Parque do Flamengo: há 60 anos embelezando a paisagem carioca

Parque do Flamengo: há 60 anos embelezando a paisagem carioca

Crédito: Creative Commons

Projeto reuniu time de peso do paisagismo, da arquitetura, da engenharia e de outras áreas e virou modelo de lazer e entretenimento

Um fato inusitado na história do Rio de Janeiro é a ausência de uma placa de inauguração no seu monumental Parque do Flamengo. Com uma área de 1,2 milhão de metros quadrados, o que o coloca na posição de maior à beira-mar do mundo, essa joia do paisagismo e da arquitetura está completando 60 anos. Apesar de sua importância e envergadura, foi entregue oficialmente à população no dia 17 de outubro de 1965, numa festa simples. Essa circunstância e as disputas em torno da concepção ofuscaram de certa forma as contribuições inovadoras desse espaço de lazer dos cariocas, que o chamam de Aterro, que tem curiosidades pouco conhecidas.

A paisagem anterior à construção do Aterro só pode ser vislumbrada hoje por meio de fotos antigas, que registraram as antigas praias de Santa Luzia, no Centro, a do Russell, na Glória, além dos contornos mais naturais das do Flamengo e Botafogo. Toda essa área, que vai do Aeroporto Santos Dumont até o Pasmado, sofreu sucessivos aterramentos, devido ao despejo do material do desmonte de morros do Centro, como o do Castelo e o de Santo Antônio. Até pedras retiradas do maciço do Corcovado durante a obra do Túnel Rebouças foram parar nessa parte da orla da Baía de Guanabara, que também recebeu areia retirada por uma draga no mar.

Parque do Flamengo: há 60 anos embelezando a paisagem carioca parque do flamengo ha 60 anos embelezando a paisagem carioca parque do flamengo ha 60 anos embelezando a paisagem carioca
Foto aérea do aterro de janeiro de 1960. Crédito: Domínio público / Acervo Arquivo Nacional

O alargamento do território carioca começou, portanto, quando a cidade ainda era a capital da República e estava alinhado a um plano de expansão das vias para desafogar o trânsito e interligar melhor suas diferentes regiões. Conforme explica a pesquisadora Ana Rosa de Oliveira, em artigo publicado no Jornal da Paisagem, a proposta de aterramento para construção de pistas de alta velocidade já fazia parte de um plano maior de conexão viária, sintetizado no famoso Plano Agache (1927-1930), encomendado pelo prefeito e engenheiro Antônio Prado Júnior ao arquiteto francês Alfred Agache. Segundo ela, no projeto de cerca de 100 anos atrás já se destacava a participação do arquiteto Affonso Eduardo Reidy.

Parque do Flamengo: há 60 anos embelezando a paisagem carioca parque do flamengo ha 60 anos embelezando a paisagem carioca parque do flamengo ha 60 anos embelezando a paisagem carioca 2
Parque começa a nascer entre as pistas. Crédito: Domínio público / Acervo Arquivo Nacional

Ele teve um papel fundamental para que grande parte das soluções apresentadas naquele plano fossem executadas, principalmente ao integrar a partir de 1947 o Departamento de Urbanismo da cidade. Seu nome foi de fundamental importância para a construção do parque, a começar pela autoria do projeto do Museu de Arte Moderna (MAM), cuja construção foi comandada por sua esposa, a engenheira Carmen Portinho. O prédio, com seus pilotis em formato em “v” e seu vão livre, foi inaugurado em 1948 e passou a formar com o aeroporto e o posterior Monumento Nacional aos Mortos da Segunda Guerra Mundial um conjunto arquitetônico modernista de dar inveja.

Parque do Flamengo: há 60 anos embelezando a paisagem carioca parque do flamengo ha 60 anos embelezando a paisagem carioca parque do flamengo ha 60 anos embelezando a paisagem carioca 10
Monumento aos Mortos da Segunda Guerra Mundial. Crédito: Creative Commons

A região, com o Pão de Açúcar ao fundo, era um espaço privilegiado da cidade e tinha todas as condições de abrigar uma área de convivência pública, a partir dos monumentos arquitetônicos já inaugurados até a década de 1950. No entanto, a partir da decisão da transferência da capital para Brasília, não havia verba para tudo e o Aterro acabou demorando mais a ser concluído. A cidade, que vivia na época o movimento do “bota abaixo”, com muitas casas e palacetes sendo demolidos para a construção de prédios, começou a gerar uma quantidade de entulho gigantesca e grande parte desse material era despejada nesse cartão postal.

Conforme explica o pesquisador Maurício de A. Abreu, no seu livro “Evolução Urbana do Rio de Janeiro”, a cidade passava por uma intensa transformação e as dificuldades financeiras impediam a realização de tantos projetos. Durante a administração do prefeito Francisco Negrão de Lima, em 1957, não havia garantia nem com relação à conclusão do aterramento. “Para assegurar o fluxo contínuo de recursos, a administração Negrão de Lima desenvolveu um mecanismo original e eficaz de aumento da receita proveniente do Imposto de Vendas e Consignações — o “seu talão vale um milhão”, conta Abreu. Essa criatividade garantiu a finalização da construção a Avenida Chile, com o desmonte do Morro de Santo Antônio, que forneceu material para o Aterro, entre outras obras.

Parque do Flamengo: há 60 anos embelezando a paisagem carioca parque do flamengo ha 60 anos embelezando a paisagem carioca parque do flamengo ha 60 anos embelezando a paisagem carioca 3
O verde, as pistas e os famosos postes, apelidados de “frio palmeiral de cimento”. Crédito: Creative Commons

O aterramento entre a Glória e a Enseada de Botafogo começou em 1951 e durou até 1962. Só do desmonte do Morro de Santo Antônio, foram despejados cerca de 8 milhões de metros cúbicos de terra.

Foi com a eleição do jornalista Carlos Lacerda para o recém-criado Estado da Guanabara, em 1960, que a proposta de um parque na área começou a ser discutida. O governador morava em frente ao espaço, no 13º andar do número 224 da Praia do Flamengo, e acabou sendo convencido pela amiga e arquiteta autodidata Maria Carlota Macedo Soares, conhecida como Lota, a pôr a ideia em prática. Ela foi uma figura fundamental para a configuração atual do parque, mas precisou se embrenhar em muitas lutas para alcançar seus objetivos, e parte de suas ideias, por outro lado, acabou não vingando.

As brigas começaram no próprio grupo de trabalho criado por Lacerda para a construção do parque, presidido por Lota. Parte da equipe, formada por representantes de diferentes órgãos, defendia a construção de quatro pistas de rolamento para o trânsito. Mas do que adiantaria cobrir quase todo o aterro com asfalto para os veículos se afunilarem tanto no caminho para a Zona Sul no Túnel do Pasmado ou para o Centro, no Castelo? Foi a indagação que  Lota fez e que acabou dobrando os mais teimosos integrantes da equipe.

Parque do Flamengo: há 60 anos embelezando a paisagem carioca parque do flamengo ha 60 anos embelezando a paisagem carioca parque do flamengo ha 60 anos embelezando a paisagem carioca 9
Projetado por Lúcio Costa, Monumento a Estácio de Sá foi incluído depois. Crédito: Riotur

“A SURSAN propôs o estabelecimento de 4 pistas de alta velocidade. O Grupo de Trabalho defendeu a ideia de um projeto com 2 vias rápidas que foi a proposta que prevaleceu. Com isso evitava-se a compartimentação do parque em inúteis fragmentos decorados com jardins e a criação de uma praia sem vínculo com a cidade. Mesmo assim na época, o engenheiro chefe da SURSAN declararia: “Não sei para que serão aproveitadas as áreas restantes”, conta a pesquisadora.

Essas áreas restantes tinham, na visão de Lota, como destinação correta o lazer, o esporte, a cultura e até a educação. O projeto paisagístico coube a Roberto Burle Marx, que já tinha projetado o paisagismo da Praça Salgado Filho, em frente ao aeroporto, e os jardins do MAM, com seu famoso gramado em formato de ondas. Os jardins do museu, que décadas depois ganhou uma casa de shows em anexo, estão entre os mais originais do paisagista. “Bem diversos dos conceitos ocidentais de jardinagem, eles lembram os jardins zen-budistas japoneses, onde são utilizados números, como por exemplo de três, cinco e sete, considerados propícios. Uma das composições de colunas de granito perto do museu é disposta em três grupos de tamanho e quantidades diferentes, colocados em canteiros retangulares de seixos rolados, num contraste de texturas e formas”, explica a sul-africana Sima Eliovson, no livro “Os Jardins de Burle Marx”.

Parque do Flamengo: há 60 anos embelezando a paisagem carioca parque do flamengo ha 60 anos embelezando a paisagem carioca parque do flamengo ha 60 anos embelezando a paisagem carioca 4
A praia artificial é um grande feito da engenharia. Crédito: Riotur

O Parque do Flamengo é considerado um dos mais emblemáticos projetos desse gênio do paisagismo, que combinou espécies nativas da flora brasileira com outras exóticas. Compôs um festival de cores, que podem ser vistas na floração ao longo do ano, e nos diferentes tons de verde de cada árvore e dos gramados. Um dos destaques são as palmeiras Talipot (Corypha umbraculifera), e que só florescem antes de morrerem depois de 60 ou 70 anos, fenômeno só visto depois de décadas de inaugurado o parque, além de diversos tipos de ipês que encantam tanto os usuários do parque quanto quem passa de carro pelas pistas.

Fotos do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro

Apesar de ter nascido em São Paulo, Burle Marx estabeleceu parceria com arquitetos do Rio que fizeram dele uma figura proeminente do chamado “modernismo carioca”. Além de Reidy, o paisagista também tinha assinado projetos em conjunto com Oscar Niemeyer e Sérgio Bernardes, sendo que este último veio a se juntar ao Grupo de Trabalho do Aterro. Sua principal característica era de evitar o uso de plantas europeias em seus jardins ornamentais, que ganhavam em exuberância pelas espécies tropicais, principalmente da Amazônia e da Mata Atlântica. 

Para o Aterro, Burle Marx previu uma pista de caminhada ondulada, que hoje é usada também como ciclovia. São integradas às passarelas desenhadas por Reidy, que teve um cuidado especial com a maior delas, que liga o MAM à Avenida Beira-Mar, com baixa inclinação, o que permite uma caminhada mais tranquila para os pedestres. 

No entanto, os planos de Lota eram mais ambiciosos, e não se limitavam à construção de um parque para as caminhadas. Sua ideia era de um espaço para múltiplas atividades e por isso convidou a educadora Ethel Bauzer Medeiros (especialista em recreação e lazer) para colaborar com o projeto. Com isso, o parque carioca ganhou equipamentos únicos para a época num ambiente ao ar livre como o teatro de marionetes (projeto do arquiteto Carlos Werneck), bem como quadras poliesportivas, quadras de tênis, pista de aeromodelismo, coreto para apresentações musicais, anfiteatro e seus campos de futebol, que passaram a funcionar 24 horas por dia. Dois playgrounds foram criados, aproveitando-se a antiga mureta da praia. Lamentavelmente, o tanque de modelismo náutico está abandonado e o aquário e horto planejados não foram concretizados.

Mas os equipamentos que vingaram distinguem o Parque do Flamengo de outros projetados na mesma época, que não eram tão vanguardistas, como o da Cidade, em Brasília, e o do Ibirapuera, em São Paulo. Lota também convidou o designer Alexandre Wollner para a elaboração da sinalização, que daria maior segurança até para as crianças sem impactar visualmente a paisagem, mas as placas acabaram sendo destruídas.

Parque do Flamengo: há 60 anos embelezando a paisagem carioca parque do flamengo ha 60 anos embelezando a paisagem carioca parque do flamengo ha 60 anos embelezando a paisagem carioca 6
Vista noturna. Crédito: Creative Commons

Outra luta travada por Lota foi com relação à iluminação do parque. Sua ideia era instalar um sistema que proporcionasse uma luz mais suave, como a do luar, que abrange tanto as pistas quanto as áreas verdes. Evitava-se assim também o uso de uma série de postes baixos, que impactariam visualmente o projeto. Mas os técnicos da companhia de luz foram contra. Conforme contou o arquiteto Mario Sophia em entrevista à revista História Viva, a proposta gerou uma briga com Comissão Estadual de Energia, que alegava dificuldades até para a troca de lâmpadas dos postes de 45 metros de altura, com mais sete enterrados, totalizando 52 metros. 

O efeito estético, que tanto agradou a Reidy, é belíssimo, mas muitos cuidados tiveram que ser tomados e as lâmpadas precisaram ser envoltas em tambores pretos, direcionando a luz para baixo, para não atrapalhar os voos que chegam ao Santos Dumont. O light deigner americano Richard Kelly foi o responsável por essa engenharia de luz. Os postes sequer eram fabricados no Brasil e sua presença no parque deram muito o que falar. Na canção “Paisagem Útil”, foram chamados por Caetano Veloso de “frio palmeiral de cimento”.

Muito trabalho também deu a nova faixa de areia da praia. Os estudos hidrográficos para construção da praia artificial do Flamengo foram feitos pelo Laboratório Nacional de Engenharia Civil de Lisboa e a obra civil foi executada pela Superintendência de Urbanização e Saneamento (Sursan), sob a supervisão da engenheira Berta Leitchic, integrante do grupo de trabalho, que se reunia num galpão sob a batuta de Lota.

 Durante muito tempo, as plantas e árvores tinham que receber intensos cuidados para sobreviverem e crescerem num terreno tão impróprio. Além do escritório de Burle Marx, esse trabalho recebeu o apoio do eminente botânico Luiz Emygdio de Mello Filho. Ele participou em 1992 de um levantamento de todo o inventário da flora do parque, que contabilizou 10.250 exemplares de exemplares arbóreos, constatando a perda de 6 mil com relação ao projeto inicial. Até hoje a manutenção é um desafio, diante das depredações.

Parque do Flamengo: há 60 anos embelezando a paisagem carioca parque do flamengo ha 60 anos embelezando a paisagem carioca parque do flamengo ha 60 anos embelezando a paisagem carioca 8
A Marina da Glória completou o projeto no fim da década de 1970. Crédito: Creative Commons

Depois de inaugurado, o Parque recebeu outras construções, como o Monumento a Estácio de Sá, projetado pelo arquiteto Lúcio Costa, de 1973. A Marina da Glória, projeto do arquiteto Amaro Machado, foi inaugurada em 1979. O parque também recebeu o restaurante Rio’s, já ocupado por diversas marcas, e também tem sua paisagem complementada com a construção da Sede Naútica do Botafogo, projetada por Benedicto de Barros, no fim da Enseada.

Além de procurar conciliar diversas atividades num só espaço, Lota estava muito preocupada com a consolidação e manutenção do parque, tanto que estimulou seu imediato tombamento pelo Iphan. Mas não obteve sucesso na luta pela criação de uma fundação para administrar a área. Não foi à toa que a grande inauguração não ocorreu em outubro de 1965, quando o então governador Lacerda já estava desiludido com o governo militar a ponto de ter deixado o mandato antes do término, em 11 de outubro. A oposição, que ganhou a eleição seguinte, não apoiou a continuidade do projeto.

No livro “Flores Raras e Banalíssimas”, escrito por Carmem L. Oliveira, é contada a história de Lota, que foi casada com a poetisa americana Elizabeth Bishop. Segundo a autora, grandes intelectuais, como Rubem Braga, Manuel Bandeira, Nelson Rodrigues e Lúcio Costa, deram apoio à criação da fundação, mas a Assembleia não aprovou a proposta “De nada adiantou que o advogado da Fundação tivesse bradado que os motivos dos deputados eram subalternos e de ordem partidária. O fato é que dia 20 de agosto de 1966 a Assembleia determinou que não havia mais fundação”, conta a escritora.

Apesar de ter sido muito criticada e até chamada de autoritária, Lota teve o mérito de antecipar tendências futuras e de ter escolhido um time de sumidades, que deram características de excelência ao parque. Mas nada impede que a cidade resgate suas propostas de dar maior espaço à educação e à cultura nesse privilegiado espaço público, mesmo seis décadas depois, sem prejuízo para o desfrute já usufruído pela população que o frequenta diariamente.

Recomendado

Próximo Eventos

Área do Associado

Faça seu login
Enviar Correspondência
Inscrição

Inscreva-se na nossa newsletter para receber atualizações exclusivas sobre o portal do Clube de Engenharia! Fique por dentro das últimas novidades, eventos e informações relevantes do setor.

Fale Conosco