Refinaria de Manguinhos. Crédito: Creative Commons
PROSUB no Horizonte Brasileiro
Investigação aponta para importações irregulares pela Refinaria de Manguinhos (Refit), o que suscita debate sobre destinação de seu terreno
Uma das contradições do Brasil é o fato de ser um grande exportador de petróleo cru e ao mesmo tempo importar derivados. Mas o cenário que parecia lesivo ao país se mostrou nas últimas semanas ainda mais grave. Isso porque uma das principais refinarias nacionais, a de Manguinhos, no Rio de Janeiro, foi acusada de fraude em suas importações. Em vez do mineral bruto, estaria trazendo combustíveis, com o suposto objetivo de fraudar a Receita Federal, acusação que se junta à de sonegação e de danos ambientais. São fatores que levaram à interdição da unidade e retomaram o debate sobre seu fechamento em definitivo, devido à sua localização dentro de um centro urbano. Num novo episódio desse escândalo, foi alvo de megaoperação, sob acusação de sonegar R$ 26 bilhões.
Inaugurada no fim de 1954, Manguinhos foi a primeira refinaria de capital privado do país, e manteve-se sob esse regime mesmo no período de monopólio de refino por parte da Petrobras. Durante décadas, teve um importante papel no abastecimento da cidade, mas a partir da virada do século ela passou a figurar nas páginas dos jornais nas seções dos escândalos. Foi alvo de uma CPI na Assembleia Legislativa por sonegação fiscal e foi multada por danos ambientais. Em 2008, a unidade foi comprada pelo Grupo Andrade Magro, que mudou seu nome para Refit em 2017. Desde 2013, está em recuperação judicial e acumula dívidas com o estadon fluminense estimadas em R$ 15 bilhões, além do grupo ser considerado o maior devedor do Estado de São Paulo, e de acumular dívidas com a União.
Vista aérea da Refinaria de Manguinhos, localizada na Zona Norte do Rio de Janeiro. Crédito: Creative Commons
Em setembro, a refinaria foi alvo das operações Cadeia de Carbono e Carbono Oculto, tendo sofrido a primeira intervenção por parte da Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) no fim do mês. Entre as irregularidades apontadas, estavam “suspeita de importação irregular de gasolina não especificada, incorretamente designada como “nafta” ou “condensado”, cujos parâmetros de octanagem são ajustados por formulação com o uso de N-Metil-Anilina, com provável objetivo de reduzir a carga tributária”; “falta de evidências de que ocorre processo de refino de petróleo, considerando que é importado produto praticamente acabado, gasolina e óleo diesel S10” e “utilização de tanques que não estavam autorizados pela ANP e tanques que armazenavam produtos de uma classe de risco superior a autorizada”.
A empresa recorreu na Justiça e conseguiu liminar suspendendo a interdição, mas uma decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) do fim de outubro suspendeu as operações da unidade, a pedido da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN). A situação da refinaria também se agravou após a fiscalização realizada pelo Ibama, com o Instituto Estadual do Ambiente (INEA), em que foram constatadas irregularidades como contaminação do solo e de aquíferos subterrânea com resíduos de petróleo.
Operações apontam a existência de fraudes
As acusações de contaminação ambiental por parte da refinaria não são novas e já vinham correndo desde o governo Sérgio Cabral. Em 2012, o então governador decretou a desapropriação do terreno da unidade, que fica cercada de comunidades e bairros residenciais, a poucos quilômetros do centro do Rio. O decreto foi anulado por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), em 2020, tendo em vista que o terreno da Refit pertence na verdade à União. A ideia era construir no local conjuntos habitacionais, beneficiando sobretudo pessoas que vivem em áreas de risco, e acabar com a fonte de poluição daquela região, mas a falta de uma estruturação melhor da proposta a aproximou mais de uma ação de marketing político do que política de Estado. A posse do espaço por parte da União, no entanto, não exime totalmente a empresa de obrigações.
“A Secretaria do Patrimônio da União (SPU) esclarece que a Refinaria de Manguinhos está cadastrada na SPU no regime de aforamento, encontrando-se em dia com os pagamentos dos foros. O aforamento é um regime em que a União permite que outra pessoa utilize um terreno de sua propriedade mediante o pagamento anual de uma taxa chamada foro, geralmente equivalente a 0,6% do valor do terreno. O regime de aforamento, ou enfiteuse, é um direito sobre o imóvel em que a União mantém a propriedade, enquanto o particular tem o direito de uso e gozo (domínio útil). O foreiro, que nesse caso é a refinaria, paga uma taxa anual, o foro, e pode dispor do bem”, informou a SPU, em nota.
Refinaria mudou nome para Refit em 2017
Apesar das irregularidades ambientais, a Comissão Estadual de Controle Ambiental (CECA), órgão vinculada à Secretaria Estadual do Ambiente, renovou a licença da refinaria no ano passado, mesmo com a oposição do IBAMA. Segundo a Secretaria de Estado do Ambiente e Sustentabilidade (SEAS), “Durante o processo de análise do pedido de renovação de licença, o INEA exigiu da empresa adequações ambientais, como maior eficiência no bombeamento da pluma. A Refit atendeu às diretrizes instalando mais poços de monitoramento e bombeamento no local. Vale ressaltar que o relatório apresentado foi avaliado e aprovado pelo INEA seguindo as devidas diretrizes técnicas”. O caso está sendo investigado pelo Ministério Público Federal (MPF). O IBAMA argumenta que o próprio INEA emitiu relatórios entre 2021 e 2023 relatando a contaminação da área, fenômeno novamente encontrado recentemente. “Esses relatórios de remediação ambiental apresentados pela empresa referentes a 2021 e 2022 evidenciaram contaminação do solo e das águas subterrâneas por óleo e substâncias de alto potencial tóxico, como benzeno, etilbenzeno, xileno e hidrocarbonetos totais de petróleo (TPH). Entretanto a Licença de Operação e Recuperação (LOR IN017372), foi renovada em 2024 sem a devida análise técnica prévia dos dados referentes ao relatório de 2023, que contém informações atualizadas sobre a contaminação.”, informou o IBAMA em nota. “Embora ações de gerenciamento e remediação estejam em execução pela empresa, a magnitude do passivo ambiental exige acompanhamento rigoroso e fiscalização efetiva pelo órgão estadual responsável, inclusive com possibilidade de autuação imediata diante de qualquer descumprimento das condicionantes estabelecidas.”, acrescentou o órgão.
O professor Leandro Andrei Beser de Deus, coordenador-geral do Núcleo de Estudos Geográficos (Negeo-UERJ), considera os relatos de contaminação bastante graves e alerta para o fato de que o fechamento definitivo para construção de complexo habitacional no lugar não é algo simples, por requerer estudos técnicos profundos, além de uma análise histórica, tendo em vista os danos já causados e os investimentos necessários para a descontaminação, para que os futuros moradores não sofram problemas de saúde. O processo poderia durar muitos anos. Ele também critica o fato de o Plano Diretor da cidade, aprovado em 2024, ter mantido incentivo à ocupação industrial da região.
“A ideia é repensar o papel dessa área a partir de um olhar histórico e crítico, que una remediação ambiental, monitoramento contínuo, planejamento urbano e direito à cidade, de modo a garantir um futuro mais justo para a área e o entorno da Refinaria de Manguinhos. Não podemos esquecer as populações vulnerabilizadas, que já vivem sob risco, e precisamos evitar a reprodução das injustiças ambientais que se repetem ao longo da nossa história”, ressaltou Beser de Deus.
O pesquisador da Fiocruz José Gatto também acredita que uma eventual destinação habitacional para o terreno de Manguinhos pode requerer um processo complexo de descontaminação. A começar pelos rios que cortam a região e desaguam na Baía de Guanabara, que também precisam ser recuperados. Ele alerta para o fato de que até uma eventual perfuração do solo pode levar para o ar metais pesados e substâncias químicas que podem estar depositados no solo. Por isso, em muitas ocasiões são feitos processos com injeção de ar para a remediação, entre outras técnicas. Ele também menciona a poluição do ar como um fator permanente de risco para a população.
“A participação dos comitês de bacias seria importantíssima para tomar qualquer decisão a um destino para esses terrenos. Ele terá as condições de dar uma diretriz em interação com o plano diretor do estado e do município”, argumenta o pesquisador.
Em 2016, os pesquisadores da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP) da Fiocruz Rosália Maria de Oliveira e Paulo Bruno divulgaram pesquisa sobre a poluição de Manguinhos e desaconselharam a destinação habitacional para o terreno. Eles encontraram elementos no local como BTEX (benzeno, tolueno, etilbenzeno e xilenos), HPAs (hidrocarbonetos policíclicos aromáticos) e os metais pesados (chumbo, cádmio e zinco). Segundo eles, esses poluentes geram uma série de problemas para a saúde da população, sendo o benzeno comprovadamente cancerígeno, bem como vários HPAs.
Contaminação também pode atingir rios, como o Faria-Timbó. Crédito: Tânia Rêgo/Agência Brasil
A interdição também provoca problemas econômicos e social. O governo do estado alega estar perdendo arrecadação e os trabalhadores da refinaria já fizeram dois protestos no Centro do Rio contra a interdição, temendo por seus empregos. Segundo nota da empresa, “A companhia ressalta que jamais falsificou declarações fiscais, não praticou sonegação e aderiu à regularização junto ao governo do Estado do Rio de Janeiro, com pagamentos de aproximadamente R$ 1 bilhão em tributos estaduais em 2024. A Refit também reafirma que não mantém qualquer vínculo com o crime organizado — pelo contrário. A empresa sempre denunciou postos irregulares, a comercialização de combustíveis adulterados e práticas lesivas à concorrência”.
O drama vivido pelo Rio de Janeiro não é inédito, tendo em vista que várias cidades na Europa e nos Estados Unidos já decidiram pelo fechamento de refinarias, devido a seus impactos ambientais. A questão, no entanto, é complexa e envolve diversos lados, tendo em vista que o país ainda precisa de ampliar sua capacidade de refino e a curto prazo só obteria um terreno com enorme passivo ambiental e uma dívida que está quase impagável. Mas admitir uma refinaria que só manipula combustíveis, sem realizar o devido processo de refino, é que não pode ser tolerado.
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