Gripe Espanhola matou milhões de pessoas no mundo, devastou o Rio de Janeiro e impactou também a vida no Clube de Engenharia
Em setembro de 1918, vinda da Europa, desembarcou no Rio de Janeiro a “Dama Espanhola”, uma passageira mais que indesejada. Chegou até nós a bordo do vapor inglês Demerara, que ao invés de permanecer em quarentena ao largo, foi autorizado a fazer o desembarque pelas autoridades sanitárias do porto. Àquela altura, a “Espanhola” já devastava os campos de batalha e as cidades europeias naquele final da I Grande Guerra, atingindo todos os continentes e metade da população mundial, tendo matado entre 20 e 40 milhões de pessoas.
No então Distrito Federal, uma metrópole com mais de 900 mil habitantes, a primeira ação das autoridades sanitárias e governamentais foi de minimizar a doença, taxando-a como uma das muitas gripes “limpa-velhos” que já haviam assolado a cidade nas décadas anteriores. Os médicos e a Saúde Pública batiam cabeça, e a população desamparada era dizimada. No mês de outubro, a cidade assumiu um ar sepulcral, quase tudo fechou à exceção das quitandas e farmácias, que majoraram os preços dos produtos aumentando ainda mais o sofrimento da população, especialmente a mais pobre, que padecia nos cortiços apinhados, nas favelas e nos subúrbios abandonados.
Colocavam-se panos pretos nas janelas das casas onde havia doentes, pedido de socorro aos vizinhos ainda sãos, para que lhes fosse trazida comida. Famílias inteiras morreram sem qualquer socorro e os cadáveres eram largados nas calçadas, aguardando às vezes por três ou quatro dias para serem removidos. Em setembro de 1918, morreram 48 pessoas, vítimas da gripe. Apenas no dia 22 de outubro, morreram 930 pessoas na Capital. Estima-se entre 15 e 20 mil mortos no Distrito Federal naquele final de ano.
Uma das narrativas mais trágicas da pandemia foi feita por um repórter do jornal A Rua, fundado em 1914 pelo escritor e político Viriato Correia. Nesse periódico há, provavelmente, as únicas matérias jornalísticas feitas no cemitério São Francisco Xavier, no Caju, durante o auge da epidemia, na segunda quinzena de outubro de 1918.

A narrativa é inacreditável. O cemitério naqueles dias estava repleto de cadáveres insepultos, mais de mil segundo as matérias, a maioria em adiantado estado de putrefação, o que provocava no céu um imenso turbilhão de urubus e, mais próximo ao chão, milhões de moscas que azucrinavam os que lá estavam. A Santa Casa de Misericórdia não conseguia dar conta dos sepultamentos, situação agravada pela greve dos coveiros deflagrada em 11 de outubro. Na contagem diária de enterros feita pela polícia carioca entre 12 e 30 de outubro, publicada pelo Correio da Manhã, haviam sido realizados 5.132 sepultamentos no cemitério S. Francisco Xavier, de um total de 9.408 realizados na cidade, ou seja, quase 55% do total.
A situação ficou a tal ponto insustentável que o Ministro da Justiça, Carlos Maximiliano, decretou intervenção militar no cemitério no dia 23 de outubro. Os sepultamentos passaram a ser feitos por detentos das casas de Correção e Detenção, além de trabalhadores contratados e homens pobres engajados à força pela polícia. Enormes valas comuns foram abertas, onde os corpos de homens, mulheres e crianças eram lançados uns sobre os outros. Inúmeros caminhões e carroções, trazendo cadáveres de toda a cidade, aguardavam vários dias para serem descarregados.

A gripe espanhola encontrou uma cidade totalmente despreparada, sem qualquer estratégia para combater o alastramento da doença. Com o rápido avanço da epidemia e a completa imobilidade da Direção Geral de Saúde Pública (DGSP) dirigida há muitos anos pelo Dr. Carlos Seidl (1867-1929), a imprensa carioca passou a ataca-lo com ferocidade, chegando a denominar a gripe como o “Mal de Seidl”. Ficaram patentes em alguns poucos dias as profundas deficiências da saúde pública no atendimento à população, com hospitais escassos, mal equipados e com equipes médicas e de enfermagem despreparadas. Somou-se a esse quadro caótico a posição inicial das autoridades sanitárias de que se fazia muito alarde com mais essa “gripezinha” e a falta de explicação para a população das causas da doença. A demissão do Dr. Carlos Seidl no dia 18 de outubro veio no rastro do caos, que só começou a ceder no mês seguinte com as medidas sanitárias tomadas pelo Dr. Carlos Chagas (1878-1934), nomeado para a DGSP pelo Presidente da República.
A “Espanhola” também atingiu com força o Clube de Engenharia, como não poderia deixar de ser naquele quadro caótico. Pudemos acompanhar a marcha da pandemia na rotina do Clube através das atas das reuniões do Conselho Diretor (CD), publicadas no Jornal do Commercio a partir de janeiro do ano seguinte. Na reunião do CD de 16 de setembro de 1918, vigorou uma completa normalidade, com um quórum de 68 conselheiros que receberam a visita ilustre do Eng. William Wallace Ewing (1866-1938), representante do Departamento de Comércio dos EUA, bem como aprovaram uma moção de congratulações ao Dr. Paulo de Frontin (1860-1933), presidente da entidade, pela passagem do seu aniversário no dia seguinte.
Na sessão seguinte, no dia 2 de outubro, apenas 14 conselheiros compareceram e após um breve debate sobre o Observatório Nacional, o presidente “levantou a sessão” pois nenhum dos relatores dos pareceres em discussão compareceu. As sessões do CD não mais ocorreram nos meses de outubro e novembro, auge da pandemia na cidade.
Apenas em 3 de dezembro foram retomadas as reuniões do CD, ainda com a presença reduzida de conselheiros. Nesta triste sessão, o Presidente Paulo de Frontin, que também fora acometido pela gripe e se reestabelecia, declarou que “é muito sensível a perda que acaba de sofrer o Clube de Engenharia nesta epidemia, que nos ceifou vários companheiros. Perdemos o nosso esforçado e ilustre 1º Vice-Presidente, Dr. Joaquim Sylverio de Castro Barbosa.” O engenheiro ferroviário Castro Barbosa (1850-1918) trabalhava na Central do Brasil, atuou na construção da ferrovia Rio-São Paulo e foi o pai de três figuras ilustres da cultura nacional a partir dos anos 1930, os cantores e comediantes Barbosa Júnior (1891-1965) e Castro Barbosa (1909-1975) e do cantor Luís Barbosa (1910-1938). Além da perda do seu Vice-Presidente, o Clube havia perdido outros 14 associados, cujos nomes foram lembrados naquela sessão.
A rotina da cidade se normalizava e a do Clube também, mas o rastro da pandemia ainda iria frequentar as reuniões do CD no primeiro semestre de 1919, como na 116ª sessão de 16 de janeiro, quando foi homenageado o presidente eleito da República Rodrigues Alves (1848-1919), morto pela gripe naquele mesmo dia. Paulo de Frontin, no final daquele mês, foi nomeado Prefeito do Distrito Federal, função que desempenhou até julho daquele ano.
A partir de fevereiro de 1919, as reuniões do CD foram em grande parte ocupadas por um importante debate relacionado à questão da saúde na Capital Federal. O conselheiro Marechal Gregório Thaumaturgo de Azevedo (1853-1921) apresentou para avaliação do CD um anteprojeto para a construção do Hospital da Cruz Vermelha. Este havia solicitado em janeiro daquele ano que o Clube emitisse um parecer sobre sua proposta para o hospital a ser construído na antiga área do Morro do Senado, sendo escolhido como relator o engenheiro e arquiteto Adolpho José Del Vecchio (1848-1927).

O conselheiro Del Vecchio concluiu seu parecer em fevereiro e, na sessão de 1º de março, leu-o no CD, tecendo críticas profundas à concepção arquitetônica da unidade hospitalar proposta pelo Mal. Thaumaturgo, que previa um edifício com vários andares (conceito de “hospitais superpostos”). Del Vecchio, à luz das novas concepções científicas e dos efeitos devastadores da pandemia, propôs que o novo hospital fosse descentralizado, construído em “pavilhões isolados”, de modo que, “a troca de atmosferas carregadas de germes patogênicos diversos que, na opinião dos mestres, se dá entre os diferentes andares de um grande hospital, como é aquele que se trata, comprometendo seriamente suas condições de salubridade e aumentando as causas de infecção daqueles que se acham recolhidos, é coisa que não se dá no tipo de pavilhões isolados, o que constitui uma enorme diferença e de suma importância” (CD, 02 de maio de 1919, ata publicada no Jornal do Commercio, 15 de junho de 1919). É provável que estivesse bem viva na cabeça de Del Vecchio a mortandade desenfreada que assolou o velho Hospital da Santa Casa de Misericórdia, no Centro do Rio, onde a maioria dos que entraram para serem tratados da gripe foi parar nas valas coletivas do Caju.
O debate sobre o hospital da Cruz Vermelha teve grande destaque na imprensa carioca, bem como a participação de ilustres médicos, como os doutores Arnaldo Quintela (1880-1922) e Arthur Moncorvo Filho (1871-1944), com posicionamentos a favor e contra o projeto inicial do Mal. Thaumaturgo, mostrando que o Clube de Engenharia foi e segue sendo uma grande caixa de ressonância dos problemas do Rio de Janeiro e do país.