Serviço para atendimento de áreas remotas via satélite pode explorar inovação e competição, preservando aspectos de soberania
Por DETI – Divisão Técnica de Eletrônica e Tecnologia da Informação
No periódico Clube de Engenharia em Revista, de maio de 20251, alertávamos sobre a necessidade de regramento de serviços de satélite, especialmente para as proliferações atuais de constelações de satélites de baixa órbita (LEO, do inglês Low Earth Orbit), conjugada com a possibilidade de prestação de serviços de satélite diretamente ao usuário final de celular (D2D, do inglês Direct to Device)2. O usuário móvel, em determinadas situações, poderia receber e transmitir sinais diretamente no seu celular de/para uma antena localizada num satélite, ao invés de para uma estação terrestre. E com isso, poder ter acesso a serviços em regiões remotas onde o satélite lhe desse cobertura. Estão naturalmente envolvidas nesse tipo de serviço, disputas geopolíticas por soberania espacial, por utilização de espectro de frequências e de competição ou integração de infraestruturas terrestres e espaciais.
Reiterando preocupações surgidas no evento Satellite 20253, nos Estados Unidos, em março último, onde se acordou a necessidade do aprofundamento das discussões de prestação desta nova modalidade de serviço, o recente Congresso Latino-Americano de Satélites4, realizado no Rio de Janeiro, em outubro, foi na mesma linha. O Conselheiro da ANATEL, Alexandre Freire, chegou a enfatizar durante o evento: “É uma zona de fronteira que as empresas devem analisar com muita seriedade, sob pena de serem surpreendidas pela atuação impactante e até agressiva de empresas de tecnologia, que passariam a substituí-las”, se referindo a uma possível competição entre prestadoras de serviços de satélite e operadoras móveis.
Outra participante do congresso, Erika Rossetto, diretora do Space Data Association (SDA) e gerente da Claro empresas (antiga Embratel), mencionou que atualmente já existem cerca de 30 mil satélites comissionados, 80% em órbita baixa. Destacou ainda, a necessidade de um adequado gerenciamento de uso das limitadas órbitas terrestres, da ocupação ordenada do também limitado espectro de frequências e esforços conjuntos para evitar riscos de colisão. “Temos que atuar de forma preventiva para evitar que fique incontornável no futuro”. Ela apresentou dados que mostram a Starlink como dominante no mercado mundial, seguida pela Kuiper da Amazon e da One Web, sendo que no Brasil, já existem, segundo a ANATEL, autorizações para cerca 15 prestadores de serviços LEO, inclusive acordos com a Qianfan chinesa.
No sentido de traçar os contornos da política de exploração dos serviços associados às redes de satélites, o Ministério da Comunicações (MCom) está elaborando o Plano Nacional de Satélites5, buscando adequar aspectos de soberania, independência tecnológica e sustentabilidade, inclusive sobre as questões relacionadas à substituição do SGDC1 (Satélite Geoestacionário de Defesa e Comunicações), em final de vida útil no virar da década. Causa especial preocupação o fato de que redes de satélite, que notadamente possuem gerenciamento e controle fora do país, sejam tão vulneráveis aos conflitos e eventuais disputas comerciais, na geopolítica multipolar internacional, como recentemente tem acontecido6. Destaque-se, adicionalmente, a recente emissão de ato pela ANATEL no sentido de migrar os serviços móveis por satélite para o arcabouço de regras do Serviço Móvel Pessoal (SMP)7, refletindo a convergência de redes de satélite e redes móveis terrestres, prevista dentro do Regulamento Geral dos Serviços de Telecomunicações (RGST) da Agência, a se concluir até 2027. Portanto, o cuidado no estabelecimento desse regramento é importante para garantir mecanismos de funcionamento do mercado, que envolvem de um lado empresas operadoras de telecomunicações fixas e móveis, e de outro prestadores de serviços mundiais de satélite, e ainda permitir que haja espaço para o surgimento de serviços locais de ambos os lados.
O alcance da regulamentação brasileira atual nesse segmento, parte da Constituição Federal de 1988, modificada pela emenda constitucional nº 8, que permitiu a privatização, e que ainda assim determina que todo serviço de telecomunicações, oferecido em território nacional, “é de competência direta da União, ou pode ser prestado indiretamente sob concessão, autorização ou permissão” (Art. 21, Inciso XI). Além disso, é vedado o uso do espectro sem a devida outorga (Lei Geral de Telecomunicações 9.472/1997, Art. 131 e seguintes).
Ocorre que determinadas bandas (a S por exemplo, de 2 GHz), tanto podem ser usadas para serviços terrestres (IMT-2020-International Mobile Telecommunication ou serviço 5G) como para serviços satélites (MSS- Mobile Satellite Service), criando a possibilidade de um novo formato de rede híbrida terrestre-espacial, usando as mesmas frequências em satélites e torres de sistemas móveis, resultando em eventuais riscos de conflitos e interferências. E sendo assim, recomenda-se uma coordenação, que venha a ser instituída pela ANATEL/MCom para adequar este novo ambiente à prática de mercado, explorando suas potencialidades e tentando mitigar interferências, via estabelecimento de limites de potência e zonas de exclusão.
Paralelamente, outras ações serão ainda necessárias para garantir este serviço híbrido com continuidade e penetração. Acordos de roaming nacional com operadoras atuais, obrigações de cobertura, principalmente em áreas rurais, tráfego de usuários nacionais endereçados a gateways licenciados e gerenciados no país (com responsabilidade jurídica e operacional, CNPJ, local de gerenciamento e pontos de presença), seguindo a LGPD, o Marco Civil da Internet e as leis civis brasileiras. Dado ao ineditismo e implicações de natureza técnica envolvidas, uma postura cautelosa por parte dos reguladores parece recomendável, e assim um ambiente de testes real8, com as estruturas terrestres e satelitais integradas poderiam ser implementadas durante todo o desenvolvimento dos processos, para garantir o funcionamento dos dispositivos com as eventuais adequações.
Num país de dimensões continentais como o Brasil, com regiões remotas de vasta extensão territorial (Amazonia, Pantanal, Agreste), parcelas importantes da população não têm oportunidade de acesso aos serviços digitais pelos meios tradicionais. As redes híbridas com a inclusão do serviço D2D, com adequadas especificações técnicas e regulatórias, poderão vir a fornecer uma solução conveniente, agregando inovação, soberania, competição e aproveitamento espectral, num movimento de integração de redes controlado.
Nesse sentido, entendendo a longevidade e a oportunidade desses desenvolvimentos – o IMT se encontra em seu release 19 do 5G9, o 6G, previsto para a próxima década, em sua fase inicial pela União Internacional de Telecomunicações (UIT)10, enquanto o MSS-D2D começa a ser implementado por algumas operadoras no mundo11 – acreditamos que ANATEL e MCom devam se colocar para explorar as características e nuances regulatórias ex-ante, e até mesmo liderar os trabalhos de adoção de regras claras a nível da Citel (Comissão Interamericana de Telecomunicações).
Finalmente, cabe esclarecer que, muito embora a solução de redes hibridas tenda a incluir desassistidos digitalmente, uma outra parcela da população, caracterizada por excluídos sociais e aqueles que não possuem habilidades digitais12, continuarão sem possibilidade de acesso até que se estabeleçam políticas públicas de inclusão digital. Além disso, as franquias dos planos móveis no Brasil, conforme pesquisa do IDEC (Instituto de Defesa do Consumidor)13, limitam o acesso do usuário à rede em aproximadamente 10 dias do mês. Esta dualidade social, que busca soluções técnicas de inserção digital, mas que ao mesmo tempo limita o acesso à informação e serviços aos cidadãos, acaba por mostrar uma face indesejável e cruel da legislação e da regulamentação.
Referências:
2-https://digitalregulation.org/satellite-direct-to-device-services/
3-https://teletime.com.br/14/03/2025/satellite-2025-a-cobertura-completa-de-teletime-em-washington/
4-https://abrasat.org.br/category/congresso-latinoamericano-de-satelites/
5-https://teletime.com.br/08/10/2025/governo-plano-nacional-satelites/
7-https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/ato-n-15.841-de-24-de-outubro-de-2025-664887641
8-https://www.gov.br/ANATEL/pt-br/regulado/agenda-regulatoria/sandbox-regulatorio
9-https://www.3gpp.org/specifications-technologies/releases/release-19
10-https://www.3gpp.org/specifications-technologies/releases/release-20
11-https://telesintese.com.br/ast-spacemobile-e-verizon-fecham-acordo-de-d2d-nos-eua/




