O termo “transição energética” é de fato o mais apropriado para as mudanças que o mundo precisa fazer em suas matrizes energéticas?

O termo “transição energética” é de fato o mais apropriado para as mudanças que o mundo precisa fazer em suas matrizes energéticas?

Crédito: Pixabay
O termo “transição energética” é de fato o mais apropriado para as mudanças que o mundo precisa fazer em suas matrizes energéticas?
Neoindustrialização do Brasil

O professor do Departamento de Geologia da UFRJ, Jorge Picanço Figueiredo, tem questionado o termo “transição energética” e a demonização das fontes fósseis de energia pontuando que o termo mais apropriado seria “diversificação energética”, que congregaria o maior número possível de matrizes energéticas, inclusive as fósseis

“O aquecimento global é uma realidade e a queima de combustíveis fósseis é uma das (não a única) fonte de gases efeito estufa na atmosfera, logo a queima de combustíveis fósseis precisa diminuir. Isso é inquestionável. O que é questionável é a forma como a narrativa da ‘transição energética’ tem postulado isso”. Antes de começar qualquer discussão sobre o tema transição energética, o professor Jorge Figueiredo faz questão de frisar a afirmação acima. 

O aumento da concentração de Gases do Efeito Estufa na atmosfera é um fenômeno já comprovado, bem como as consequências desse processo para o aumento da temperatura média da Terra. Segundo o boletim anual da Organização Meteorológica Mundial (OMM), em 2022 o índice de dióxido de carbono (CO2) atingiu 417,9 partes por milhão (ppm). O mesmo relatório apontou para uma concentração de metano de 1.923 partes por bilhão (ppb) e a de óxido nitroso em 335,8 ppb. Na comparação com as taxas atribuídas ao ano de 1750 (antes da Revolução Industrial), houve um aumento de 150%, 264% e 124%, respectivamente, na presença desses gases no meio ambiente.

Por outro lado, 2023 foi considerado o ano mais quente registrado nos últimos 100 mil anos. Segundo o observatório europeu Copernicus, a temperatura média ficou 1,48ºC acima do nível da era pré-industrial. O resultado é quase o limite de 1,5ºC de aumento proposto pelo Acordo de Paris e também considerado mais seguro por parte da comunidade científica. Os países que assinaram o acordo se comprometeram a reduzir suas emissões a fim de evitar um mal maior, mas não tem havido progresso na prática nessa questão. 

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Destruição de florestas é a pior contribuição para o efeito estufa. Crédito: Nilmar Lage/Greenpeace/Divulgação

Entre as consequências trazidas pelo aumento da concentração desses gases na atmosfera, estão a maior incidência de eventos climáticos extremos, como tempestades e secas, a acidificação dos oceanos e efeito negativo sobre a biodiversidade. O derretimento das geleiras e o consequente aumento do nível dos oceanos é outra preocupação. São consequências que tendem a acarretar prejuízos econômicos e sociais. 

Por essas razões, o mundo precisa reduzir a quantidade de CO2 emitida por diversos agentes (queima de combustíveis fósseis, siderurgia, fabricação de cimento, queima de madeira, etc). No contexto desta discussão necessária, o termo “transição energética” tornou-se uma narrativa muito forte de comunicação com o inconsciente coletivo. O termo, entretanto, enfrenta questionamentos no meio acadêmico devido à sua inadequação. O verbo transitar significa sair de uma posição e ir para outra. No caso do termo “transição energética” o que se comunica para o inconsciente coletivo é a ideia de mudança de fontes energéticas consideradas sujas e não renováveis para aquelas consideradas limpas e renováveis. É esta retórica que o Professor Jorge Figueiredo tem questionado. Para ele, dois pontos devem ser compreendidos: 1) não há matriz energética limpa, todas têm um subproduto (uma “sujeira”) danoso à natureza; 2) o Mundo não tem como prescindir dos combustíveis fósseis. O abandono total dos combustíveis fósseis significaria, em última instância, sobrecarregar a natureza com a exploração de outros recursos com efeitos colaterais que só conseguiremos mensurar claramente no futuro.

Segundo o professor Jorge Figueiredo em vez de um debate mais racional sobre soluções mais equilibradas, acabou prevalecendo uma narrativa mais maniqueísta de fácil assimilação pelas massas que dicotomiza a discussão entre o “bem” e o “mal”. Com isso, os combustíveis fósseis foram demonizados e no seu lugar teriam que entrar as fontes limpas e renováveis, como a energia solar, eólica, da biomassa e mais recentemente a proposta do hidrogênio verde. Para o professor esta discussão é cientificamente incorreta tendo em vista os dois pontos relacionados no parágrafo anterior.

O professor Jorge Figueiredo propõe a troca do termo “transição” por “diversificação”, por considerá-lo mais apropriado tanto no contexto semântico quanto no ecológico. Diversificar, ou seja, congregar o maior número possível de diferentes matrizes energéticas, evita a sobrecarga de um único subproduto danoso à natureza como ocorre atualmente com os combustíveis fósseis. Cerca de 70% da energia do mundo (transporte e eletricidade) depende da queima de combustíveis fósseis. Obviamente, cerca de 70% do subproduto danoso à natureza relacionado ao consumo da energia vem daí, no caso, a liberação de gases efeito estufa na atmosfera.

De acordo com ele, longe de uma visão negacionista, o fato de o mundo precisar combater o aquecimento global não significa que a melhor solução seja concentrar toda matriz em uma ou em poucas fontes, tendo em vista outras limitações que a natureza deve oferecer. Ele ressalta o fato de que as matérias-primas necessárias para a fabricação de equipamentos para os geradores das fontes consideradas renováveis ou vem do próprio petróleo ou da mineração, o que as torna não tão renováveis e limpas assim.

“Há uma narrativa que pegou segundo a qual temos que transitar de fontes sujas e não renováveis para limpas e totalmente renováveis, o que não é correto e não vai acontecer. Nem é preferível que aconteça do ponto de vista da geopolítica e do bem-estar da natureza. O mais correto seria desconcentramos as fontes e não sobrecarregamos a natureza numa única”, defende o professor.

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Usina hidroelétrica de Itaipu. Crédito: Creative Commons

Ele usa como exemplo as baterias de carros elétricos, que são saudadas como a salvação para o problema do aquecimento global. A ideia é não depender mais de combustíveis fósseis, mas o armazenamento de energia nesses veículos precisa do equipamento feito com lítio e cobalto, minerais cuja extração causa impactos ambientais, sociais e econômicos e, além do mais, também não são renováveis. Sem contar com problema do posterior descarte destes produtos visto que não são recicláveis, nem biodegradáveis. O mesmo pode-se dizer dos painéis fotovoltaicos, que também dependem da mineração, por causa do silício para a fabricação dos vidros de alta pureza, e do petróleo, por causa da película feita por polímeros que recobre os vidros dos painéis.

“Desde que deixamos de ser caçadores-coletores e nos tornamos agricultores-pastoreadores, devido à revolução agrícola que começou há 10 mil anos, deixamos de ter uma relação simbiótica com a natureza e passamos a ter uma relação predatória. A revolução industrial levou esta relação predatória ao paroxismo. Precisamos de um freio sob pena de mudanças catastróficas na natureza, porém, com mais 8 bilhões de habitantes no planeta é impossível voltarmos à relação simbiótica que tínhamos antes, por melhores que sejam as nossas intensões. É necessário ter isso muito claro para não nos deixarmos enganar por narrativas maniqueístas fundamentadas em impressões do senso-comum”, ressalta Figueiredo.

Pontuando sobre o fato de não existirem matrizes energéticas limpas, o professor escreveu recentemente um artigo que discute os problemas ambientais da hidroeletricidade, dos chamados biocombustíveis, das energias eólicas e solar e do Hidrogênio verde (https://www.cartacapital.com.br/opiniao/quao-limpas-e-renovaveis-sao-as-energias-que-chamamos-de-limpas-e-renovaveis/) . Além destes, a extração de minerais como cobre, alumínio, lítio, níquel, cobalto, nióbio, grafita, manganês e terras raras ganharam importância estratégica no mundo como elementos fundamentais para a produção de equipamentos necessários para a geração de novas matrizes energéticas. A exploração destes minerais tem causado sérios problemas ambientais, sociais, econômicos e geopolíticos a vários países da periferia capitalista, principalmente na África e na América Latina. Via de regra, esta tem sido uma discussão omitida na narrativa da transição energética. 

Sobre o inegável subproduto da queima dos combustíveis fósseis, qual seja, a liberação de gases efeito estufa na atmosfera o professor elenca os seguintes dados da Agencia Internacional de Energia (https://www.iea.org/) consolidados para o ano de 2021. Segundo a AIE, em 2021 o mundo emitiu 33,57 trilhões de toneladas (tT) de CO2 na atmosfera decorrente da queima de combustíveis fósseis (carvão, petróleo e gás natural, em ordem decrescente). Deste total, a China, sozinha, emitiu 10,68 tT de CO2 (31,8%). EUA vêm em segundo lugar com 4,55 tT de CO2 (13,55%). Índia em terceiro com 2,28 tT de CO2 (6,8%). Rússia em quarto com 1,68 tT de CO2 (5%). Japão em quinto com 1 tT de CO2 (2,9%). Iran em sexto com 0,643 tT de CO2 (1,9%). Alemanha em sétimo com 0,624 tT (1,8%). Korea do Sul em oitavo com 0,558 tT de CO2 (1,66%). Canadá em nono com 0,506 tT de CO2 (1,51). Arábia Saudita em décimo com 0,497 de CO2 (1,48%). Estes dez países produzem 22.02 tT de CO2 (65,6%, ou 2/3 de todo CO2 decorrente de queima de combustíveis fósseis). O Brasil vem logo em seguida na décima primeira posição, com 0,439 tT de CO2 (1,3%). Considerando que o Brasil é a 9ª economia mundial, nós estamos abaixo da média na emissão de CO2 de combustíveis fósseis como base energética da nossa atividade econômica. 

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Energia nuclear é livre de CO2 mas não é limpa. Crédito: Markus Distelrath/Pexels

Todavia, os resultados são ainda muito mais positivos para o Brasil quando se considera a emissão per capita de CO2 de combustíveis fósseis. Nesta ponderação o Brasil cai para a 54ª posição, produzindo 2,02 Toneladas/habitante/ano. Ou seja, a 7ª nação mais populosa do mundo é a 54ª em produção de CO2 de combustíveis fosseis por habitante. Mesmo na América Latina o Brasil, apesar de ser, de longe, a maior economia, ocupa a 5ª posição na emissão de CO2 per capita decorrente da queima de combustíveis fósseis. Fica atrás, em ordem decrescente, do Chile (o campeão de emissão per capita na América Latina), da Argentina, do México e do Uruguai. Abaixo segue a lista dos 30 países campeões de emissão de CO2 de combustíveis fósseis, per capita.

Esta grande vantagem que o Brasil possui em relação a qualquer outro país advém do fato da nossa principal matriz de geração de energia elétrica ser hidrelétrica (cerca de 62%). O uso de combustíveis fosseis para geração de energia elétrica no Brasil é de cerca de 10%, menos que energia eólica que já chega à casa dos 12% (https://www.iea.org/) . O gargalo do Brasil para queima de combustíveis fosseis é o transporte de carga que é feito basicamente por caminhões. Muito se questiona o fato de o Brasil, um país de dimensões continentais, não ter uma malha ferroviária que dê conta do transporte de mercadoria à grosso, já que o varejo não tem como fugir do transporte rodoviário. Este fato decorre de decisões tomadas no passado distante. As malhas ferroviárias dos países que as possuem são o resultado de investimentos de mais de 200 anos. Não temos como mudar a nossa realidade em um passe de mágica. Precisaremos, por muito tempo de combustíveis fósseis para os nossos caminhões. Mas, e o biodiesel?

Sobre isso o Professor Jorge Figueiredo pontua que, apesar de sermos o 11º país em emissão de CO2 de combustíveis fósseis, somos o 5º na emissão total. De onde vem o restante do CO2 que emitimos? Parte vem da nossa atividade industrial (metalurgia, produção de cimento, etc), mas, o principal vem da queima de vegetais das florestas e dos cerrados para a expansão da agroindústria. O irônico, segundo o professor, é que muito da expansão da agroindústria é para a plantação de cana-de-açúcar e milho par a produção do etanol e de dendê para a produção biodiesel. Pior, estas atividades agroindustriais recebem incentivos fiscais por serem considerados “biocombustíveis”, porém, têm-se expandido à custa da derrubada de florestas e cerrados. Ironicamente, para a fabricação de combustíveis que não emitem CO2, estamos emitindo mais CO2 (além da destruição de biomas) que emitiríamos se queimássemos combustíveis fósseis.

O professor concorda que as recomendações de cortes na queima de combustíveis fósseis feitas pelo IPCC (Intergovernmental Panel on Climate Change) devam ser cumpridas, porém, ressalta que não é possível exigir corte de gordura de quem não tem gordura para queimar. Os cortes não podem ser feitos de forma linear. Um país que emite 2 T/h/a não pode ser tratado de forma igual a outro que emite 30 T/h/a. Muito se diz que tratar desiguais de forma igual perpetua d desigualdade. O justo é tratar desiguais de forma desigual.

A pressão de fatores geopolíticos sobre uma redistribuição justa e sustentável da geração de energia também incide na questão do chamado hidrogênio verde, segundo ele. O considerado combustível limpo e do futuro precisa ser produzido a partir da eletrólise da água, um processo extremamente energívoro o qual consome mais energia na sua produção do que é capaz gerar, portanto, em tese é economicamente inviável. Se isso é verdade, por que este combustível entrou na pauta como a solução para os transportes. Segundo o professor, o hidrogênio verde é uma solução para a Europa, não para a periferia do capitalismo. De uma maneira geral, a energia na Europa é três vezes mais cara que nos países da periferia capitalista. O projeto europeu atual é instalar as plantas de produção de hidrogênio nos países da periferia que produzam energia elétrica de outras fontes que não sejam fósseis (daí porque o Brasil entrou no holofote da Europa para a instalação das plantas de produção de hidrogênio pelas corporações industriais europeias). Consumir esta energia elétrica barata (quando comparado com o preço europeu), produzir o hidrogênio, mesmo com um déficit financeiro de cerca de 20%. Depois levar o hidrogênio para a Europa onde será vendido pelo dobro do preço. Aí a matemática financeira fecha no positivo.

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Torres de energia eólica. Crédito: flickr

Segundo o professor, se o mundo adotar uma diretriz de diversificação, pode retomar o crescimento do uso da energia nuclear, que não emite CO2 e pode complementar a matriz de diversos países como o Brasil. Isso não significa que ela também não tenha que ser vista com cuidado pelos riscos gerados e pelo lixo que acumula.

“Ninguém cresce econômica e socialmente sem energia e ela não sai do nada. Ela precisa de fontes e as mais seguras e concentradas no momento são as de combustíveis fósseis e a nuclear”, afirma Figueiredo.

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