o enigma é por que essa deficiência histórica não é enfrentada pelos governos, mesmo com os prejuízos econômicos causa.
Uma demonstração do atraso brasileiro está nas estatísticas. Dos alunos matriculados no Ensino Médio no país, apenas 9% fazem curso técnico ou profissionalizante. O índice é muito menor do que os da União Europeia, onde esse percentual é de 43%. Mas o Brasil fica bem atrás até de países latino-americanos como a Colômbia, onde 24% dos estudantes nessa fase estão em cursos técnicos, e Chile, com índice de 29%. Tendo em vista que cerca de 25% dos jovens entre 15 e 17 anos nem sequer estão matriculados em algum curso de Nível Médio, dá para se ter uma ideia do abismo.

Um dos motivos históricos para a baixa formação profissionalizante no país é o argumento de que os cursos técnicos serviriam apenas para o adestramento de alunos para o mercado de trabalho, sem lhes dar condições até de competir por uma vaga em uma universidade. Em alguns casos, essa é realmente essa a realidade dos estudantes, mas a alta aprovação de egressos de institutos federais em vestibulares desmente esse preconceito. Em Santa Catarina, por exemplo, no Vestibular Unificado UFSC/IFSC, vários campus de IFs do estado alcançaram índices de aprovação acima de 30%, no último ano. Segundo levantamento da startup AIO, entre os maiores índices de aprovação no Enem no Brasil, há várias escolas técnicas, como os institutos capixabas de Vitória, Serra e Vila Velha, o instituto de Erechim, no Rio Grande do Sul, e o de Ribeirão das Neves, em Minas Gerais.
Apesar desse sucesso, os institutos federais sofreram nos últimos anos com a falta de verbas. Segundo o professor do Departamento de Sociedade, Educação E Conhecimento da UFF José Rodrigues, o fato reflete uma contradição da elite empresarial brasileira, que reconhece a necessidade de mais investimentos na educação, mas prioriza a austeridade fiscal quando está em questão a distribuição das verbas públicas. O setor tem sido duramente castigado desde a criação do teto de gastos no governo Temer e com isso não consegue atingir uma margem mais ampla de adolescentes.

“Os empresários querem ensino profissional para demandas muito específicas. Mas não se forma uma pessoa em três meses. É preciso investir no setor com uma perspectiva de longo prazo”, afirma Rodrigues.
Segundo ele, o dilema dos líderes industriais começou já na Era Vargas. Nos anos 1940, quando foi criado o chamado Sistema S, o ditador chegou a cogitar entregar o ensino profissionalizante para o controle pelos trabalhadores, o que gerou alvoroço no meio empresarial, que aceitou tomar conta do Senai e outras instituições técnicas. Durante o regime militar, nos anos 1970, outra fase de expansão industrial, o governo novamente reformou o ensino e até planejou tornar compulsório o Segundo Grau profissionalizante, mas recuou. Além da falta de vontade política para destinar maior volume de recursos dos orçamentos públicos para a área, a própria deficiência da política industrial atrapalha a formação de técnicos.

“A partir dos anos 1990, houve o insulamento das cadeias produtivas. Durante a pandemia, viu-se que o Brasil não produz nem mais máscaras. Não adianta formar se as cadeias estão insuladas”, afirma o professor. “Há no atual governo pessoas que apostam no estímulo a cadeias produtivas longas, num processo de neoindrustrialização. A da Saúde tem grande potencial, mas teria que haver uma política com atenção desde a indústria básica até a bioquímica e há muitos interesses contrários”, acrescentou Rodrigues.

Raízes históricas e culturais também podem ajudar a explicar a deficiência do ensino técnico no Brasil, de acordo com o professor da Faculdade de Educação da UERJ Gaudêncio Frigotto. Afinal, para um país que conviveu com a escravidão durante quase quatro século e foi o último das Américas a abolir esse regime, há muitos resquícios contra o trabalho menos intelectual. Ele cita o caso das Escolas de Aprendizes e Artífices criadas pelo presidente Nilo Peçanha, em 1909, voltadas para os “desvalidos da sorte”. Mais do que conhecimentos, tinham um objetivo de correção.
“Defendo o Ensino Médio integrado, com campos disciplinares fundamentais para a formação e cidadania. Nesse sentido, o ensino técnico pode ser estimulado sem uma especialização excessiva. O aluno precisa entender como a técnica pode ser aplicada e com domínio da base científica das técnicas”, afirma o professor.

Uma escola técnica de qualidade exige a instalação de laboratórios, bibliotecas, quadras esportivas e principalmente professores qualificados, o que exigiria uma mudança do próprio Ensino Superior para que profissionais da área tecnológica ou da saúde que dificilmente são encaminhados para cursos de licenciatura. São deficiências que não podem ser resolvidas de uma hora para outra, mas a decisão de reverter o abismo da falta de vagas deve ser rápida e os investimentos também devem começar rapidamente.
Numa época em que o país já enfrenta o desafio de se preparar para o advento da Indústria 4.0, a falta de profissionais formados em cursos técnicos é um sério problema que não será resolvido com programas tapa-buracos de cursos curtos.