Programa Humanidades na Engenharia recebeu a jornalista e historiadora Beatriz Bissio, especialista no tema
No contexto educacional brasileiro, é frequente que se ensine que após o auge das civilizações clássicas da Antiguidade, especialmente o Império Romano, o mundo teria entrado em um período de declínio cultural, tecnológico e econômico. Embora esse declínio tenha ocorrido em grande parte da Europa após a queda de Roma, avanços consideráveis foram promovidos durante a Idade Média pela civilização árabe-islâmica, frequentemente negligenciados nos materiais didáticos tradicionais. Conforme destacado pela historiadora e jornalista Beatriz Bissio em sua participação no programa Humanidades na Engenharia, diversos desenvolvimentos científicos e culturais transcenderam as fronteiras do império árabe-islâmico, influenciando significativamente o mundo ocidental.
Beatriz Bissio, com ampla experiência jornalística e acadêmica sobre o universo árabe-islâmico, aprofundou-se no estudo dessa região através de pesquisa de doutorado na UFF, resultando na obra “O mundo falava árabe. A civilização árabe-islâmica através da obra de Ibn Khaldun e Ibn Battuta” (Editora Civilização Brasileira). O livro, disponível em versão digital, proporciona uma análise crítica sobre estereótipos e preconceitos que circundam esses povos.

A partir do estudo dos períodos Omíada (661 a 750 d.C.) e Abássida (750 a 1258 d.C.), Bissio constrói um panorama de uma civilização que desenvolveu relações singulares com o espaço, exemplificado pelas mesquitas muçulmanas, caracterizadas por amplos espaços internos e predomínio de elementos geométricos e abstratos em detrimento de imagens figurativas.

O império árabe-islâmico valorizou o conhecimento espacial não apenas pela extensão geográfica entre o Norte da África, Península Ibérica e Oriente Médio, mas também por motivos religiosos, considerando Meca como referência central para peregrinações e orações. A obrigatoriedade da peregrinação fomentou o interesse pela cartografia, evidenciado pelo trabalho de Al-Idrisi (c. 1100-1166), cuja produção cartográfica trouxe avanços significativos à representação territorial, ainda que destoante Segundo Bissio, o caráter multiétnico e multirreligioso desse império foi marcado pela incorporação e islamização de distintas tradições e grupos étnicos.

Diferentemente de percepções modernas sobre países árabes e muçulmanos, são associadas frequentemente ao fundamentalismo, porém essa civilização promoveu a aceitação de cristãos e judeus e possibilitou a atuação de mulheres em posições intelectuais destacadas. Suas elites estimularam a tradução de obras clássicas em Bagdá, onde foi construída a Casa do Conhecimento, tornando-se um polo de ciência, filosofia e literatura. Esse processo viabilizou ao Ocidente, sobretudo durante o Renascimento, o resgate de saberes greco-romanos perdidos e a adoção dos números arábicos, incluindo o zero, oriundo do sistema hindu.
A influência arquitetônica árabe-islâmica permanece em cidades brasileiras, fruto da prolongada presença árabe na Península Ibérica e da consequente incorporação de termos à língua portuguesa. No campo das ciências médicas, os califados e monarcas incentivaram estudos e práticas avançadas, como a dissecação de corpos, contribuindo para o desenvolvimento dos conhecimentos anatômicos e do conceito de hospital. Destaca-se também a contribuição persa, responsável por notáveis centros de pesquisa médica.
A língua árabe, consolidada pelo Alcorão, desempenhou papel relevante na estruturação poética e intelectual da civilização, além de promover certo grau de tolerância interétnica e religiosa, em contraste com conflitos regionais atuais, tanto entre diferentes segmentos islâmicos quanto no contexto árabe-israelense.
Durante o programa, Carlos Ferreira destacou o contraste entre o esplendor histórico da região e a atual dependência econômica do petróleo, observando a diminuição do protagonismo científico. Maria Alice Ibañez Duarte enfatizou que o reconhecimento do legado científico e cultural árabe-islâmico contrasta com a percepção do impacto negativo da violência presente na região.
