Projeto Humanidades trata da carreira de engenheiro que atuou como poeta, jornalista, publicitário, dramaturgo e outras atividades criativas
A engenharia normalmente é associada à rigidez da ciência e da matemática, mas na prática é uma atividade que exige muita criatividade, imaginação e domínio de conhecimentos variados, inclusive humanísticos. É uma realidade que se verifica na prática dos profissionais que atuam na área mesmo em projetos técnicos, mas também dos egressos dos cursos que acabam seguindo outras carreiras, como foi o caso do pernambucano Manuel Bastos Tigre (1882-1957). Conforme mostrou o professor e ex-presidente do Clube de Engenharia Heloi Moreira, em palestra para o projeto Humanidades na Engenharia, o engenheiro que se radicou no Rio de Janeiro teve sólida formação na Escola Polytechnica no início do século passado, mas enveredou pela literatura, teatro, jornalismo e publicidade, mostrando que é possível a conciliação entre as diversas áreas de conhecimento.
A palestra “Bastos Tigre: engenheiro ou poeta?” foi uma oportunidade para se conhecer não só a história desse ilustre brasileiro, mas também para o entendimento do contexto histórico da época. Ele se formou num período em que a influência do Positivismo estava em baixa e o país começava a flertar com o modernismo e a liberdade criativa que esse movimento acabou trazendo.
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Tanto que em um de seus manifestos na juventude bradava: “A troça por princípio e a pilhéria por base: o riso por fim”. Era uma paródia satírica do famoso lema do filósofo positivista francês Augusto Comte: “O Amor por princípio, a Ordem por base, e o Progresso por fim” e que inspirou até o lema da bandeira nacional. Esse tipo de paródia também foi a marca de Oswald de Andrade, que no manifesto antropofágico brincou com a frase de Shakespeare e soltou ““tupy or not tupy, that is the question”. Mas o escritor paulista fez isso muito depois do engenheiro pernambucano, que antecipou muitas tendências.
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Sua mordacidade e sua veia cômica o fizeram um dos maiores cronistas do seu tempo. Colaborou com diversos jornais e só no Correio da Manhã escreveu durante mais de 50 anos a coluna Pingos e Respingos. Para o teatro, começou a escrever em 1906, como autor do texto de “O Maxixe”, encenada no Teatro Carlos Gomes. Foram muitos espetáculos assinados pelo engenheiro, que também tinha desde estudante o talento poético, conforme salientou Heloi Moreira na palestra.
Mas uma das atividades mais regulares exercidas por Bastos Tigre foi a de bibliotecário. A cada 12 de março se comemora o dia desses profissionais, justamente em referência à data de nascimento do engenheiro. Ele começou cuidando em 1915 do acervo de livros do Museu Nacional, mas depois foi transferido para a Biblioteca Central da Universidade do Brasil, e também atuou na da ABI e na da Associação dos Autores Teatrais.
Além disso, Bastos Tigre desempenhou bem também o papel de radialista e teve programas nas rádios Mayrink Veiga e Guanabara. Seus múltiplos talentos faziam com que ele fosse até contratado para descontrair plateias com seus improvisos e até recebia bem por isso. Hoje em dia, essas apresentações são chamadas de stand up comedy, mas há cem anos o engenheiro não se preocupava com esses rótulos estrangeiros e buscava mesmo valorizar a cultura nacional.
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A publicidade foi outra área de atuação de Bastos Tigre, que criou o famoso slogan “Se é Bayer, é bom”, entre outros. As indústrias amavam suas criações, tanto que a cervejaria Brahma o contratou para fazer a letra de uma marchinha para popularizar a novidade da época, o chope que vinha engarrafado. A música foi composta por Ary Barroso e gravada na voz de Orlando Silva. Acabou sendo um sucesso do carnaval de 1935.
Tantas atividades só foram possíveis graças à capacidade de organização do enérgico engenheiro e mostra que os profissionais da área terão sempre como se diferenciar, mesmo não estando necessariamente na sua seara.
“O engenheiro tem uma ação essencialmente criativa, elaborando, projetando e executando atividades diversificadas, sejam obras civis, softwares, equipamentos e aparelhos os mais diversos. Do mesmo modo assim também atuam os poetas, teatrólogos, músicos, cineastas, historiadores, biógrafos e outros, onde a criatividade é uma exigência para uma atividade profissional adequada”, afirmou Heloi Moreira.
O ex-presidente do Clube foi entrevistado pelo arquiteto Nireu Cavalcanti, um admirador das crônicas de Bastos Tigre, através das quais pesquisou muito sobre os debates travados sobre a tumultuada expansão urbana do Rio de Janeiro. Ele elogiou a versatilidade do personagem e também de sua geração.
“Eu estudei a Polytechnica no século XIX e percebi a importância da proximidade dela com as Belas Artes. Os alunos das Belas Artes quando queriam um aprofundamento maior da técnica e da matemática, iam estudar na Polytechnica. E o mesmo acontecia com os engenheiros, que estudaram disciplinas de arquitetura e artes e tinham uma formação completa”, ressaltou Nireu Cavalcanti.
Para Heloi Moreira, o exemplo de Bastos Tigre é cada vez mais relevante e serve de inspiração para os profissionais nos dias de hoje.
“É importante que as gerações de estudantes de engenharia recebam uma formação mais generalista, onde o conhecimento da literatura e das ciências de filosofia, arte, letras e do próprio comportamento humano sejam consideradas tão importantes quanto o são as ciências físicas, matemáticas e suas aplicações”, ressaltou o ex-presidente do Clube.